Com 54 anos, ‘manicômio judiciário’ do CE tem prazo para fechar e órgãos debatem futuro dos internos

Hoje, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, o Diário do Nordeste discute a desativação da unidade, que tem 124 pessoas e inúmeros obstáculos para desinternações

Uma decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em vigor desde o dia 15 deste mês, estabelece o fechamento gradual, até maio de 2023, dos ‘manicômios judiciários’ no país. No Ceará, a Resolução 487 do CNJ afeta diretamente a existência do Instituto Psiquiátrico Governador Stênio Gomes, em Itaitinga. No Estado, Justiça e Governo têm traçado ações para desativar a unidade criada em 1968. A unidade abriga internos que têm doenças mentais e cometeram crimes.

Agora, neste 18 de maio, Dia Nacional da Luta Antimanicomial, o Diário do Nordeste aborda o tema e questiona: o que acontecerá com essas pessoas? Hoje, no Ceará, 124 internos estão no Stênio Gomes, conforme dados repassados pela Secretaria da Administração Penitenciária do Ceará (SAP) na quarta-feira (17). Por serem considerados inimputáveis, eles cumprem medidas de segurança e não exatamente uma pena. 

A resolução 487/23 do CNJ institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e pretende fazer valer a Reforma Psiquiátrica no país, processo que está em curso há décadas, mas que ainda carece de efetivação em vários pontos. 

Na prática, a recente decisão do CNJ requer o cumprimento da Lei Federal 10.216 de 2001, conhecida como “a Lei da Reforma Psiquiátrica”, ao prever a interrupção de novos internamentos nos 'manicômios judiciários’ a partir de agosto de 2023, bem como a desativação total desse tipo de unidade no prazo já mencionado. 

Um dos gargalos para efetivar a decisão no Ceará são as distintas condições desses internos. Por exemplo, há situações em que a medida de segurança (espécie de sanção estabelecida para pessoas que cometeram crimes, mas por terem problemas de saúde mental são consideradas inimputáveis) já foi cumprida, mas o interno segue no local; há casos em que a medida está em curso; e há ainda outras circunstâncias. 

Para se ter dimensão, dos 124 internos, ao menos 21 já cumpriram a medida de segurança e deveriam estar fora da unidade. Mas, permanecem ‘presos’ na instituição de perfil asilar e, de imediato, não há para onde mandá-los. Isso porque as famílias não os querem, não há vínculos ou devido à ausência de espaços adequados para recebê-los. 

Em anos anteriores, conforme já noticiado pelo Diário do Nordeste, em 2021, a unidade chegou a ter um interno cujo quadro de saúde era definido como “crônico”, que há 17 anos já havia cumprido a medida de segurança, mas permanecia no local. A decisão do CNJ, dentre outros aspectos, busca eliminar justamente esse tipo de situação problemática.  

Para permitir a desativação de unidade, tanto a norma do CNJ quanto representantes do poder judiciário e do executivo ouvidos pelo Diário do Nordeste, ressaltam que é preciso:  

  • Que o poder judiciário revise os processos de cada interno para que seja avaliada a possibilidade de extinção da medida em curso;
  • A progressão dos internos para tratamento ambulatorial em meio aberto ao invés da internação em manicômios judiciários; 
  • A transferência dos internos para estabelecimento de saúde adequado, como as residências terapêuticas; 
  • A ampliação da quantidade de residências terapêuticas, tendo em vista que no Ceará existem apenas 6, para o recebimento das pessoas que cumpriram a medida de segurança.
  • Trabalho articulado de sensibilização das famílias que vislumbram ser possível o retorno dos internos para os lares;
  • Estruturação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de modo a garantir atendimento e assistência aos internos que deixarem a unidade ou que recebam medidas de segurança. 

Questionada sobre esse processo, a SAP informou apenas que “seguirá a resolução 487 do CNJ” e acrescentou que “possui a experiência e preparo, junto a outras instituições da esfera pública, para seguir o cronograma e definições orientados por essa resolução específica do CNJ”.

Quem são os internos do Stenio Gomes?

Em princípio, a unidade, criada em 1968, deveria receber pessoas com transtornos mentais que cometeram crimes, mas devido à condição de saúde são considerados inimputáveis pela Justiça, ou seja, são tidas como incapazes de responder judicialmente pela ação que praticaram por mais trágica que tenha sido a ocorrência. 

