Produtora cearense assina animações que compõem 'O Auto da Compadecida 2'

Continuação da célebre obra do cinema nacional tem profissionais do Ceará na produção de trechos animados

"Não sei, só sei que foi assim". A célebre frase de Chicó, personagem criado pelo dramaturgo Ariano Suassuna e interpretado nas telonas pelo ator Selton Mello, é sempre anunciada ao fim dos causos que ele partilha.

“O Auto da Compadecida 2”, continuação da obra original de 2000, recupera o enunciado do personagem em diferentes sequências que, na tela, surgem no formato de cenas em animação que trazem DNA cearense, trabalho artesanal e referências à cultura nordestina.

A responsável pela produção da animação, do conceito à entrega final, é a Miríade, empresa formada majoritariamente por profissionais do Nordeste, em especial cearenses. Ao Verso, integrantes da equipe que participaram da produção partilham passos do processo, desafios e o reconhecimento da animação cearense no cenário nacional.

"Mentiras de Chicó" em animação

No longa — que estreou no último dia 25 liderando as bilheterias e se tornando a produção brasileira com a maior abertura de público do pós-pandemia —, Chicó e João Grilo (Matheus Nachtergaele) se reencontram décadas depois de separação. 

Aspecto comum da amizade entre os dois, as elaboradas e surreais mentiras contadas por Chicó ao amigo incluem um causo sobre a gravidez da mãe dele e a relação dele com a cabra Jureminha e o papagaio Erudito. Toda a representação visual delas é feita em animação, tendo sido produzida pela empresa cearense. 

40
profissionais formaram a equipe que trabalhou nas animações

No total, explicam Nathalia Forte — da Direção Executiva da Miríade — e Mariana Lage — coordenadora de Produção —, foram seis meses para realizar os três minutos de animação, com uma equipe de 40 profissionais. 

O convite surgiu no começo de 2024 e o processo teve início no final do primeiro trimestre. “Começamos o desenvolvimento das mentiras ainda em março, com ‘O Auto da Compadecida 2’ já todo gravado e em processo de pós-produção, com estreia agendada para o final de dezembro”, contextualizam as profissionais.

Retratos pintados e elementos nordestinos como inspiração

“A direção do filme (Guel Arraes e Flávia Lacerda) queria que essas histórias fossem imagens geradas a partir da animação stop motion. Como na animação a gente cria todo um universo do zero, pudemos brincar bastante com as mentiras do Chicó, enfatizando o absurdo de cada uma delas”, partilham.

“A Miríade trabalhou, juntamente com a direção da Flávia Lacerda, do Guel Arraes e do diretor de pós-produção Cláudio Peralta, para chegarmos a um conceito imagético que fizesse jus ao conceito do longa como um todo, mas que também pudesse ter sua própria estética de um sertão do nordeste feito a partir de olhares e mãos nordestinas”
Nathalia Forte e Mariana Lage
da Miríade Produção Animada

Havia, por parte de Guel e Flávia, uma “preocupação de ter uma representatividade legítima da visualidade e da cultura nordestina”. Isso se concretizou, por exemplo, a partir da escolha de adotar nas sequências em animação a estética dos conhecidos retratos pintados do sertão — e o auxílio do Mestre Júlio Santos foi essencial à equipe.

“Procuramos o Mestre Júlio que, muito gentilmente, recebeu a equipe de direção de arte para apresentar os processos do seus trabalhos. Passamos uma tarde no ateliê do Mestre conversando sobre os processos e as práticas do retrato pintado”, ressaltam.

Materiais comuns em festas populares nordestinas e em casas da região também foram utilizados na construção artesanal dos bonecos e demais elementos das cenas. Itens como panos de chão, tapetes de retalho, copos de café e grampos foram utilizados, por exemplo, na elaboração dos cenários.

Mais de mil “Chicós” de papel e tempo curto de produção

No processo de produzir as animações, foram utilizadas três técnicas diferentes: animação 2D digital, stop motion por substituição e stop motion de bonecos. 

Para efetivar a técnica do stop motion por substituição — utilizada para as movimentações do próprio Chicó nas cenas —, foi necessário, por exemplo, imprimir e recortar mais de 1,6 mil “Seltinhos”, como descrevem Nathalia e Mariana. 

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'Chicós' impressos, recortados e pintados à mão foram utilizados na técnica do stop motion por substituição

Já para “dar vida” à cabra Jureminha e ao papagaio Erudito, foram construídas algumas unidades de bonecos em diferentes tamanhos e cores, com constantes “reformas” de cada um pela “bonequeira” Isabela Lopes. “São bonecos que precisam ter uma resistência maior, já que vão sendo posados em cada foto pelo animador”, explicam.

6
meses durou o processo total de produção das animações

Ainda que impressione saber que a realização dos três minutos de animação durou seis meses, o maior desafio citada por Nathalia e Mariana foi justamente o tempo. “A animação num geral precisa de mais tempo de produção do que uma obra em live action”, apontam.

“Precisamos ser bem criativos para termos uma metodologia de trabalho em que a gente pudesse ter uma velocidade maior de produção, mas ainda sem perder a qualidade do produto final”, seguem Nathália e Mariana.

Reconhecimento da animação cearense a nível nacional

Partes importantes do processo de realização das cenas, como a pré-produção de arte e a animação foram feitos na Casa Amarela Eusélio Oliveira — espaço formativo de audiovisual da Universidade Federal do Ceará que possui um núcleo de animação — e no Bochecha Studio — estúdio de animação stop motion cearense.

Na parceria com a Casa Amarela, tanto salas e equipamentos foram utilizados, quanto pessoal participou da produção das animações para o longa. Em contrapartida, a Miríade irá ministrar um curso intensivo de Produção para Animação em janeiro. Com realização on-line, a formação já está com inscrições abertas.

Para Nathalia e Mariana, a participação de profissionais e conhecimento cearenses em “O Auto da Compadecida 2” é uma “honra” e, de maneira relevante, “uma oportunidade de trazer os olhares do público brasileiro pra cá, para o que está sendo produzido aqui”.

“Após a conquista da cota mínima dos recursos dos editais para a animação desde 2016, temos uma produção cada vez maior de curtas e séries animadas cearenses. Isso fora as produções de longas e séries sendo produzidas atualmente. O Ceará tem trilhado seu próprio caminho, formando animadores, ilustradores e outros profissionais que atuam na animação em todas as partes do Brasil”
Nathalia Forte e Mariana Lage
da Miríade Produção Animada

Apesar desse cenário de conquistas, pontuam, “ainda não somos vistos pelo mercado nacional e internacional como um pólo de produção de animação”. 

“Estar na sequência do filme ‘O Auto da Compadecida’, tão presente na nossa vida e de tantos brasileiros, não só é uma honra como também uma oportunidade de sermos vistos como profissionais da animação que entregam um produto de alta qualidade”, celebram as duas.

Miríade Produção Animada

No mercado desde 2020, a Miríade Produção Animada oferece diferentes serviços para obras em animação, incluindo direção de produção, coordenação, produção de linha e assistência de direção. Entre outras obras nas quais ela trabalhou, estão "Te Prego Lá Fora", um especial de natal animado do grupo Porta dos Fundos, e obras seriadas dos canais Gloob e Gloobinho. 

Além dessa atuação, a Miríade também tem trabalhado ofertando formações para produtores de todo o País. "Com os cursos, queremos que outras pessoas possam entrar no mercado mais preparadas para o que vão enfrentar, e com mais know-how e confiança na própria capacidade de colocar a produção dos projetos para frente de modo eficiente e criativo", atestam as profissionais.