Para milhares de cearenses, a tarefa de passar o endereço é quase impossível. Isso porque o Ceará registra 177 mil edificações em logradouros sem nome, índice que faz do estado o 4º do Nordeste com o maior número de locais nessa categoria.
É o que apontam os dados do Cadastro Nacional de Endereços para Fins Estatísticos (CNEFE), relativo ao Censo 2022 do IBGE, divulgados em junho. As informações mostram ainda que o Ceará tem 4,5 milhões de endereços. Destes, 17,5% não têm número.
endereços sem numeração no Ceará
Para além da dificuldade de serem localizadas, ruas sem nome e endereços sem número evidenciam problemas que vão desde a ocupação histórica do espaço urbano à falta de acesso a serviços. Como explica Rodolfo Freitas, que lidera o CNEFE no estado, as dificuldades estão atreladas a um déficit de assistência.
“A gente percebe no nosso dia a dia de campo que está diretamente ligado a essa falta de acesso mesmo, são locais em que geralmente não chega suporte. Falta cidadania mesmo, rua sem nome denota improviso, denota falta de organização”
DIFÍCIL DE ENCONTRAR
Alguns desses logradouros sem nome estão no bairro Lagoa Redonda, em Fortaleza, nas proximidades da rua Raquel Florêncio. A reportagem do Diário do Nordeste visitou o local, que é formado por um conjunto de residências distribuídas em três ruas que não possuem nenhuma denominação.
Informalmente, os moradores chamam as ruas por números, de 1 a 3, e ao passar o endereço indicam a Rua Alessandra da Silva e precisam apontar uma série de referências, como o Centro de Educação Infantil (CEI) e a areninha que ficam próximos. Outro exemplo, para pedir um transporte por aplicativo, eles se deslocam até outra rua para conseguirem embarcar.
Nesse cenário, receber encomendas também se mostra um verdadeiro desafio. “A gente já não pede por conta disso. A gente pede um cartão no banco e não chega. Tinha colocado o endereço da outra rua [que tem nome], mas não chegou o meu cartão de jeito nenhum”, afirmou Miguel de Sousa, de 17 anos, que mora na área.
Outra moradora, que preferiu não se identificar, relatou que, muitas vezes, opta por colocar o endereço da mãe para receber encomendas no bairro Padre Andrade, a cerca de 22 km de distância do local. “É melhor ir logo buscar no correio”, comentou uma terceira pessoa.
“O endereço é também um indicador de cidadania. Isso significa que o cidadão que vive em um endereço sem número ou em uma rua ou avenida sem denominação está sofrendo algum tipo de déficit na sua cidadania, pela não formalização daquele endereço ou logradouro pelo poder público municipal”
NÃO IDENTIFICADO
O pós-doutor em Geografia Humana e professor emérito do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC), José Borzacchiello da Silva, aponta que essa situação reflete a informalidade ligada à ocupação do espaço urbano. Isso denota uma separação entre duas cidades: a formal e a informal.
“O que seria a cidade legal e a cidade ilegal é nessa perspectiva da organização do urbano perante o Estado, de ser parte da produção da sociedade e da sustentação do Estado. Na medida em que as pessoas não têm condição de sobrevivência, como elas vão ter a água do sistema da Cagece, a luz da Enel ou pagar IPTU? Como vai ter a sua terra reconhecida e o registro da propriedade?”, pondera.
Quantidade de endereços sem número em Fortaleza
A informalidade e a falta de um endereço oficial criam uma série de dificuldades, principalmente pensando em um momento de expansão do comércio eletrônico, analisa Borzacchiello.
“As pessoas moram numa rua sem nome, numa habitação sem número, mas elas têm telefone celular e acesso ao mercado. Se organizam, dão um endereço de outra pessoa, compram com o cartão de crédito de uma prima, de um parente, de um amigo. O povo consegue encontrar meios de sobreviver dentro de uma cidade tão desigual, tão injusta.”
RUA DO NUNCA MAIS
O Diário do Nordeste visitou outro logradouro sem denominação, no bairro Rodolfo Teófilo, também indicado pela equipe técnica do IBGE Ceará. Mas a rua não existe mais.
