Na última semana, uma história em quadrinhos virou inimigo no universo da terra plana. Falando assim, até parece enredo de gibi. Tudo começou quando a DC lançou a notícia de que o filho do Super Homem é bissexual. Foi o suficiente para um adulto de 33 anos perder o sono devido à orientação sexual de um desenho.
O atleta brasileiro recorreu à meca dos inconformados, a rede social. Desnorteado pela cena de dois heróis fictícios aos beijos não se conteve. O ataque disfarçado de opinião causou revolta. Rendeu debate público e a demissão do clube pelo qual atuava. “Infelizmente não pode mais colocar os valores de família acima de tudo” (SIC), argumentou.
Não é a primeira vez que os quadrinhos provocam discussões morais. Um dos casos mais notórios de censura ocorreu nos EUA dos anos 1950, quando os gibis foram acusados de promover a esculhambação e atentar contra a moral e os bons costumes.
Estas publicações causavam pânico por, supostamente, desvirtuar os jovens à “delinquência” e “depravação sexual”. Mulher-Maravilha, Batman e Robin agora estavam no time de vilões. Na Terra do Tio Sam, onde a “águia da liberdade” voa alto, os quadrinhos chegaram a ser queimados em fogueiras.
O episódio é contado por Sean Howe no livro “Marvel Comics: a história secreta” (2012). O jornalista contextualiza o período. “Os EUA pós-guerra, agora obcecados com a praga da delinquência juvenil, começaram a arrancar quadrinhos de temática criminosa das mãos dos jovens e, ao notar a permissividade sexual e a violência nas páginas, acharam que haviam encontrado a arma do crime”.
E aí, doutor?
Em meio ao fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), outros tipos de história caíram no gosto da criançada. A EC Comics reinava naquele mercado com títulos de terror, ficção e guerra. Casos de “Tales from the Crypt” e “The Vault of Horror”. “Os gibis de super-herói iam perdendo popularidade, pois não tinham mais inimigos do Eixo nem os leitores devotos que estavam em serviço no Exército”, descreve Howe.
A rejeição contra as revistinhas teve como porta voz a pessoa do Dr. Fredric Wertham (1895-1981). Desde os anos 1940, o psiquiatra alemão, especialista em atender menores infratores, demonstrava preocupação com a influência dos comics. Em 1954, ele lança o livro “A Sedução dos Inocentes”.
O estudo abalou as estruturas do setor e foi parar no Senado dos EUA. Para Wertham, todo mau comportamento era atribuído às nefastas HQs. Crimes, discórdia entre irmãos, rejeição a legumes e verduras e homossexualidade. Estas teorias foram a gasolina da “caça às bruxas”.
Para evitar o surgimento de leis mais severas pelo governo e abrandar o enxofre de políticos e grupos religiosos, Marvel, DC, EC (entre outras editoras), recorreram à criação do “Comics Code Authority”. Este “Código de Ética” definia as regras e gerou um selo de autocensura que passou a ser usado nas capas das HQs.
Não tinha autoridade legal, mas os distribuidores se recusavam a comercializar revistas que não tivessem o selo. Companhias faliram e quem continuou no mercado precisou rever o que andava escrevendo. A EC, por exemplo, abandonou títulos de terror (“Tales from the Crypt” e “The Vault of Horror”) e investiu no humor com a clássica “MAD”.
Santa treta, Batman
Autoridade brasileira nos estudos de quadrinhos, Nobu Chinen assina artigo no qual avalia o impacto de “A Sedução dos Inocentes” no meio acadêmico. O levantamento o coloca como uma das mais citadas obras sobre quadrinhos de toda a bibliografia mundial, constando em mais de 70 publicações, sejam elas elogios ou críticas.
O autor descreve que o cientista e sua equipe, percorram sete anos de pesquisa, entre análise dos quadrinhos e entrevistas com diversos jovens. Outro ponto debatido é que “A Sedução dos Inocentes” não pode ser o único responsável pela onda de perseguição aos quadrinhos, pois já havia rejeição a partir do final da década de 1940.
"Wertham cometeu o mesmo engano que ciclicamente acomete alguns setores: arranjar um culpado por um fenômeno social que está fora do alcance de sua compreensão. Os quadrinhos foram os perseguidos de então, mas a mesma acusação foi feita em épocas diferentes contra a TV, os videogames, os jogos de RPG e até o rock’n roll".
Manipulação
Um paradoxo recobre a biografia do doutor alemão, esmiúça a historiadora Jill Lepore. Ela é autora de “A História Secreta da Mulher Maravilha” (2014), trabalho de fôlego que investiga a criação da heroína amazona e seu poder no imaginário popular.
Wertham formou-se na Alemanha em 1921 e migrou para o EUA no ano seguinte. “Era um liberal, apoiador ardoroso particularmente da igualdade racial, e defensor do controle das armas de fogo”, identifica a escritora.
Lepore depõe que o psiquiatra defendia um controle mais rígido destes temas nas páginas dos quadrinhos. No entanto, a “depravação sexual” era o foco principal à caçada promovida pelo cientista. Dois heróis morarem juntos era inaceitável. “Esse tipo de história do Batman pode estimular crianças a terem fantasias homossexuais”, esbravejava.
Em 2013, a pesquisadora Carol Tilley, da Universidade de Illinois, publicou investigação científica na qual aponta que Frederic Wertham exagerou, comprometeu e fabricou evidências. Ela apresentou o estudo no Brasil, durante conferência inaugural das 6ªs Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos (2019). O “Código de Ética” foi extinto em 2011.