Conforme normativas já estabelecidas na legislação brasileira, como a Lei 10.216/2001, pessoas nessa condição não devem obrigatoriamente estar em presídios ou em casas de detenção. O ideal, preconizado na Reforma Psiquiátrica, é que esses internos deveriam ser submetidos a tratamentos de saúde e, quando necessária a internação, o recomendado é que fosse justamente na rede de saúde. 

Mas, no Brasil, a realidade é diferente. O cumprimento das medidas de segurança é extremamente atrelado à detenção em estruturas do sistema penitenciário, como os "manicômios judiciários” e, em paralelo, há uma dificuldade de acolhimento na rede de saúde desses pacientes dada a alegação de uma “suposta periculosidade”. A resolução do CNJ busca alterar esse quadro. 

No Stênio Gomes, atualmente, há 124 internos, conforme a SAP. Em entrevista ao Diário do Nordeste, na última terça-feira (16), o juiz corregedor de presídios de Fortaleza, César Belmino, informou que o número de internos era 123 e detalhou da seguinte forma a situação deles: 

  • 39 internos cumprindo medida de segurança;
  • 21 que cumpriram medida e foram desinternados;
  • 7 condenados em regime fechado (presos oriundos de outras unidades que no decorrer do cumprimento da pena ou na prisão provisória apresentaram algum problema de mental);
  • 4 internados compulsoriamente cumprindo determinação judicial; 
  • 36 cumprindo internação provisória;
  • 15 provisórios em tratamento
  • 1 em regime semi-aberto

De acordo com o juiz, César Belmino, atualmente não há nenhuma mulher inimputável que cumpra medida de segurança no Auri Moura Costa - unidade do sistema penitenciário para mulheres no Ceará. 

Para onde vão após fechamento do manicômio judiciário?

No Estado, representantes do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), da Defensoria Pública e do Governo do Estado, dentre outras entidades, como o Fórum da Luta Antimanicomial, vêm a algum tempo trabalhando a questão da saúde mental dentro do sistema prisional. 

“E agora, passado muitos anos, o Conselho Nacional de Justiça baixou essa resolução com o intuito de finalmente fazer com que essa lei aconteça. Nós tínhamos uma lei e essa lei não vinha sendo cumprida. Esse é o principal objetivo dessa resolução”.   
César Belmino
Juiz corregedor de presídios de Fortaleza

Um dos destinos dos internos deve ser as residências terapêuticas, moradias mantidas pelo poder público (Governo Federal, e geralmente, as prefeituras) que acolhem pessoas com transtornos mentais advindas de longas internações, e que, por motivos diversos, não puderam retomar laços familiares.

Essas casas são equipamentos da rede de saúde e nelas os residentes recebem assistência de equipes multidisciplinares. 

Porém, no Ceará, um dos grandes problemas é a quantidade insuficiente de residências. No Estado, há apenas seis unidades: três em Fortaleza e as demais em Icó, Iguatu e Sobral. 

Indagada sobre esse assunto, coordenadora de Políticas de Saúde Mental do Ceará da a Secretaria da Saúde do Estado (Sesa), Rane Félix, informou que a pasta “tem participado das discussões intersetoriais sobre a temática, nos âmbitos estadual e nacional, na perspectiva de viabilizar o atendimento com sustentabilidade para usuários e famílias”.

Ela disse ainda que “a pauta será discutida e encaminhamentos serão tomados após o encontro dos dias 18 e 19 de maio, em Brasília, com o Departamento Nacional de Saúde Mental”. 

Neste momento, informa, está em curso a reforma das instalações do Centro de Convivência Antônio Justa, em Maracanaú - equipamento que já abrigou pacientes com hanseníase - para que sejam instaladas duas novas residências terapêuticas. Com isso, 9 desinternados do Stenio Gomes serão acolhidos. Mas, não foi especificado nenhum prazo para a conclusão desta ação. 

Quais os obstáculos?

De acordo com o juiz, César Belmino, para que o fechamento do Stênio Gomes ocorra de fato é preciso executar alguns passos antes, dentre eles, identificar os equipamentos da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Estado nos municípios. 

