Ensinar meninas não muda apenas a perspectiva de vida delas, mas da família, da comunidade e da nação. A frase faz parte de um famoso discurso feito pela ex-primeira-dama dos Estados Unidos, Michelle Obama, para a CNN, em 2016. Neste mesmo ano, a quilômetros de distância da potência econômica, uma pequena localidade do Ceará já reverberava o exemplo de liderança e empoderamento feminino deixado por Maria Nazaré de Souza (1952-2007), a Nazaré Flor.
Poeta, educadora e líder comunitária, a cearense contou em versos, entre outros temas, questões que encorajavam mulheres. "Nós somos mais da metade de toda a população e mãe de outra metade, temos o poder na mão", disse ela em um dos trechos do livro "Canção e Poesia", de sua autoria, lançado em 2002.
"Ela foi uma ativista, lutou pelas terras na região de Itapipoca. Desde pequena, tinha um dom de escrever poesia e música, só que escondia isso da família. Cantava e ninguém sabia que estava cantando. Quando começou a participar dos movimentos de mulheres, escreveu as chamando para a luta feminista, pelo direito à educação", esmiuça a jornalista e cientista social Shaynna Pidori, diretora do documentário "Terra de Nazaré", que será lançado neste mês por meio do programa Rumos Itaú Cultural 2017-2018. A proposta foi selecionada entre mais de 12 mil inscritos.
O embrião do filme nasceu há 14 anos, quando Shaynna e a também jornalista Priscila Néri resolveram partir de São Paulo para o sertão nordestino em busca de captar histórias de sete mulheres. "Essa viagem foi um sonho, tudo maravilhoso. Era uma coisa bem ambiciosa. A gente queria fazer um documentário em longa-metragem", relembra Shaynna. Em um encontro do Movimento da Mulher Trabalhadora Rural do Nordeste, em Olinda, Pernambuco, conheceu Nazaré Flor e se encantou com a trajetória de vida da poeta nascida em Itapipoca.
A incursão pelo sertão durou cerca de seis meses e Nazaré foi a última a ser visitada pela dupla paulista. "A gente acompanhava em tudo o que ela fazia, Filmamos muito. Da Nazaré foram umas 20 e poucas horas", contabiliza e detalha o cotidiano. "Acompanhamos quando ela ia lavar roupa, limpar peixe, caminhando, conversando com as pessoas".
Quando retornaram para o Sudeste, as jornalistas seguiram caminhos diferentes na vida e engavetaram o filme. No entanto, Shaynna percorreu os anos com o desejo vivo de finalizar o projeto.
Outras Nazarés
O conceito inicial do documentário precisou ser modificado com intuito de ser submetido ao edital de cultura. Para a obra cinematográfica produzida no Rumos, apenas a história de Nazaré será abordada, apesar de haver o interesse da diretora em contar as outras cincos trajetórias captadas em novas oportunidades. Remodelado, o projeto exigiu um retorno de Shaynna para Apiques, onde Nazaré morava. "A ideia era ir e fazer uma oficina com as mulheres, porque ela deixou um grupo quando faleceu que continuou a ecoar o discurso dela. Ela insistia muito com as mulheres da comunidade a estarem nos espaços dos movimentos", conta Shaynna.
Quando chegou ao local, a jornalista se impressionou com a multiplicação da voz de Nazaré por meio das outras moradoras da comunidade. "Ao contrário do que se espera quando um líder muito forte falece, que às vezes acaba enfraquecendo o movimento, não foi o que aconteceu, se fortaleceu", pontua a diretora de Terra de Nazaré.
As mulheres da comunidade escreveram o roteiro junto com Shaynna, além de escolherem qual cenas participariam. "Fizemos um diálogo com elas que conviveram com a Nazaré e continuaram a luta dela".
Uma das entrevistadas que aparece no documentário é Valda Matias, filha de Nazaré. "Foi uma experiência muito boa. Um aprendizado muito rico. Muito bom compartilhar a história da mãe e também ouvir histórias que outras companheiras falaram sobre ela", emociona-se Valda.
O resultado das filmagens está em fase de finalização e mesclará cenas de Nazaré, rodadas em 2005, e atuais, do grupo. A primeira exibição será realizada em Apiques, de forma gratuita, no próximo dia 27. "Pra mim isso era o mais importante. A minha preocupação maior era retribuir esse material para comunidade", diz Shaynna.
Assim, a mulher que aprendeu a ler e a escrever sozinha teve oportunidade de estudar apenas após o casamento, e que dá nome à escola da comunidade por qual batalhava continuará viva como referência para as novas gerações. Como para a pequena Maria Gabrielli, de 9 anos, filha de Valda, mas que nem chegou a conhecer a avó. "Ela tem muito orgulho. Fica cantando as músicas da mãe, fala os versos que ela criou. Com certeza é uma inspiração", arremata Valda.