“Lembro que, quando era criança, eu não jantava. Minha mãe dizia que só tinha bolacha, então eu dormia com fome”, rememora Marcos Aurélio Sousa, 29 anos, um dos colaboradores da Cozinha Solidária do Conjunto Maria Tomásia, no Grande Jangurussu, uma das 31 unidades desse tipo espalhadas em 11 estados do Brasil.
Com a proposta de levar alimentos básicos a quem tem fome, o projeto de Cozinhas Solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) foi um dos três vencedores do prêmio Desafio da Infância Saudável (Healthy Childhood Challenge, em inglês), promovido pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
O anúncio foi feito pela entidade, um dos braços da Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 15 de dezembro. A premiação enviará US$100 mil para financiar a manutenção das atividades no Brasil. Só em Fortaleza, são distribuídas marmitas para 150 pessoas por dia.
Marcos Aurélio chegou à Cozinha do Jangurussu por meio de vizinhos. Desempregado, tinha dificuldade de conseguir o próprio sustento porque precisou fechar um salão de cabeleireiro por causa da pandemia da Covid-19. “Não sabia que ia durar tanto tempo”, lamenta.
No novo ambiente, conseguiu não só alimento, mas uma rede de suporte. Com o tempo, começou a ajudar nas atividades internas e, hoje, contribui até na reforma física do equipamento.
“Quando ajudei pela primeira vez, uma criança me deu um abraço, um sorriso e me chamou de ‘tio’. A Cozinha faz diferença sim. Futuramente, penso em construir uma sala de aula lá, porque acho que o conhecimento é tudo”, esperança.
O Ceará é um dos estados do Brasil onde há maior risco de falta de alimentos em domicílios onde vivem crianças menores de 10 anos, de acordo com um levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan).
No Estado, 51,6% dos lares onde há crianças estão enquadrados em insegurança alimentar moderada (redução significativa de alimentos disponíveis) ou grave (a fome em si, seja por falta de comida ou por haver apenas uma refeição no dia).
Segundo o coordenador do MTST no Ceará, Sérgio Farias, a Cozinha começou a funcionar em abril deste ano com o propósito de ajudar a combater a fome em um período de crise sanitária, social e econômica. Em janeiro de 2023, o local deve servir a refeição de número 50 mil.
“O Estado tem tendência a políticas complicadas, que são difíceis, mas as políticas de combate à fome e à desnutrição que mais funcionaram foram as simples: pega como exemplo a questão do soro caseiro”, ressalta.
Para ele, o modelo de Cozinha Solidária permite a organização social em torno da comida e a permite adentrar territórios para fazer sua distribuição, o que seria essencial em uma cidade dividida pela presença de organizações criminosas, especialmente na periferia.
Além disso, o coordenador destaca o equipamento como um espaço de debate, com realização de palestras; de lazer, sendo sede de um clube de xadrez infantil; e de busca ativa, já que permite identificar pessoas sem qualquer tipo de documento.
A primeira coisa pra você sonhar é comer. Quem não come, quando dorme, sonha com comida. A gente chega onde o estado não chega e faz o que o estado não faz.
Simplicidade e desburocratização
O projeto das Cozinhas Solidárias preza pela simplicidade do atendimento, passando pelo barateamento do processo de produção, que pode ser até quatro vezes mais em conta do que o de um restaurante popular. Sem custos extras, “o principal elemento é a solidariedade”, descreve Sérgio.
Para o coordenador, o investimento do poder público prioriza organizações técnicas e deixa de abranger pequenos produtores, muitas vezes moradores e conhecedores da realidade das próprias comunidades.
“Para enfrentar a fome, você vai precisar de várias políticas: de renda, de economia no bairro, de geração de emprego, mas agora precisamos de medidas simples. Que a comida chegue nas pessoas”, destaca.
Só após a garantia do básico é que se pode iniciar o debate de temas relacionados, seguindo o tripé:
- fazer o alimento chegar;
- discutir a produção e a segurança alimentar, fazendo hortas e quintais produtivos;
- discutir o alimento saudável, livre de agrotóxicos, além de transporte e saneamento.
Política pública permanente?
Ainda durante a campanha eleitoral, o governador eleito Elmano de Freitas sinalizou a importância de equipamentos desse tipo como forma de fortalecer a política pública de assistência social.
“Eu quero fazer cozinhas solidárias, organizar um projeto ousado de combate à fome, apoiando as iniciativas de associações, de igrejas, comprando produtos da agricultura familiar para uma verdadeira rede de solidariedade não só apenas do estado, mas uma rede da sociedade”, explicou o então candidato.
de refeições gratuitas já foram servidas em todo o Brasil desde março de 2021, segundo o projeto.
Enquanto a discussão não avança, o projeto planeja a expansão da atuação por conta própria. Outros quatro locais de Fortaleza - incluindo o Residencial Cidade Jardim, no bairro José Walter - também recebem apoio para fornecer alimentos, mas apenas um ou dois dias da semana.
Como ajudar
A iniciativa tem no MTST o principal financiador para conseguir a maior parte dos alimentos e insumos necessários, como gás de cozinha e temperos. A complementação ocorre por doações de terceiros e outras atividades de arrecadação.
A Cozinha Solidária do Conjunto Maria Tomásia aceita doações através da chave Pix: cozinhasolidaria.ce@gmail.com