‘Deus é Amor’: ocupação onde mulher foi morta em Fortaleza tinha 15 dias e abrigava 500 famílias

O terreno de aproximadamente 33 mil metros quadrados era ocupado por pessoas em condição de vulnerabilidade social, segundo a Defensoria Pública

A ocupação onde uma mulher de 28 anos foi morta no bairro Carlito Pamplona, em Fortaleza, nessa terça-feira (10), foi montada há 15 dias e abrigava cerca de 500 famílias, segundo relatos de moradores colhidos pela Defensoria Pública do Estado e pelo Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Frei Tito de Alencar (EFTA), vinculado à Assembleia Legislativa do Ceará (Alece). 

O terreno de aproximadamente 33 mil metros quadrados era ocupado por idosos, homens, mulheres e crianças em condição de vulnerabilidade social que, anteriormente, moravam no entorno, mas não mantiveram condições de continuar pagando aluguel. É o que aponta a supervisora do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria, Elizabeth Chagas. Um levantamento mais detalhado ainda será realizado.

“Essa ocupação 'Deus é Amor' é recente, tem 15 dias, mas com muitas famílias que já estavam morando lá dentro. Esses barracos já estavam levantados, eram mais de 500, 600 famílias, segundo os populares”, relata Chagas. A Fiotex, empresa proprietária do terreno, nega que tinham pessoas morando no terreno no momento da ação.

Ainda conforme a supervisora, “independente de as famílias poderem estar ali ou não”, a desocupação do local não poderia ter ocorrido de forma violenta e sem apresentação de um mandado judicial.  

A supervisora do Nuham aponta, ainda, que nenhum processo judicial de desocupação do terreno foi identificado até o momento pela Defensoria, o que torna a invasão para retirar as famílias "ilegal e criminosa", com o agravante de homicídio, lesão corporal e ameaça.  

Elas estavam em um terreno que não era delas, mas até para isso (retirá-las) precisa de uma autorização”
Elizabeth Chagas
Defensora pública e supervisora do Nuham

O EFTA também não identificou qualquer procedimento legal para desocupação do terreno, segundo o advogado Péricles Moreira, que integra o escritório. Os relatos recebidos por ele apontam que os responsáveis pela desocupação alegaram que seria uma ação de despejo, porque havia um mandado judicial, mas que não se tinha nenhum documento, nem o acompanhamento de um oficial de Justiça. 

“Vamos verificar se há, de fato, uma reintegração de posse em curso, que a gente desconhece, porque o procedimento geralmente passa pelos batalhões da Polícia, então é um processo mais público. Ainda que se faça uso da força, mas se faça o uso da força dentro das determinações legais”, aponta.  

O Diário do Nordeste acionou o Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) para saber se existe algum processo em curso acerca da ocupação do local. A reportagem aguarda o retorno do órgão, que apura a informação internamente.  

Desocupação violenta 

A ação no terreno do bairro Carlito Pamplona resultou na morte da vendedora Mayane Lima, de 28 anos, nessa terça-feira (10). A vítima morava junto do esposo em uma casa alugada nos arredores da ocupação. Foi o que explicou o sogro dela, Joel Monteiro de Lima, ao Diário do Nordeste. "Daí surgiu esse movimento do terreno, e eles embarcaram também para construir algo deles", comentou. 

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública (SSPDS), a desocupação teria sido iniciada por seguranças contratados pela empresa privada dona do terreno.  

Em nota, a Fiotex afirmou que é proprietária do terreno e “adotou as medidas para cessar a demarcação ilegal”. A companhia explicou, ainda, que a ação foi testemunhada por policiais e a equipe da empresa foi "surpreendida por agressores vindos de fora do terreno, arremessando pedras, ateando fogo e realizando disparos contra todos que se encontravam no local e seus arredores”, complementou.  

Péricles Moreira comenta que uma retroescavadeira foi utilizada para avançar contra os “barracos”, e as famílias foram abordadas por homens encapuzados. 

“O relato é de que tiveram crianças e idosos espancados, porque, como eles entraram na madrugada, boa parcela das pessoas ainda estava dormindo. Elas acordaram à base da violência para sair do local”
Péricles Moreira
Advogado do Escritório Frei Tito de Alencar

Joel contou que os tiros começaram por volta das 3h20 e terça-feira (10), quando barracas foram destruídas por uma retroescavadeira. "Era tiro demais", pontuou ele, reforçando que Mayane foi atingida por um disparo no peito ao chegar ao local para saber o que estava ocorrendo. 