“Sem essa identificação nós não temos como fazer isso. Porque para fazermos uma interdição parcial de uma unidade desse perfil nós precisaríamos ter alternativas e essas alternativas ainda não estão bem definidas ou ainda estão em construção”. 
César Belmino
Juiz corregedor de presídios de Fortaleza

A defensora pública, Luiza Nívea Dias Pessoa, reitera a necessidade de articulação entre uma rede de instituições para fazer cumprir a determinação do CNJ. E destaca que a resolução do dilema é, de fato, complexa. 

Dentre os maiores gargalos, conforme fontes ouvidas pelo Diário do Nordeste estão:

  • A não existência de leitos psiquiátricos em hospitais gerais;
  • Não existência de residências terapêuticas para onde os pacientes poderiam ser conduzidos durante a medida e após o seu cumprimento;
  • Superação de preconceitos quanto a pessoa presa e quanto a pessoa presa com distúrbio psiquiátrico;
  • A resistência e a rejeição das famílias em receber de volta esses internos.
  • A paralisação do financiamento da política nacional de desinstitucionalização nos últimos anos, o que afetou a possibilidade de expansão de equipamentos como as residências terapêuticas; 
  • O estigma social, que dificulta o retorno à família e à sociedade.

“Essa resolução é muito importante para que essas pessoas em sofrimento psiquiátrico possam ser vistas como seres humanos complexos. Elas praticaram ato ilícito, mas esse ato não diz respeito à totalidade dessa pessoa. Essa pessoa quando cuidada, quando medicada, quando assistida integralmente, pode se ressocializar”.
Luiza Nívea Dias Pessoa
Defensora pública

Ela destaca que “ficar em uma unidade com essas características asilares priva essa pessoa da liberdade quando, na verdade, ela não está cumprindo uma pena. Ela está cumprindo uma medida de segurança, que tem por fim curativo. A pessoa deve passar por uma tratamento, ela não deve ser privada de liberdade ou ser privada de liberdade no mínimo de tempo possível”. 

A coordenadora do Serviço Social da SAP, Cristiane Lima, reitera os desafios e reforça a difícil realidade de quem já foi desinstitucionalizado e precisa continuar no Stênio Gomes. Ela reforça que a rejeição familiar é um grande entrave.

“Muitas vezes, o crime foi cometido contra pessoas muito próximas.Nesse momento, os vínculos familiares são rompidos. Durante o cumprimento da medida, já enfrenta resistência e quando está prestes a sair, aí é que a família não quer mesmo”.
Cristiane Lima
Coordenadora do Serviço Social da SAP

Outro ponto fundamental ressaltado por ela é a articular a rede de saúde para que o interno ao deixar a unidade dê continuidade ao tratamento, bem como assegurar o recebimento dos benefícios sociais que ajudam na manutenção da vida cotidiana pós internação. 

Entidades médicas contrárias

Nessa discussão, o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Associação Brasileira de Psiquiatra (ABP), a Associação Médica Brasileira (AMB), a Federação Nacional dos Médicos (Fenam) e a Federação Médica Brasileira (FMB) assinaram um manifesto contra a Resolução 487 do CNJ. 

Para as entidades, o fechamento dos manicômios judiciários por conta da determinação do CNJ “pode trazer riscos à sociedade brasileira, com impactos sociais e na segurança pública”. Embora a norma siga o que preconiza a Lei da Reforma Psiquiátrica desde 2001, as entidades defendem que ela "foi formulada sem o debate necessário com o segmento médico".

O que é a Luta Antimanicomial?

A Luta Antimanicomial no Brasil é um movimento que inclui profissionais da saúde, familiares e pacientes da saúde mental, pela Reforma Psiquiátrica, e ocorre no país de modo mais intenso e organizado desde a década de 1970, tendo marcos normativos importantes nas décadas de 1980, como o 1º Congresso Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental, ocorrido em 1987, em Bauru, no interior paulista. 

O foco é a luta pelos direitos de pessoas que tem doença ou transtorno mental combatendo perspectivas de isolamento desses pacientes, como as políticas de internação em ambientes asilares. Um dos marcos de conquista do movimento da Reforma Psiquiátrica foi a aprovação da Lei 10.216/2001. 

O 18 de maio é o Dia Nacional de Luta Antimanicomial. Nesse movimento, a Reforma Psiquiátrica determinou o fechamento dos leitos em hospitais psiquiátricos e o desenvolvimento de outras perspectivas de tratamento na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), oferecendo serviços abertos, comunitários e territorializados.