O que festivais de música do Nordeste têm feito para se manter em meio à crise do mercado de eventos

Em entrevista ao Verso, produtores dos festivais Zepelim (CE), Mada (RN), Afropunk Bahia (BA), Carambola (AL) e No Ar Coquetel Molotov (PE) compartilham estratégias para manter eventos multigênero em atividade

O Brasil vive um momento delicado no mercado de shows e festivais. Desde o início deste ano, o setor foi marcado por cancelamentos, adiamentos e incertezas, após um período de crescimento pós-pandemia, quando a demanda represada do público resultou num aumento significativo de eventos. 

Ainda que a crise vá além do contexto local – afetando até festivais maiores, como o Primavera Sound, que se retirou da América Latina em 2024, cancelando a edição brasileira em São Paulo –, estados do Norte e do Nordeste têm enfrentado maior dificuldade de manter seus festivais ativos.

Segundo a plataforma Mapa dos Festivais, que compila eventos de música de todo o Brasil, em 2023, o Nordeste teve pelo menos 58 festivais de música. Em 2024, até o momento, esse número caiu para 50. Destes, um foi cancelado e dois adiados, enquanto alguns dos que seguiram precisaram fazer reestruturações.

O momento atual é considerado decisivo, porque deve definir como serão os próximos anos no mercado de eventos: a tendência é que, fazendo as mudanças necessárias, os festivais possam alcançar a sustentabilidade financeira, tornando-se, assim, projetos duradouros.

Apesar dos prejuízos, Juli Baldi, diretora do Mapa dos Festivais e da agência Bananas Music, destaca que esse movimento já era esperado – afinal, o boom dos festivais entre 2022 e 2023 foi fruto de um momento histórico atípico, quando as pessoas “estavam sedentas por sair de casa, ter uma experiência legal e contato físico com outras pessoas”.

“Quando houve essa demanda, teve uma oferta maior também, e produtoras e pessoas que às vezes não tinham feito nenhum festival e viram outros festivais dando certo entraram nessa”, explica.  “Mas ano passado a gente já viu sinais de cansaço, o que é meio lógico: com tanto festival, isso é sustentável?”, questiona.

Para Juli, a crise deste ano é algo “natural da indústria” e reflete um ajuste do mercado. “A gente está passando por uma adaptação do mercado, então é claro que alguns festivais não vão voltar, mas isso acontece todo ano. É normal do mercado festivais pararem de existir e outros serem criados”, explica.

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No entanto, o impacto não atinge todo o País da mesma forma. “O grande problema do Brasil hoje é a grande concentração de patrocínios e festivais no Sudeste”, destaca. Mesmo com desafios, Baldi destaca que o Nordeste vem conseguindo manter “uma safra de festivais muito interessante”, com destaque para eventos que contemplam diversos gêneros musicais e que têm um DNA autêntico.

Em entrevista ao Verso, produtores de cinco festivais nordestinos compartilharam as estratégias para manter os eventos de música ativos e em constante evolução de curadoria e logística.

Em Fortaleza, Festival Zepelim aposta na reestruturação e no reforço da marca

O público cearense que ficou órfão de eventos como o Ceará Music e a Maloca Dragão ganhou uma nova opção de festival há pouco mais de dois anos, ainda durante a pandemia. Inicialmente pensado como um evento itinerante, o Festival Zepelim aconteceu pela primeira vez na Capital em 20 de agosto de 2022 e, já na primeira edição, recebeu 14 atrações, com nomes como Alceu Valença, BaianaSystem, Marina Sena e Luísa Sonza.

Posicionado como um festival que reproduz o formato de grandes players nacionais – indo além da música e incluindo ativações com marcas como parte da experiência –, o Zepelim teve um aumento expressivo na estrutura na segunda edição, realizada em agosto de 2023, que teve dois dias de evento e 22 atrações musicais.

Porém, neste ano, a crise no mercado de eventos exigiu que a organização recalculasse a logística da festa. Na terceira edição, que foi inicialmente anunciada com dois dias de evento, o festival voltou a acontecer em apenas um dia, com 12 shows, em uma tentativa de reduzir gastos e manter a periodicidade anual.

Sócia-fundadora e diretora geral do Zepelim, Gabriela Parente explica que a reestruturação foi necessária para manter o festival de pé, não só em 2024, mas a longo prazo – e destaca que a estratégia não é exclusiva do festival cearense.

“Dentro de uma realidade financeira, a gente buscou reduzir a crise para poder entregar. E a gente conseguiu, com essa manobra de um dia, ter um retorno muito positivo”, pontua. “Teve ônus e bônus financeiros, mas pra gente foi uma necessidade – que fez a gente compreender que talvez Fortaleza tenha mais perfil de um dia de festival mesmo”, completa.