A morte da vendedora desencadeou uma série de reações da população nos arredores, incluindo ônibus apedrejados e barricadas na Avenida Leste-Oeste. Diversos estabelecimentos comerciais da região foram fechados por conta das manifestações.  

Nas redes sociais, o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), informou que três suspeitos de envolvimento na desocupação violeta foram identificados ainda na terça (10). Destes, dois foram conduzidos à delegacia para prestar depoimento. Não foi informado se eles foram mantidos sob custódia ou não. 

Acolhimento

Com a desocupação, uma parcela dos desabrigados está sendo acolhida por vizinhos. Outra parte deve voltar para os poucos “barracos” que ainda ficaram de pé no terreno, devido à situação de vulnerabilidade das famílias e da própria comunidade. É como avaliam Chagas e Moreira. 

“Essas pessoas não têm para onde ir, elas estão pedindo apoio aos moradores próximos. Provavelmente, alguns voltem para os barracos que ainda estão em pé”, complementa a supervisora. 

Pelo que a gente conseguiu identificar, boa parcela das pessoas que estava dentro do terreno vive de algum modo ali no entorno, seja morando de aluguel, seja coabitando em espaços pequenos, com mais de uma família morando dentro de uma unidade habitacional. Aí também algumas famílias estavam abrindo suas portas para acolher as pessoas que estavam desabrigadas”, enfatiza o advogado.

Mapeamento

O trabalho de acompanhamento do caso iniciou ainda na manhã dessa terça-feira (10). Além das forças da Segurança Estadual, da Defensoria Pública e do Escritório Frei Tito Alencar, a Comissão de Direitos Humanos (CDHC) da Alece, o Escritório de Direito Humanos e Assessoria Jurídica Popular Dom Aloísio Lorscheider (EDHAL), da Câmara Municipal de Fortaleza, e a Secretaria dos Direitos Humanos (Sedih) do Ceará também participaram da apuração no local, conforme aponta Moreira.  

Em nota, a Sedih informou que, por meio do Centro de Referência em Direitos Humanos - Dom Hélder Câmara (CRDH), foi realizada escuta com a comunidade, diálogo com moradores do bairro, bem como atendimento, orientação e acolhimento psicossocial aos familiares da vítima.  

Ao longo dos próximos dias, a Sedih seguirá acompanhando e prestando suporte aos familiares da vítima. Por meio de grupo de trabalho interinstitucional, que deverá englobar outras organizações de atuação social, a Secretaria também realizará e acompanhará encaminhamentos relacionados às famílias da ocupação”, finalizou a Pasta.

A supervisora do Nuham informa que o órgão irá fazer um mapeamento técnico, social e jurídico da situação das famílias que viviam na ocupação, bem como pedir a medição do perímetro exato do terreno, que, segundo análise prévia da Defensoria, é de aproximadamente 33 mil metros quadrados. 

O objetivo, segundo ela, é buscar a pacificação da situação com diálogo entre a Prefeitura de Fortaleza, Governo do Estado e proprietários, uma vez que as famílias vivem situação de vulnerabilidade social e não possuem moradia digna para residir.  

O levantamento deve ser iniciado em até 15 dias. Até lá, o Nuham vai seguir acompanhando o inquérito policial sobre o assassinato de Mayane Lima e prestando assistência aos familiares da vítima e demais desabrigados. 

Ainda segundo Chagas, o órgão também vai pedir a identificação dos proprietários do terreno e a possível responsabilização pela desocupação ilegal. 

“Nós vamos encaminhar para fazer um diálogo com os proprietários, Governo e Prefeitura, tentar encontrar um caminho. Claro que esses atos, se for confirmado que foi do proprietário, ele vai ter que responder por homicídio, lesão corporal e um terror instalado na comunidade”, frisa.

Por sua vez, o advogado Péricles Moreira salienta que o EFTA vai monitorar os desdobramentos das investigações por conta do “fato criminoso” — em decorrência da expulsão das famílias, do uso excessivo de violência e do óbito.  

"Vamos ver também a questão de como é que o Ministério Público poderá acompanhar, a partir dos seus núcleos específicos. E vamos também monitorar se, eventualmente, existe alguma ação de reintegração de posse ou algo nesse sentido relacionado à área do terreno em si", comentou.  

O Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) foi demandado pela reportagem sobre o caso. A matéria será atualizada assim que houver retorno.