Para viver o luto na pandemia, especialistas recomendam rituais de despedida adaptados

Respeitando os cuidados sanitários, ritos culturais simbólicos podem ajudar enlutados a vivenciar essa fase

Antes de tudo, se você perdeu alguém recentemente, sinta-se abraçado. Ainda que não seja possível expressar essa condolência fisicamente, não estamos impedidos de sentir; e como lamentamos a morte de 2,9 milhões de pessoas por Covid-19 em todo o mundo, mais de 350 mil delas só no Brasil. Escrever isso também é um ritual.

Com as cerimônias fúnebres suspensas ou restritas para atender às medidas sanitárias de contenção do vírus, lidamos com a ruptura de uma “importante instituição cultural”, como explica o professor George Paulino, coordenador do Laboratório de Antropologia e Imagem (LAI) da Universidade Federal do Ceará.

“A impossibilidade de realizarem-se presencialmente os ritos de despedida certamente projeta uma carga maior sobre esse sofrimento, dificultando a elaboração do luto em sua fase inicial, tanto em termos socioculturais, quanto no processo de subjetivação”, observa.

Segundo o pesquisador, do ponto de vista antropológico, os rituais fúnebres sinalizam a passagem de uma pessoa do "mundo dos vivos" para o "mundo dos mortos". E é muito comum observar que tais ritos estão, de algum modo, relacionados ao universo simbólico das religiosidades, do sagrado.

“A antropologia da morte nos ensina que o universo de crenças referente ao chamado post mortem preceitua a necessidade de preparação da alma do morto, durante o estado de liminaridade que antecede o sepultamento ou outras formas de finalização da matéria, para que se efetue o desprendimento da matéria e a aceitação da nova condição. Tais preceitos têm também a finalidade de preparar os que ficam no mundo dos vivos para a elaboração social do luto”, identifica.

Funções comprometidas

A impossibilidade de realizar esses processos compromete duas funções básicas dos rituais funerários, segundo o professor de “Introdução à Tanatologia” para as graduações de enfermagem, medicina, serviço social e psicologia da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Erasmo Ruiz: a afirmação coletiva de que determinado indivíduo transitou do “papel de vivo” para o “papel de morto”; e a consolidação da ideia de que a morte ocorreu, mas que também é possível negá-la.

“Tome-se como exemplo as missas de corpo presente no ritual católico. Ao oficiar a missa, o sacerdote fala sobre a morte da pessoa, mas ao mesmo tempo afirma que um dia estaremos novamente juntos depois que a ressurreição acontecer. Em termos psicológicos, é essencial que os vivos aceitem que a morte tenha acontecido, mas que sejam abertos espaços para que a esperança e a memória do morto sejam celebradas”, contextualiza Erasmo.

O pesquisador observa que o contexto de pandemia gera maiores dificuldades de se elaborar as tarefas do luto e assim, há maiores chances de que esse luto possa se complicar.

“Quando esse processo parece se perpetuar no tempo produzindo dificuldades ao indivíduo no retorno de suas atividades cotidianas (ser produtivo no trabalho, investir nas relações interpessoais, bons relacionamentos afetivos etc.) podemos dizer que o processo de luto se complicou. Na maioria dos casos, as pessoas nessas condições precisarão de algum tipo de suporte especializado”, indica.

Despedidas alternativas

Tendo em vista essas implicações, Erasmo Ruiz acredita que devemos buscar alternativas diante das impossibilidades. “Realizar rituais online pode funcionar como algo que minimize o sofrimento e ofereça alguma forma de apoio emocional. A transmissão de velórios pela internet pode suprir a necessidade de participação nos rituais de um maior número de pessoas. Fazer reuniões pela internet com o objetivo de celebrar a memória ou fazer cultos e/ou missas funcionariam como boas ações substitutivas”, defende o profissional, que é graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP).

Neste sentido, iniciativas como o Guia de Homenagem Póstuma Virtual e o Memorial Inumeráveis ajudam a cumprir esse papel de dar suporte e conforto aos familiares enlutados. A plataforma “Vamos falar sobre o luto?” é outra que oferece acolhimento profissional nesse contexto.

Falar de quem se foi, lembrar histórias, cantar canções, ler textos, escrever homenagens e memórias afetivas em um documento compartilhado que pode ser transformado depois em um livro de memórias são algumas das dicas de rituais adaptados dessa plataforma. 

Orações em vídeo-conferência ou simplesmente marcar um horário para que a família e amigos, cada um de sua casa, dirijam atenção e preces ou pensamentos ao falecido e aos enlutados; pedir para que acendam uma vela em um mesmo momento e compartilhem por WhatsApp também é simbólico, segundo esta rede de profissionais especialistas em luto.

Depois que a pandemia passar, fazer reuniões presenciais para realizar rituais também pode ser algo relevante, de acordo com Erasmo Ruiz. “Poder estar numa igreja com uma grande fotografia do morto ornada por flores ou então um cerimonial diante do túmulo com certeza seria algo muito consolador. O luto é um processo que implica em cumprimento de etapas, o que os psicólogos chamam de ‘tarefas do luto’”, detalha.

“Historicamente, realizar rituais sempre foram ações que facilitaram a realização dessas tarefas. Óbvio que cada indivíduo tem formas e estratégias para lidar com o luto, entretanto, os rituais e as reuniões familiares feitas para sua realização cumprem essa importante função de oferecer espaços onde as dores possam ser acolhidas mutuamente, o que com certeza mais ajuda do que atrapalha”, completa Erasmo.

Driblando tabus

O estudioso lembra ainda que a pandemia é um imenso “memento mori”, expressão latina muito usada na filosofia e que quer dizer “lembre-se da morte”. Aliás, este confronto em si já representa uma ruptura, como observa Diego Benevides, jornalista doutorando e pesquisador da representação da morte nas imagens pela Universidade Federal do Ceará.

“Esse é um tema que a sociedade ocidental, em geral, recusa a pensar com frequência. Os veículos de comunicação têm a importante função de informar sobre os desdobramentos não apenas da doença, mas também de como tem afetado e colapsado o sistema de saúde e a indústria funerária, além de como o risco constante e a luta contra um inimigo invisível também afetam a nossa saúde mental”, pontua o comunicador.

Segundo ele, as muitas imagens na mídia nos ajudam a compreender a complexidade da pandemia e, consequentemente, a entender como estamos morrendo. “São capas de jornais com jazigos abertos, filas de espera por atendimento em hospitais, depoimentos de quem superou a doença, pessoas sendo vacinadas, entre tantas outras formas de ‘visualizar’ a pandemia. São imagens que podem nos entristecer da mesma forma que podem nos dar esperança de melhoras”, acredita.

Erasmo Ruiz partilha dessa mesma opinião. “Em meio a tanta dor e sofrimento, o contexto nos lembra todo tempo de que nós vamos morrer e assim  pode nos estimular a deixar menos coisas para se fazer amanhã e assim priorizar o hoje e, dessa forma, viver mais. Todos nós temos sonhos e projetos. Alguns são mais difíceis e talvez exijam toda uma existência para sua realização. Porém, outros são singelos e fáceis de serem realizados”, defende, num convite a dizer aquele “eu te amo” atravessado na garganta, por exemplo.

“A pandemia com toda sua crueza vem nos dizer que a vida é hoje e que Renato Russo estava certo: ‘É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã’”, finaliza.