Hoje a gente tem consciência que o mercado de eventos como um todo está passando por uma crise de público. Isso é reflexo da situação socioeconômica do país como um todo: o entretenimento se torna um supérfluo, não está dentro do orçamento prioritário. A gente também entende que a chegada das bets afetou o setor econômico como um todo."
Gabriela Parente
Diretora do Festival Zepelim

A gestora também avalia que, além da crise nacional no mercado de eventos, o Ceará e o Nordeste possuem questões próprias que dificultam a realização e manutenção de festivais multigênero.

“O mercado que a gente atua não é o mercado prioritário no Ceará. Aqui [a prioridade] é o forró, o piseiro, o arrocha. E todo movimento ‘contracultura’ tem uma dificuldade maior de crescer”, pontua Gabriela. Outro desafio para a realização de festivais em estados nordestinos é o aumento do custo dos cachês artísticos, somados aos altos valores de passagens aéreas, hospedagem, alimentação e logística. 

“Com muita gente procurando, gerou uma oferta de procura que aumentou o valor [do cachê]”, explica Gabriela. “E a gente sabe que tem passagens internas no país que, às vezes, são mais caras do que ir para fora. Isso é algo que atrapalha muito a gente”, completa.

Dessa forma, o line-up mais enxuto de 2024 talvez seja a resposta para que a organização possa sonhar mais alto nas próximas edições – e os planos para 2025 já estão a todo vapor. Segundo Gabriela, a sonhada itinerância por outras cidades do Nordeste pode ser concretizada ainda no ano que vem, mas o objetivo principal, no momento, é fortalecer a marca no Ceará, estreitando a relação com o público.

“Estamos amadurecendo outros estágios de coisas que a gente queria trazer para o festival. Fora o festival, queremos começar a promover alguns shows multigênero em lugares diferentes da Cidade”, conta Gabriela. 

O projeto, intitulado Zep Sessions, deve começar em janeiro e funcionar como uma “esquenta” para o festival, que deve passar de agosto para o mês de outubro. Por enquanto, estão previstos três Zep Sessions em 2025, e o primeiro deve acontecer já no mês de janeiro. Datas e atrações para os dois projetos ainda serão divulgadas.

Serviço
Próxima edição: Segundo semestre de 2025
Atrações: A confirmar
Mais informações: @festivalzepelim

Em Natal, festival Mada tem line-up com “pé no chão” e foco na música brasileira

Um dos festivais mais longevos do Nordeste, o Festival Mada – Música Alimento da Alma nasceu como a maioria dos eventos do estilo: gratuito e na rua, com o intuito de movimentar uma cena artística pulsante, mas com poucos palcos e eventos. 

Na onda de crescimento dos festivais dos anos 2000 – que incluiu, por exemplo, a consagração do Ceará Music –, o Mada foi se transformando em um evento de maior porte e começou a incorporar, além de artistas potiguares, nomes de alcance nacional e atrações internacionais. 

Curador do evento desde 2022, o cearense Pedro Barreira conta que no ano passado, mesmo em um bom momento para o festival, já começaram a surgir dificuldades: os cachês e custos logísticos aumentaram, bem como o número de festivais no País, e, mesmo realizando uma edição histórica, com 30 mil pessoas, os organizadores começaram a se preparar para uma nova fase.

Para a conta fechar nas últimas edições, no ano passado, a curadoria focou em artistas nordestinos, geograficamente mais próximos do Rio Grande do Norte. Neste ano, foi possível diversificar as regiões e manter os dois dia de evento sem deixar de lado aspectos importantes da curadoria, como diversidade de gênero e de ritmos, mas com line-up “pé no chão”, sem atrações internacionais ou com custo logístico muito alto. 

“Teve muito artista que foi muito parceiro do festival, que entende esse contexto de ‘pô, a galera tá no Nordeste, é um outro investimento que se faz’. ‘Não, beleza, a gente vai negociar com você, vai levar um pessoal a menos na equipe’. Muito disso possibilita sustentar a vinda de um artista que está programado dentro do que a gente quer”, conclui.

Serviço
Próxima edição: 18 e 19 de outubro de 2024
Atrações: Xande canta Caetano, Pitty, BaianaSystem, Duda Beat, Djonga, BK', FBC, Fresno, Duquesa, Ana Frango Elétrico, Ebony, Gracinha, Cami Santiz, BADSISTA, Ramemes, Mago de Tarso
Ingressos: A partir de R$ 130 | Vendas no Ingresse.com 
Mais informações: @festivalmada

Afropunk Bahia ousa em line-up, mas alinha expectativas de lucro para seguir 

Um dos principais festivais do Nordeste atualmente nasceu bem longe daqui, em Nova York (EUA), na década de 90. Itinerante, o Afropunk começou a excursionar o mundo em países como África do Sul, Inglaterra e França antes de chegar ao Brasil em 2021 – com atraso de um ano, por conta da pandemia –, mas parece ter sido feito especialmente para Salvador (BA), a cidade mais negra fora do continente africano.

