O que a ocupação ‘Deus é Amor’ revela sobre o cenário de 147 mil moradias precárias em Fortaleza

Quantidade de famílias que compõem o déficit habitacional da capital cearense não é contabilizada oficialmente há mais de uma década

O dinheiro ganho no mês não deu conta de pagar comida e aluguel. Ou a casa estava lotada demais. Ou não havia casa de jeito nenhum, o teto era o céu. Esses foram alguns dos motivos citados por quem ergueu ou pretendia erguer um barraco na ocupação “Deus é amor”, no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza, desmontada na terça-feira (10).

O episódio, porém, expôs uma realidade de outras milhares de famílias espalhadas em todas as regiões da cidade. Na Capital, se considerado o número de famílias no Cadastro Único (CadÚnico) e beneficiárias do Bolsa Família em abril e maio de 2023, o déficit habitacional total era de 146.490 domicílios – ou seja, uma a cada três moradias da cidade amargava condições precárias. 

Os dados são do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), e foram adiantados ao Diário do Nordeste pelo professor José Meneleu Neto, da Universidade Estadual do Ceará (Uece). O pesquisador também é diretor da Diretoria de Estudos Sociais (Disoc) do Ipece. O cálculo do déficit habitacional foi feito pelo analista de Políticas Públicas do instituto, Jimmy Oliveira, com base nos indicadores de 2023.

33,5%
do total de domicílios de Fortaleza, calcula o professor, ofertavam condições inadequadas de moradia em 2023.

Já os dados da Prefeitura de Fortaleza, ofertados em momentos e documentos distintos, divergem, indicando que, na realidade, a soma de ocupações e de pessoas vivendo em moradias sem condições dignas de habitação é grande, mas subnotificada. 

O último número oficial do Município sobre déficit habitacional diz que são necessárias quase 84 mil novas moradias na cidade – mas ele é de 2012, registrado no Plano Fortaleza 2040. 

Por outro lado, o Plano Plurianual 2022-2025, que contém o planejamento do governo municipal para os 4 anos, registra que Fortaleza tinha, “em 2016, 856 assentamentos precários, com cerca 271.539 famílias sem moradia digna, infraestrutura domiciliar adequada, oferta adequada de equipamentos nem serviços públicos de qualidade”.

O mapeamento, porém, é o mesmo que consta no Plano Local de Habitação de Interesse Social (PLHIS), que é de 2012. Já em 2019, uma reportagem do Diário do Nordeste destacou que o déficit habitacional da cidade chegava a 130 mil famílias, segundo a Defensoria Pública Estado (DPGE).

O Diário do Nordeste questionou a Secretaria Municipal do Desenvolvimento Habitacional (Habitafor) sobre um levantamento oficial atual. Em nota, a Pasta informou apenas que “os dados sobre a quantidade de famílias em assentamentos precários estão no Fortaleza 2040”.

Somadas a essa demanda crescente, e imprecisa, estão ainda as mais de 6 mil pessoas em situação de rua em Fortaleza, contabilizadas pelo relatório “População em Situação de Rua”, do Governo Federal, de setembro do ano passado.

Enquanto isso, a Habitafor destaca que “dentre as cidades do Nordeste, Fortaleza foi a que se destacou com o maior número de unidades aprovadas na primeira etapa do novo programa Minha Casa Minha Vida, totalizando 3.462 unidades em 16 projetos”. 

Segundo a Pasta, “alguns desses contratos deverão ser assinados nos próximos meses”, e mais de 1,2 mil novas moradias foram entregues na atual gestão.

Elizabeth Chagas, supervisora do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria, avalia que fazer um levantamento atualizado da demanda é um dos primeiros passos para começar a solucioná-la.

“Só neste ano, fui em mais de 50 comunidades e ocupações em Fortaleza. É preciso ter uma maior atenção a elas. Há diversas formas de solução. O aluguel social é emergencial, porque só dura dois anos. É preciso pensar em outras mais duradouras”, frisa a defensora.

