Cultura do Conforto: o que nos faz consumir sempre os mesmos filmes, séries e músicas?

Especialistas refletem se esse comportamento pode ser antídoto para a ansiedade e até mesmo um desgaste da Indústria Cultural

Longos minutos vasculhando o catálogo do streaming, e não dá outra: sempre assistimos às mesmas séries, revisitamos os mesmos filmes e escutamos as mesmas canções. Já teve essa sensação? É a Cultura do Conforto

O comportamento pode ser descrito como modo de encontrar aconchego naquilo que já conhecemos. Então se você já viu “Friends” pela 30ª vez ou não se cansa de reassistir a “Harry Potter”, bem-vindo ao clube.

O Verso conversou com dois profissionais para compreender as maravilhas e os alertas dessa prática cada vez mais comum na rotina de várias pessoas, sobretudo depois da pandemia de Covid-19. Psicoterapeuta comportamental, Francisco Ilo situa que a coisa não é nova, vinda desde antes da internet. A sombra que fica sobre o assunto, porém, tem camadas.

Será que fazíamos isso porque não tínhamos acesso a coisas novas? Esses motivos pessoais são os mesmos ou parecidos com os que fazemos hoje? Para ele, é preciso suspender por instantes o julgamento e agir com curiosidade sobre o tema. Assim, perceberemos que os “novos” motivos não são defeito ou culpa, que dirá de uma geração específica.

“O modelo de trabalho e de vida em sociedade – propícios ao cansaço e ao fadigamento devido à repetição, intensidade e velocidade com que realizamos atividades – faz com que busquemos conforto por meio do reconsumo daquilo que gostamos”. É forma de descanso, portanto, de não se aventurar em novidades que certamente consumirão mais energia.

Prós e contras

Dentre os benefícios de sempre revisitar os mesmos conteúdos, na visão de Ilo, está a possibilidade de perceber mudanças em nós e na cultura. É a piada que não funciona mais, o roteiro que virou capenga ou a batida que perdeu o impulso. 

“Às vezes, o conteúdo continua igual, mas você não gosta mais. Ou ele sempre foi ruim, mas você achava ótimo na época. Você percebe que seu gosto melhorou, e isso é uma coisa boa”.

Outro ponto positivo acontece quando percebemos que algo continua tão bom quanto na época do lançamento, senão melhor. Assim, vamos criando estratos, aprofundando percepções. “Quanto mais você olha e foca em certas partes, mais fácil fica de memorizar. É algo que vem com repetição e com consciência”.

Por outro lado, pode ser um problema fixar-se em uma pequena lista de coisas para consumir e fechar-se para todo o restante – bem como sempre estar em busca de algo novo e interessante, abandonando tudo o que já se tem. 

As complicações podem vir de qualquer lado, e em ambos a questão esbarra na alienação: a primeira se aliena de si mesmo, perdida em consumo; a outra se aliena da realidade, tornando-se inflexível a mudanças. 

Logo, uma questão-chave para conciliar esses opostos diz respeito à motivação e à função: por que restringir-se a uma lista de conteúdos? Para quê largar tudo e sempre consumir o que já se sabe? “Esse ponto é importante porque tenho a impressão de que as pessoas não estão realmente conscientes sobre para que fazem o que fazem com os conteúdos que consomem. Observam isso como um fato curioso sobre si, e só”, pondera o psicoterapeuta.

“No fim das contas, novos produtos pedem de nós uma atenção que não necessariamente precisamos ao consumir conteúdos de conforto. Nestes, você já conhece tudo, então o que precisa fazer é esperar dentro da previsibilidade. Isso pede menos atenção e há menos possibilidade de nos decepcionar se comparado a algo novo – mesmo indicado por alguém que confiamos”.

Novo que não é novo

Sob a ótica da Comunicação, a professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará, Naiana Rodrigues, afirma que a Cultura do Conforto pode ser encarada como mais um nicho da Indústria Cultural, cuja lógica é produzir o novo – um “novo”, contudo, elaborado a partir de algo que já existia. 

“É sempre uma releitura, uma adaptação”, situa. “A Indústria Cultural não trabalha do zero. E acho que a Cultura do Conforto ganha esse nome porque fica muito atrelada ao aspecto nostálgico das produções que a Indústria Cultural está construindo, trazendo produtos que fizeram sucesso em tempos passados – sejam recentes ou antigos – e fazendo a releitura deles para atingir um um público fã”.

Pensemos no relançamento de “Titanic” 25 anos depois da estreia original. Ou em “A Casa do Dragão”, spin-off de “Game of Thrones”. É sempre o aproveitamento de algo que dá muito certo, sem margem para erros ou dificuldades de recepção por parte da audiência. 

“Os fãs estão dispostos a consumir tudo em torno dos produtos que gostam, sejam narrativas complementares à narrativa original, sejam produtos ou experiências – a exemplo de parques da Disney ou o próprio parque de Star Wars, inaugurado há pouco tempo”.

E onde entra a pandemia de Covid-19? Por que ela é encarada como mola propulsora desse comportamento? De acordo com Naiana, isso diz respeito ao fato de passarmos os últimos dois anos isolados. Em casa, muita gente não se dispôs – e continua se indispondo – a consumir produtos e experiências fora das quatro paredes do lar.  

