A saga do cearense Antônio Conselheiro (1830-1897) foi um dos trabalhos importantes na trajetória artística de Zé Celso Martinez, dramaturgo falecido nesta quinta-feira (6). Ao longo da carreira, ele trouxe ao Ceará montagens como "Os Sertões" da sua companhia do Teatro Oficina Uzyna Uzona, que marcaram também a história do teatro cearense.
Em novembro de 2007, ele desembarcou com a trupe do Oficina para uma empreitada de cinco dias de apresentações no município de Quixeramobim, cidade natal de Conselheiro. O espetáculo, à época, foi considerado o maior já montado no Brasil, com 27 horas de encenação, uma equipe de mais de 100 atores e técnicos, 2,5 mil figurinos e 5 toneladas de cenários e objetos de cena.
O espetáculo chocou a população com cenas de sexo, nudez e de consumo de entorpecentes. Registros do Diário do Nordeste da época mostram que as apresentações dividiram opiniões. “É um espetáculo muito além de nossa época”, disse a espectadora Suerda Pinheiro. “Tem muita parte que a gente não entende. Mas é uma coisa muito bonita”, opinou Ana Raquel Souza na reportagem.
Pedro Igor Pimentel, gestor da Casa de Antônio Conselheiro, relembra a polêmica causada pela apresentação. “A cidade não estava preparada. Algumas pessoas reclamaram até nas rádios. Por outro lado, foi também uma ousadia muito grande dos militantes culturais da cidade, que faziam parte do Movimento Antônio Conselheiro e da ONG Iphanaq, responsáveis pela articulação da vinda do espetáculo, que contou com o apoio da gestão municipal da época”.
“Fico imaginando como seria hoje, com a polarização política mais acirrada que vivemos no Brasil dos últimos anos. Felizmente, retomamos os movimentos democráticos e diversas ações que valorizam a nossa Cultura. E o Zé Celso lutou fortemente por elas”, destaca.
Um dos articuladores responsáveis por trazer o espetáculo ao Ceará, Osvaldo Costa conta detalhes dos bastidores da vinda a Quixeramobim. O psicanalista relata que, à época, realizava um trabalho político na cidade e, oportunamente, havia uma audiência marcada com o secretário da Cultura do Ceará, Auto Filho, dois dias depois de saber o desejo de Zé Celso de vir ao Estado.
“Ele topou articular a vinda que foi se efetivando e se realizando muito pela participação da Prefeitura de Quixeramobim. O Governo aceitou financiar a vinda, porque a turnê só tinha o patrocínio da Petrobras para vir até Pernambuco”.
Foram quatro meses de preparação para a cidade receber a trupe. “Foi montada uma réplica do Teatro Oficina no então Quixeramobim Clube com capacidade para 800 pessoas. Zé Celso deixou marcas importantes para Quixeramobim e para o Brasil”.
Cortejo na cidade
A presença do dramaturgo no município também foi marcada por um cortejo, que aconteceu um dia antes do início do conjunto das apresentações. Na noite de uma terça-feira, elenco e produção técnica invadiram as ruas da cidade e eram aguardados por estudantes e pelo reisado do Boi Estrela, do mestre Piauí, na Praça da Estação.
Acompanhada dos moradores da cidade, a equipe teatral seguiu até à Casa de Antônio Conselheiro, dançando e cantando músicas como "Quixeramobim", canção de Nonato Luiz e Fausto Nilo, entoadas pelos tambores da banda de lata do projeto Dom Helder Câmara, da Escola Criança Feliz, formada por crianças do assentamento Recreio, do MST.
Quem rememora o momento é Pedro Igor. “No cortejo de acolhida ao grupo, fiz algumas fotos do Zé Celso, inclusive na Casa, e recordo da emoção de todos os envolvidos, ao final de cada apresentação. Foram cinco dias de espetáculo em que eu e meu irmão, mesmo jovens, acompanhamos de muito perto”, relata.
Pedro Igor destaca ainda que a apresentação no município foi um marco para a cidade e para o próprio grupo, uma vez que contribuiu para o processo de descentralização do acesso às artes, chegando ao sertão cearense.
O gestor da Casa descreve a apresentação que “recontou a história ao seu modo antropofágico, crítico e provocador” como uma catarse.
“Isso me colocou de vez como um apreciador das expressões artísticas brasileiras. Passei a acompanhar mais de perto o trabalho do Zé e todo o Teatro Oficina”.
Zé Celso e o teatro cearense
Nomes expoentes do teatro cearense também foram marcados pela vinda de Zé Celso ao Ceará. Silvero Pereira lembra, em coluna no Diário do Nordeste, que a primeira experiência com o dramaturgo foi justamente em Quixeramobim. No relato, o ator conta ainda como o paulista influenciou a criação do Coletivo As Travestidas.
“Posso dizer que este foi um grande acontecimento na história do teatro brasileiro, porque além de levar toda a grandiosidade e revolução poética para o sertão cearense, foi também uma verdadeira celebração e crítica sobre a história política, social e artística nacional”.
Ator, diretor e dramaturgo, Ricardo Guilherme tem na memória dois momentos marcantes, tanto na vida pessoal quanto na vida profissional, com Zé Celso.
“Durante a minha infância não me lembro de ter sido levado ao teatro, mas a primeira imagem teatral, pelo menos profissional, que eu guardo é exatamente a imagem da peça dirigida por José Celso Martinez Corrêa para o grupo Oficina que esteve em Fortaleza em cartaz, em 1971. Eu tinha 15 anos”.
Na ocasião, Zé Celso apresentava o espetáculo Galileu Galilei, na quadra do Sesc, no Centro de Fortaleza. “Eu já tinha começado a fazer teatro, mas eu tinha apenas alguns meses de estreia e, em determinado momento da peça, Zé rompeu na quadra do SESC e me pôs escanchado no seu ombro me levando para presenciar a cena em meio aos demais atores”.
“Na época, eu ainda não sabia, mas aquela sensação ao mesmo tempo desconcertante e fascinante era parte de uma estratégia que revolucionária o teatro do Brasil. Participei dessa encenação mesmo involuntariamente porque passei peça inteira no ombro desse ator e tentando me equilibrar e compreender aquele momento revolucionário para a história”.
Zé também esteve em Fortaleza em 2011 para apresentar o espetáculo “Dionisíacas”, no palco do Theatro José de Alencar. Foram quatro noites de apresentações que envolveram o público e instigou a pensar em temas como os bacanais do mito grego.
“Além dos encontros fora de cena, com Zé, esses momentos são lindos porque juntam as nossas duas paixões e ele é a primeira imagem de teatro que tenho, é a imagem de algo inventado por esta cabeça efervescente de novidade, de transversalidade do teatro”, finaliza.