A tragédia que as chuvas causaram no Rio Grande do Sul, neste ano, torna evidente os impactos das mudanças climáticas no Brasil: e o Ceará, mesmo na outra ponta do País, não está isento de efeitos como inundações, deslizamentos e enxurradas, segundo alerta um mapeamento do Governo Federal.
Fortaleza e outras 73 cidades cearenses estão na lista considerada prioritária pela Casa Civil, do Governo Federal, para monitoramento de desastres. Os municípios são acompanhados pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), unidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
O levantamento inclui 1.942 cidades brasileiras, e atualiza um estudo similar realizado em 2012, no âmbito do Programa Gestão de Riscos e Resposta a Desastres (2012-2015). Naquele ano, apenas 39 cidades cearenses constavam no rol. Hoje, são 35 a mais.
dos 74 municípios da lista, incluindo Fortaleza, estão vulneráveis a inundações. Outros 50 podem sofrer com enxurradas, e 24 com deslizamentos. Alguns são atingidos por mais de um evento, conforme o Cemaden.
Para ser considerada mais suscetível a esses desastres, a cidade deve atender a pelo menos um dos critérios:
- Constar na lista de 821 municípios críticos de 2012;
- Ter morte registrada relacionada a desastres entre 1991 e 2022;
- Ter pelo menos 10 registros de desastres entre 1991 e 2022;
- Apresentar pelo menos 900 pessoas desalojadas/desabrigadas entre 1991 e 2022;
- Ter pelo menos 500 pessoas em áreas mapeadas com risco geo-hidrológico;
- Apresentar alta vulnerabilidade a inundações, segundo o Atlas da Agência Nacional das Águas (ANA) de 2014;
- Registrar 400 dias ou mais de chuvas acima de 50 milímetros, entre 1981 e 2022, média de 10 dias por ano.
No Ceará, além de Fortaleza, localidades como Caucaia, Sobral e Juazeiro do Norte, por exemplo, constam entre as mais vulneráveis a eventos extremos causados por condições climáticas. O risco de deslizamentos, enxurradas e inundações é identificado nas quatro.
O número atual de municípios que se enquadram na lista de vulneráveis a esses sinistros poderia ser ainda maior, se fossem considerados os eventos climáticos de 2023 no Ceará (o estudo do Cemaden contempla apenas o período entre 1991 e 2022).
A cidade de Aratuba, por exemplo, na região serrana do Estado, não aparece entre as cidades mais vulneráveis, embora tenha registrado três mortes após um deslizamento, em março do ano passado.
A vulnerabilidade das cidades a esses eventos encontra um Ceará despreparado, com defesas civis locais desestruturadas, sem integração nem plano de trabalho definido para lidar com eventuais desastres, segundo análise de Haroldo Gondim, tenente-coronel do Corpo de Bombeiros e coordenador de Proteção e Defesa Civil do Estado.
O gestor ressalta que o órgão estadual “é de apoio”, e precisaria “compor um grande sistema” fortalecido em cada município cearense. “Mas nosso grande gargalo é a falta de estrutura de defesa civil dos municípios. Falta integração de forma mais sistemática e formal. O trabalho às vezes é feito por telefone”, situa.
Hoje, cidades e o Estado não têm um plano de ação definido legalmente para lidar com desastres climáticos. A gestão estadual, aliás, não tem informações precisas sobre as necessidades de cada município.
“Falta muita coisa. A Lei Orgânica do Município deve conter as competências e políticas de defesa civil, mas isso é uma grande fragilidade. Falta também pessoal, agente de defesa civil concursado, com estrutura, com veículo para visitas”, lista o gestor.
Haroldo relata que os órgãos de proteção municipais carecem de recursos “humanos, materiais e de logística”. “Na hora de um desastre, de um problema, o agente deve ser capaz de articular com todas as secretarias do município. Sem isso, vai ter dificuldade de conseguir recursos, meios, deliberação de algo”, pondera.
O coordenador da Defesa Civil do Estado observa que as equipes não têm uma continuidade. “Neste ano, vamos mudar as prefeituras. Todos os contatos que tenho com as defesas civis dos municípios vão se quebrar. É uma renovação que não é boa, porque não tem um trabalho contínuo, de quem conheces os territórios”, lamenta.
Para monitorar a situação das próprias cidades, o Estado depende, hoje, de dados de instituições nacionais, como o próprio Cemaden, o Serviço Geológico do Brasil e o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), segundo lista o coronel.
A nível local, o trabalho mais consolidado se refere ao acompanhamento dos recursos hídricos, feito por um comitê que inclui a Defesa Civil e órgãos estaduais atuantes na lida com o cenário de seca e estiagem - e não de chuvas extremas.
Temos que investir mais em Defesa Civil e conhecer mais o nosso Estado. As mudanças climáticas estão mandando vários avisos, não podemos esperar que aconteça algo pra pensar em como trabalhar.
A partir da publicação do Plano Nacional de Gestão de Risco de Riscos e Resposta a Desastres Naturais, que está em elaboração pelo Governo Federal, o Estado do Ceará terá o prazo de 1 ano e meio para produzir um documento local, como informa Haroldo.