Valorizando artistas negros de diversos gêneros musicais e localidades, o festival chegou ao Brasil por meio de uma parceria com a agência full-service IDW, com o intuito de se firmar como um festival global sediado no Nordeste do País e atrair a atenção do mercado publicitário.

“Tudo que acontece no eixo Rio-São Paulo é considerado nacional e fora é regional. Isso implica em menores investimentos, menor atenção, menos atratividade”, lamenta a CEO da IDW, Potyra Lavor. 

“Por isso, para além de toda a relevância cultural do projeto, que é inquestionável, além das questões raciais, de gênero e sustentabilidade, a gente veio trazendo dados do impacto [do evento]”, explica a gestora. Segundo Potyra, o Afropunk movimenta  cerca de R$ 19 milhões – boa parte deles direcionada para artistas e empreendedores negros.

Além da edição principal na capital baiana, em 2024 o Afropunk tem expandido o evento para outras cidades, como Belém e São Paulo, com o formato Experience, uma espécie de versão pocket do festival. Todas as atividades são lideradas por um time quase 100% nordestino, majoritariamente feminino e negro, destaca Potyra.

Outro aspecto relevante em relação ao evento é a manutenção de valores acessíveis para que o público tenha acesso aos shows, segundo a gestora. Para fechar essa conta, porém, é preciso um trabalho refinado junto às marcas.  “Certamente a gente só consegue expandir por conta da presença das marcas e da IDW, enquanto empresa, que fortaleceu o investimento em um momento que talvez não fosse nem lógico”, comenta Potyra.

Neste ano, nomes internacionais de peso, como Erykah Badu e Lianne La Havas, se juntam a talentos nacionais, como Duquesa, Jorge Aragão, Leo Santana, Planet Hemp e o cearense Mateus Fazeno Rock.

“Foi muito difícil chegar até aqui, ainda mais quando se fala de um festival de cultura negra, no Nordeste, vários recortes que o mercado ainda não enxerga”, afirma Potyra. “A gente sai perdendo [dinheiro], muitas vezes, mas estamos apostando numa construção mais a frente. Não vamos baixar a qualidade visando maior ganho”, completa.

De olho em 2025, Potyra revela que no ano que vem, além da edição principal, a IDW deseja realizar dois ou três Afropunk Experience em cidades brasileiras – uma das cidades estudadas para receber o evento é Fortaleza. 

“É um desejo de todo o time, mas a gente está indo de pouquinho nesse processo. A gente sabe que tem talentos incríveis em Fortaleza, mas às vezes o mercado não olha pra essa presença preta histórica, e queremos colaborar com esse movimento nacional”, pontua Potyra. “Certamente vai acontecer – se não em 2025, quem sabe no ano seguinte”, conclui.

Serviço
Próxima edição: 9 e 10 de novembro de 2024
Atrações: Erykah Badu, Lianne La Havas, Duquesa, Ebony, Fat Family canta Tim Maia, Ilê Aiyê convida Virgínia Rodrigues, Irmãs de Pau convida Evylin, Jorge Aragão, Larissa Luz, Leo Santana, Mateus Fazeno Rock, Melly, Planet Hemp, Silvanno Sales, Timbalada
Ingressos: A partir de R$ 80 | Vendas no Sympla 
Mais informações: @oafropunkbrasil

Em Maceió, Festival Carambola foca na conexão com o público para crescer

Criado em 2017 com o intuito de ampliar o circuito de shows em Maceió, o Carambola surgiu para impulsionar artistas alagoanos, mas hoje já inclui, além de artistas da terra, nomes de alcance nacional e até internacional nos line-ups. 

Segundo a sócia-diretora do festival, Didi Magalhães, o evento, que começou pequeno, hoje já conta com um público significativo para a cidade: mais de 5 mil pessoas costumam comparecer às edições, que reúnem diversos estilos musicais. O evento ainda conta com um braço educativo, com programação formativa focada na qualificação profissional da cadeia produtiva da música do estado.

A diretora explica que, após a pandemia, houve uma crescente de lançamentos e eventos musicais em Alagoas por conta da Lei Aldir Blanc, que injetou capital nunca antes visto na cultura do estado. Porém, o acesso aos recursos revelou também a quantidade de projetos que não chegavam às ruas por falta de oportunidade.