“Claro que os cinemas estão funcionando e os teatros também, por exemplo. Há público para tal. Mas há pessoas que ainda não retomaram os hábitos de consumo cultural fora de casa por questões psicológicas, pessoais. Nesse sentido, entra também a questão econômica: vivemos um momento de crise econômica em razão da guerra e pela própria Covid-19. Logo, há um público que está com poder de compra limitado, portanto sem disposição para pagar o consumo de novos produtos”.

Muitos desses conteúdos repetidos estão na TV aberta ou disponíveis no streaming que você já paga, facilitando ainda mais o processo. Soma-se a isso o fato de as ficções, de modo geral, oferecerem uma espécie de distanciamento do tempo presente – voltando ao passado para recuperar uma sociedade que não existe mais – e temos um filão.

“Isso pode ser, sim, uma válvula de escape deste tempo presente, em que a gente não só é muito bombardeado por informações, como também acabamos ficando sem referencial – existe muita coisa a nosso dispor e não conseguimos escolher, selecionando o de sempre porque é mais fácil”.

Escape talvez não seja um problema

Mas o escape não é necessariamente um problema. Conforme Francisco Ilo, tendemos a fugir de situações adversas a nós e mesmo quando, por vários motivos, permanecemos nelas, procuramos meios de amenizá-las. Esse pode ser o caso do conteúdo de conforto. 

“Usando-os dessa forma, as pessoas ficam presas em um ciclo: primeiro começam a maratonar séries e músicas comfort até que chegam ao fim dessas listas ou simplesmente enjoam do conteúdo por um tempo. Então voltam a consumir outros tipos de coisas (com ansiedade ou não) e permanecem assim por um tempo até que se sentem atolados, cansados e hiperestimulados por tanto conteúdo, e então voltam ao conteúdo comfort”.

Para o psicoterapeuta, esse é um exemplo de como ainda não aprendemos meios de lidar com a tecnologia e os conteúdos digitais de forma adequada, e então alternamos entre opostos intensos. Geralmente, as coisas nesse caminho ficam cada vez mais emaranhadas e confusas, com a sensação de estarmos presos dentro do ciclo.

Trocando em miúdos, a Cultura do Conforto pode ser um antídoto à ansiedade? Ou essa é uma impressão perigosa? “Nesse caso, para lidar com ansiedade, o conteúdo comfort entra em cena ao trocar de lugar: sai ansiedade e entra conforto. Acontece que, na troca, eles se esbarram e um adquire um pouco de características do outro. Assim, a ansiedade perde um pouco de efeito e o conforto ganha um pouco de desconforto”.

Se essa troca acontecer muitas vezes, a situação geralmente não fica no zero a zero porque a ansiedade exerce uma força maior, visto que você foge dela e já mantém uma série de estratégias para evitá-la. O conteúdo conforto perde os efeitos; com isso, geralmente você sente mais ansiedade e procura outro conteúdo conforto. 

Seguindo essas mesmas estratégias, o caminho tende a ser sempre o mesmo com todos os outros: você perde os efeitos, começa a evitá-los, e então reduz um pouco mais a vida nessa fuga. Essa ansiedade, de acordo com Ilo, não é ruim. 

“Eu sei que se você a sente em grande intensidade, acha que ela é má; mas ela é a mesma ansiedade que você sente quando se empolga ao fazer algo que quer muito. O caminho para lidar melhor com ela começa parando com a fuga. Um profissional pode ajudar muito”.

É preguiça de inovar?

Por fim, ao voltarmos novamente os olhares para a Indústria Cultural, é possível dizer que a Cultura do Conforto é apenas tendência ou ela tende a ficar cada vez mais forte com o passar do tempo? Que valores serão reforçados na indústria cultural para validar essa permanência? 

Naiana Rodrigues é enfática: “Com esse nome, Cultura do Conforto, talvez seja passageiro, mas a lógica que dá origem ao que se vem chamando de Cultura do Conforto já é antiga: é a lógica da Indústria Cultural, dos contratos de comunicação com o público, do estímulo das culturas de fãs”.

Não à toa, a estudiosa acredita não ser algo passageiro: vai apenas criar novas roupagens em futuros próximos, e a indústria vai vender isso de outra forma. “Mas é óbvio que a gente vai continuar tendo produções que são completamente originais, autênticas, novas e surpreendentes. Elas talvez só vão ficar cada vez mais na periferia das grandes indústrias, como isso sempre aconteceu”, analisa.

“Apesar do sinônimo da modernidade ser a mudança, a gente também compra muito uma ideia do medo da mudança. E consumir algo novo às vezes é mudar. A indústria não está transformando a sociedade. A Cultura do Conforto não vai nos transformar. Na verdade, ela está muito associada aos valores de manutenção, de permanência de ideologias e classes hegemônicas. Essa é uma questão muito perigosa porque você fica fechado, sempre consumindo a mesma coisa, sem ampliar a visão de mundo e, portanto, sem favorecer a transformação social”.

Pessoas cansadas, como nós, trabalhadores – não à toa, a expressão Sociedade do Cansaço, cunhada pelo filósofo Byung-Chul Han – querem simplesmente fugir dessa realidade, se alienar um pouco dela. Buscar conforto na cultura porque em outras esferas sociais não há. Diante disso, nossas escolhas tendem a optar por produtos que preferem perder a potencialidade subversiva, de questionamento da realidade, de transformação. 

“Se a gente puder falar em arte, acho que as produções verdadeiramente artísticas é que vão ficar com essa missão, de incomodar a realidade, o tempo presente, as hegemonias. De incomodar a indústria”, conclui Naiana.