“Temos o Fundo de Defesa Civil do Estado do Ceará, que hoje está sem recursos, mas preparado para receber em caso de desastres. E para o plano estadual, vamos levantar todas as nossas fragilidades, fazer o mapeamento dos riscos e saber qual a função de cada ator diante de eventos adversos.”
Alagamento, inundação e enxurrada
Os termos, apesar de se referirem a efeitos provocados por grandes quantidades de chuvas, são distintos, como define um artigo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea):
- Alagamento: água da chuva temporariamente acumulada em terrenos com baixa declividade, sem conseguir fluir por causa da planície do solo ou deficiência da rede de drenagem;
- Inundações urbanas: extravasamento das águas do leito principal do rio para a planície ribeirinha, que ocorre devido às cheias;
- Enxurradas: escoamento da água da chuva em regiões com grande declividade, de alto poder destrutivo pela sua alta energia e capacidade de arrastre, comum em encostas, morros etc.
Já o deslizamento, como descreve outro artigo do Ipea, se refere à "movimentação de materiais sólidos ao longo de terrenos inclinados", geralmente com relevo íngreme ou em encostas modificadas/ocupadas pela ação humana.
Áreas de risco no Ceará
As cidades apontadas como suscetíveis a desastres pelas chuvas se distribuem em diversos pontos do Estado, do litoral à serra.
O aumento populacional sem obras de infraestrutura que o acompanhem se torna um dos principais motivos para que as áreas de risco se multipliquem com velocidade, como avalia Cleiton Silveira, professor do departamento de Engenharia Hidráulica e Ambiental (DEHA) da Universidade Federal do Ceará (UFC).
“Houve um adensamento populacional em regiões ambientalmente frágeis, como terrenos inclinados de forma natural ou por ação humana, encostas dos rios etc. As pessoas que moram nessas regiões muitas vezes só descobrem que estão em áreas de risco depois de submetidas a algum evento”, pondera Cleiton.
O professor destaca que, em geral, as margens de rios, córregos ou canais nos grandes centros urbanos são as regiões mais propícias a desastres decorrentes das chuvas.
“Algumas dessas zonas são encontradas na periferia de Fortaleza, como na Barra do Ceará, Mucuripe e Vila Velha”, exemplifica. A nível estadual, Cleiton cita o Litoral Norte como área onde historicamente são registrados casos de alagamentos.
“Além disso, em regiões com topografia acentuada como algumas localidades do Maciço de Baturité e da serra de Ibiapaba é importante que as construções sejam feitas com devidos cuidados geotécnicos para que não haja risco de deslizamento”, complementa.
O uso de solos “pouco permeáveis” e a má gestão de resíduos sólidos, com acúmulo de lixo nas vias e nos reservatórios hídricos, também se somam aos fatores que tornam as cidades “suscetíveis a eventos extremos de chuva, com possíveis regiões com pontos de alagamento”, como observa o professor.
Chuvas extremas tendem a aumentar
Estado historicamente seco, o Ceará tende a vivenciar eventos de chuvas extremas com mais frequência, já que as mudanças climáticas podem alterar o padrão de precipitações em todo o Brasil, como contextualiza Cleiton Silveira.
“O que se espera é que, com a atmosfera mais quente, tenhamos mudança na intensidade, duração e frequência das chuvas, e isso pode afetar por exemplo a distribuição das precipitações ao longo do Ceará”, inicia o professor.
“Com essa mudança, o que pode ocorrer são chuvas mais intensas concentradas num espaço curto de tempo, o que pode levar a mais zonas de alagamento do que o que estamos acostumados”, alerta.
As secas, por outro lado, não deixarão de assolar o território cearense, devido à distribuição irregular das chuvas. “Isso exige políticas públicas importantes. É necessário pensar em estruturas mais robustas para resistir a essas intempéries”, recomenda o especialista.
O que é preciso fazer
As medidas para prevenir que inundações, enxurradas e deslizamentos atinjam a população do Ceará são múltiplas e exigem compromisso das gestões públicas, como salienta Cleiton Silveira.
“A prevenção começa no monitoramento em geral. Desde acompanhamento dos órgãos ambientais sobre desmatamento, até aquele em tempo real das variáveis meteorológicas, realizado pela Funceme, por exemplo”, cita.
É importante considerar o diálogo entre os diversos órgãos gestores do Estado, a fim de gerar um plano em caso de extremos para mitigar seus efeitos. Neste plano, devem ser claras as respostas em cada nível de extremo.
Outro fator importante diante das mudanças climáticas aceleradas são o desenvolvimento de “novas tecnologias para alerta precoce de eventos” e a própria educação ambiental da população, como destaca o professor.
“É importante ações educacionais sobre o lixo, sobre o meio ambiente e até mesmo sobre o risco de algumas ocupações, bem como o planejamento territorial, que exige órgãos fiscalizadores fortes e política habitacional que contemple os mais vulneráveis”, pondera Cleiton.
“A ciência precisa refletir em como atingir a população com informação útil e de qualidade”, finaliza.