Por que faltam moradias

O conceito de déficit habitacional, como resume o próprio Plano Fortaleza 2040, “indica a quantidade de pessoas que vivem em condições desfavoráveis de moradia, por diversos motivos, sinalizando, por exemplo, a necessidade de construção de novas unidades”. 

Para a Fundação João Pinheiro, instituição de pesquisa e ensino mineira, qualquer domicílio que esteja em uma dessas situações integra o déficit habitacional de uma cidade:

  • Habitação precária; 
  • Coabitação familiar; 
  • Ônus excessivo com aluguel (famílias com rendimento de até três salários mínimos e gasto superior a 30% da renda familiar); 
  • Adensamento excessivo de moradores em imóveis alugados (mais de três moradores por dormitório).

O professor José Meneleu aponta que, em Fortaleza, a maior parte das pessoas que compõem o déficit habitacional vive em ônus de aluguel. “Aproximadamente um terço da renda da família é para aluguel. Na cidade, são mais de 132 mil famílias nessa condição”, estima.

Ele acrescenta que “o problema do déficit habitacional está associado fortemente à condição de famílias abaixo da linha de pobreza”, o que justifica o uso de indicadores como CadÚnico e Bolsa Família na mensuração do número.

“O déficit é um problema histórico, antigo, e permanece se perpetuando pelo mundo, porque é produzido pela condição de pobreza. É um problema urbano importante de ser resolvido e atacado”, frisa.

É só construir mais casas?

Apesar de parecer óbvia, a solução para o déficit habitacional “não é só uma questão de construir moradias”, como sentencia o pesquisador da Uece. Segundo Meneleu, o combate, assim como as causas do problema, é multifatorial.

“O problema às vezes não é só construir: a pessoa já mora numa casa, não quer sair, mas quer melhorar. Assim, precisamos de programas de melhorias habitacionais”, inicia. “Além disso, os alugueis são muito elevados. Políticas de aluguel social ou de compensar essa questão do mercado imobiliário são necessárias”, adiciona o professor.

“E, principalmente, é preciso promover a redução da pobreza em áreas urbanas.”

José Meneleu alerta ainda sobre “a periferização das grandes cidades: muitos imóveis estão ociosos, enquanto a maior parte da população pobre é expelida para áreas sem saneamento, sem infraestrutura e acesso a serviços públicos, pagando aluguel excessivo”.

“Há toda uma discussão de planejamento urbano pra utilizar melhor as zonas já bem estruturadas da cidade, as estruturas habitacionais ociosas que existem. É uma gama de ações relacionadas à regularização fundiária, criação de oportunidades no mercado de trabalho, geração de renda e redução da pobreza. Não é uma solução de curto prazo.”

O promotor Élder Ximenes, membro da 8ª Promotoria de Justiça Cível de Fortaleza, que trata de conflitos fundiários e habitação, endossa que a cidade possui espaços vazios possíveis para construção de novas moradias – mas é um processo “demorado e caro”.

“Nenhum município do Brasil, nem usando o seu orçamento inteiro, solucionaria o déficit habitacional. Por isso é preciso financiamento federal. Fortaleza fez bons projetos nessa leva do Minha Casa Minha Vida, mas temos espaços e imóveis que não têm a função social respeitada”, critica o promotor. 

Élder alerta que a própria Constituição Federal prevê, no artigo 182, que a gestão municipal pode exigir de proprietário terreno urbano “não edificado, subutilizado ou não utilizado”:

  • Parcelamento ou edificação compulsórios;
  • IPTU progressivo no tempo;
  • Desapropriação.

“Na História, esses instrumentos nunca foram utilizados. Ao não se enfrentar os interesses políticos, você pune a população desfavorecida”, lamenta o promotor de Justiça do MPCE, afirmando que o órgão tem diálogo constante com as Pastas municipais para cobrar atualização de dados e propostas para a área.