“Isso também revelou pra gente a necessidade de Alagoas ter a sua própria lei de incentivo, algo que não seja de caráter emergencial e sim permanente. A nossa maior dificuldade hoje – e de outros agentes artísticos alagoanos – é justamente ter um apoio constante aos nossos projetos”, destaca Didi. 

A solução para manter o Carambola frequente e com line-up atrativo, posicionando-o como um evento em ascensão no Nordeste, foi a mesma utilizada por outros eventos da região: captar recursos da iniciativa privada e fazer parcerias com órgãos públicos. 

Além disso, o festival passou do primeiro semestre para o segundo, mais movimentado no setor, o que costuma reduzir custos – se um artista já vem para um estado do Nordeste é mais fácil que outro da mesma região consiga cachê e logística a bons preços, resumidamente. Mas, claro, o trabalho de curadoria vai além: é preciso se conectar com o público.

“Nossa curadoria se desenvolve a partir de Alagoas, o que faz sentido para nosso público hoje, reservando espaço para nossas atrações locais também. O circuito nordestino nos ajuda a entender as tendências e movimentos, mas não necessariamente direciona nossas decisões”, destaca Didi.

Serviço
Próxima edição: 15 de novembro de 2024
Atrações: Coletivo Afrocaeté convida Chau do Pife, Liniker, FBC, Hermeto Pascoal & Grupo, Ana Frango Elétrico, Flora, Alice Gorete, Boby CH, Cavalo de Pau, Bandalos Chinos, Juliana Linhares convida Fernanda Guimarães
Ingressos: A partir de R$ 110 | Vendas no Ingresse.com 
Mais informações: @festivalcarambola

No Recife, Coquetel Molotov impulsiona música independente com foco social

Um dos destaques do mercado musical do Nordeste, o No Ar Coquetel Molotov começou de forma despretensiosa, quando um grupo de cinco estudantes de jornalismo decidiu fazer uma programa de rádio na Universitária AM de Recife em 2001. Três anos depois, uma das integrantes do grupo, Ana Garcia, decidiu transformar o projeto em um festival que valorizasse a música independente.

“A ideia do Coquetel Molotov era justamente trazer artistas pequenos, independentes e apostas, além de nomes internacionais que amávamos e que raramente tinham a chance de se apresentar no Nordeste”, lembra Ana. Em 2024, 21 anos depois, o Molotov mantém a essência indie e costuma apostar em um mix de nomes de grande sucesso e artistas que ainda estão despontando no mercado. 

“Nós entendemos que o gosto musical de uma pessoa é plural, por isso o Coquetel Molotov inclui desde cultura popular até música indie, MPB, eletrônica e até brega funk”, completa Ana.

Mesmo consolidado no mercado, o Coquetel Molotov não ficou imune à crise pós-boom de festivais. A fase de desgaste fez com que o festival precisasse repensar a estrutura e evidenciar, além do DNA autêntico, as ações sociais que a produtora desenvolve. 

“Desde 2017, o Coquetel Molotov e nossa produtora têm investido em acessibilidade, sustentabilidade, equidade de gênero e iniciativas como a lista trans e PCD free, mas agora isso se tornou ainda mais central em nossa missão”, destaca Ana.

Ainda que os desafios sejam muitos e exijam criatividade na hora de captar recursos junto a entes públicos e privados, Ana acredita que é possível ter esperança em um mercado de shows menos concentrado no Sudeste, que valorize os talentos e produtores nordestinos.

“O mercado de shows no Nordeste, apesar das dificuldades, também oferece oportunidades, principalmente com empresas que começam a entender o valor da cena cultural nordestina e estão mais dispostas a investir. Estamos focados em encontrar essas parcerias e fortalecer o que sempre foi a essência do festival: ser inovador e socialmente relevante”, conclui.

Serviço
Próxima edição: 7 de dezembro de 2024
Atrações: Ajuliacosta, Amaro Freitas Trio, Baile Charme + DJ Corello, bar italia (UK), Dandarona, DJ BJ3 + Zoe Beats, DJ Ramon Sucesso, Ebony, Gaidaa (Países Baixos), Luísa e os Alquimistas, Jaloo, Jéssica Caitano +  Samba de Coco Raízes de Arcoverde, Mu540, Nailson Vieira, Nega do Babado + Rayssa Dias, RONI (França), Paulete Lindacelva, Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, SPEEDTEST convida Chediak, Tati Quebra Barraco, Ventura Profana e Zaynara
Ingressos: A partir de R$ 80 | Vendas no ShotGun 
Mais informações: @noarcm