Espetáculo 'Histórias de Acordar o Amanhã' conta história da Cia Vidança

Em apresentação única, montagem aborda também relação da Associação com o bairro Vila Velha, onde é sediada

Não é difícil ser fisgado por um sorriso nos corredores da Associação Vidança. Revestida de delicadezas do chão ao teto - como dá para ver nas garrafinhas de plástico suspensas com dizeres que traduzem o sentimento do mundo - a casa é espaço onde transita uma farta quantidade de pessoas destinadas a enxergar, na arte, melhores perspectivas de vida e futuro. Os doces olhares e gentilezas gratuitas vêm a tiracolo desse investimento no pequeno, disso que vai se agigantando até se tornar coisa incontrolável e se reflete em atos que dão gosto tornar conhecimento de todos.

Ray da Silva, de 8 anos, é um dos que se valem das miudezas do ambiente para perseguir o sonho de se tornar bailarino profissional. O garoto iniciou as atividades na companhia no início deste ano - "no dia do meu aniversário, dia 8 de janeiro", faz questão de destacar - e, desde a data, tem revitalizado a paixão pelo movimento corporal, tornando-o presente diário. "Eu nunca tinha feito aula de balé antes. Mas, aí, quando cheguei aqui por uma amiga minha, comecei a ficar interessado. Hoje, gosto muito do balé clássico", revela.

Quando perguntado quem é sua maior inspiração na dança, ele timidamente aponta para Bárbara Araújo Saldanha, aluna veterana da instituição. Com 14 anos de idade, há seis ela divide experiências com professores e amigos e já se apresentou em vários palcos da cidade por meio da escola, não disfarçando o quanto é apaixonada pelo que faz. "A dança é o que mais amo fazer. É a única coisa onde realmente encontro prazer, em que me sinto bem fazendo. Não tem como explicar com palavras, eu simplesmente amo".

Dois sonhadores, duas trajetórias de apego à arte que unirão particularidades e virarão fluxo comum nesta sexta-feira (7), a partir das 19h, no Cineteatro São Luiz. É lá que acontecerá a apresentação do espetáculo "Histórias de Acordar o Amanhã", montagem da Vidança que atravessa a trajetória da casa ao rememorar pessoas, fatos, conquistas e, de forma especial, a relação que desenvolve com o entorno, com as ruas e moradas do bairro Vila Velha, na Capital.

Vivências

A idealização e direção da empreitada são assinadas por Anália Timbó, fundadora do projeto. Em conversa animada com o Verso, a coreógrafa e bailarina explica que o espetáculo surgiu a partir de vivências realizadas com as mais de 200 crianças participantes da instituição. Durante esses momentos, uma pergunta foi definitiva para dar o pontapé à ação e alavancar trabalhos: como elas chegaram ao Vila Velha?

"Sempre no início de cada semestre, quando as crianças chegam, buscamos conhecê-las por meio dessa questão. É uma forma de elas conversarem com as mães, avós e vizinhos e perguntarem a história do bairro. Com isso, sabem que a população que hoje vive aqui veio do Pirambu, das Goiabeiras, dessas áreas próximas à praia, por exemplo. E elas formaram um imenso mutirão construído por famílias em um ambiente que antes era de mangue, de salinas", detalha.

"Daí vieram os desejos, os sonhos da casa própria, e são essas coisas que elas compartilham com os amigos e viram gatilho para a idealização do espetáculo", completa. A fundadora salienta que os mesmos contornos do bairro se confundem com os 37 anos de história da Vidança, completos neste ano. Vale mencionar que a instituição nasceu às margens da Barra do Ceará e se fixou, logo depois, no Vila Velha, tornando-se, desde então, um dos principais polos de fruição da dança na cidade.

Codificações

Os atravessamentos se refletem na coreografia da montagem ao evocar movimentos advindos da própria capacidade das crianças de dramatizar, interpretar e codificar, na dança, aquilo que carregam enquanto história de vida. "Não são movimentos livres, porém", ressalta Anália. "Vamos moldando essas expressões em uma dinâmica só, levando em conta o percurso delas, criando e colocando em sala de aula atividades que visam resgatar a fala através da palavra, da fala, do olhar".

Produção coletiva

No total, 60 bailarinos protagonizarão esses momentos no palco, contando com recursos musicais e visuais capitaneados por outras iniciativas formativas da instituição. A trilha sonora, por exemplo, quando não mixada, é executada por integrantes do projeto que participam de aulas de percussão. Já o cenário e figurino são produtos do trabalho de mães e das próprias crianças.

As peças, feitas com tecido reciclado, refletem uma atenção toda especial a saberes como a preservação da natureza e o fazer artístico manual; já os "panôs" - pequenos painéis bordados - são realizados pelos pimpolhos em cima dos desenhos que eles mesmos fizeram, representando o ambiente onde vivem.

Cada pedacinho desse se espalha pelo palco fazendo ponte com movimentações graciosas, bebendo de técnicas dos balés clássico e contemporâneo, das danças dramáticas, da capoeira, hip-hop e dança funcional; no plano da representação, a fonte vem de princípios da fábula e do realismo fantástico. Tudo revela uma poética em comunhão com o bonito da vida e deixa, com o público, a oportunidade de fazer a leitura desejada a partir do que vê no tablado.

Aprendizado

Para a bailarina Elisilene Alves Mesquita, ex-aluna da Vidança e, agora, uma das professoras da casa - mudança de nível, inclusive, natural para a maioria dos que passam pela instituição - o princípio da coletividade impera na realização da montagem. "Você vai ver que tudo que apresentamos no palco faz parte do nosso dia a dia, o que é muito importante para fazer com que a dança faça pontes entre os alunos, já que eles constroem tudo juntos", afirma.

"Eu costumo dizer que a dança me salvou e me transformou, ao mesmo tempo. Quando eu iniciei, tinha 16 anos e hoje consigo me ver nas crianças que vêm aqui para aprender. O desejo é de sempre continuar aprendendo para repassar ainda mais conhecimentos", torce, revelando que, no momento, está buscando se especializar em artes, educação e esporte para galgar passos ainda mais concretos no segmento.

Quanto a Anália Timbó, o que fica no peito ao acompanhar caminhos tão concretos de mudança pessoal e social mediante o projeto que toca, são os sorrisos. Muitos sorrisos. "Essa é a nossa realidade. É como se não houvesse dor e, quando há, a gente consegue vivenciá-la e transformá-la pela arte. É como ver o sol nascendo o tempo todo. É sentir".

Serviço
Espetáculo "Histórias de Acordar o Amanhã", da Associação Vidança
Nesta sexta-feira (7), às19h, no Cineteatro São Luiz (Rua Major Facundo, 500, Centro). Gratuito. Classificação indicativa: Livre. Contato: (85) 3262-7599