Relatos de moradores da vizinhança indicaram que as edificações foram retiradas do local após o proprietário reaver o terreno, há cerca de um ano. Agora, o espaço que guardava endereços e histórias é apenas um vão de terra e um resto de asfalto. O antigo logradouro se une ao calçadão que fica junto à Areninha Campo do Tigrão.
“A rua é uma referência fundamental, porque a rua é uma trama que sugere percursos, que sugere caminhos. A rua como logradouro deverá ter qualquer designação, ou seja, um número, um nome. E a partir dessa situação, ela pode se referir a uma toponímia, ou seja, a rua de cima, a rua da igreja. E dessa forma as pessoas vão incorporando no local de moradia a sua própria noção de abrigo, o seu lugar do mundo. Morar significa ter um lugar onde você chega”
VULNERÁVEL EXISTÊNCIA
Para logradouros sem denominação, o fato de existir perpassa a vulnerabilidade de continuar sendo. A ex-rua do Rodolfo Teófilo é uma das tantas vias cearenses que vivem essa fragilidade por estarem à margem da ‘cidade oficial’.
A ausência de uma rua ou de uma casa traz impactos em vários âmbitos, enfatiza o professor emérito da UFC, na perspectiva da construção da memória e das referências pessoais. “O que significa uma remoção? Significa o rompimento de uma trama de relações sociais que as pessoas estabelecem no seu entorno com seus vizinhos, com parentes. Na medida em que uma família é removida porque uma rua está ocupando de forma irregular um terreno privado, então é claro que o proprietário vai reclamar, vai querer interditar, vai querer posse desse lote”, defende.
“O desalojamento não significa apenas a perda da residência. A perda da moradia significa a perda de várias referências, da escola dos filhos, do posto de saúde das imediações, do comércio, do lugar onde esteve toda a trama de um sistema sociológico de relações. Isso rompido cria problemas sérios para todo mundo, pois necessitamos da nossa casa para a construção da nossa história”, complementa Borzacchiello.
GANHAR UM NOME?
O Legislativo é o principal responsável por denominar ruas. Em Fortaleza, a Câmara Municipal (CMFor) recebe as solicitações da comunidade e as encaminha à Secretaria de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma).
A pasta fica responsável pela identificação do logradouro, geração de informações cadastrais e mapeamento da localização. Após esse processo, retorna à Casa dos Vereadores para elaboração e publicação do decreto oficial.
Quantidade de endereços em logradouros sem denominação em Fortaleza
Um diagnóstico de 2019 indicava que 8.236 ruas da cidade estavam sem denominação oficial. Em 2021, as duas instituições iniciaram uma parceria para nomear logradouros na capital cearense.
Cerca de três anos depois, poucos avanços foram registrados. A CMfor informou que recebeu apenas um primeiro diagnóstico da Seuma para a nomeação de ruas. Este, refere-se ao território 17 - composto pelos bairros Itaoca, Parangaba e Vila Peri - da Regional IV.
A análise contemplava um total de 269 logradouros. Destes, 178 tiveram seus nomes oficializados por meio do Decreto Legislativo nº 1.152/23, aprovado em Plenário em dezembro de 2023 e publicado em Diário Oficial em fevereiro de 2024, segundo a CMfor. A quantidade é a mesma apontada pela entidade ao ser questionada sobre a parceria em março de 2023.
“Essas ruas já tinham nomeação reconhecida pela comunidade e necessitavam apenas da oficialização do Parlamento. As outras 91 ruas aguardam novos projetos de decreto legislativo para, então, prosseguir a tramitação da matéria, cujo procedimento exige a realização de audiências públicas com a comunidade para definição do nome adotado”, afirmou a Câmara Municipal.
Já a Seuma informou que, desde 2021, já foram formalizados 208 logradouros. A pasta destacou ainda que todo o procedimento segue o rito estabelecido pela Lei do Código da Cidade, sendo realizado de forma colaborativa entre a Prefeitura de Fortaleza, a Câmara Municipal e os cidadãos.