Carolina Maria de Jesus, de 'Diário de uma favelada', ganha linda e inédita exposição em Fortaleza

Mostra fica em cartaz na Caixa Cultural até fevereiro de 2024 com fotografias, manuscritos e até obras de artistas negras cearenses que se inspiram na escritora para criar

Carolina Maria de Jesus já não é nome. É verbo, força e inquietação. Não à toa, a nova exposição da Caixa Cultural Fortaleza elege o plural como símbolo de um dos maiores nomes da literatura brasileira. “Carolinas” fica em cartaz até 4 de fevereiro do próximo ano com dezenas de fotografias, manuscritos e ressonâncias de um universo indomável.

A forma como tudo é apresentado impressiona. São duas partes. A primeira tem ligação direta com Carolina –  desde as origens da escritora até a fama recebida com a publicação de “Quarto de Despejo: Diário de uma favelada”, livro que a fez ser reconhecida internacionalmente. A segunda, por sua vez, a toma como inspiração para outras artistas.

Uma das curadoras do trabalho – a estudiosa Raffaella Fernandez também ocupa o posto – Nicole Machado faz um passeio conosco pela mostra. Entusiasmada com o início da visitação, ela atravessa cada parte com cuidado, revelando que a estrutura circular do projeto remete ao cosmograma bakongo, de raiz africana.

“Esse cosmograma, de origem bantu-kongo, representa as etapas da vida, mas não de forma linear e finalista. Ele tenta mostrar como há um ciclo que termina, mas que continua com outras artistas e mulheres”, explica. Belo modo de justificar também os quatro núcleos da montagem: Musoni, Kala, Tukula e Luvemba.

Feito um rio, cada um se liga ao outro, destrinchando as distintas facetas de Carolina. Em Musoni, por exemplo, temos contato com de onde ela vem. É hora de mergulhar nos escritos sobre a mãe, o pai e o avô, bem como nas especificidades da ancestralidade africana, sempre tão cara à pensadora. Aqui e acolá, caligrafias e olhares se entrecruzam.

Um grande mapa de África sintetiza esses detalhes ao trazer inscritos provérbios encontrados ao longo de toda a obra carolineana. Tudo na própria letra dela, em pretoguês – feito cunhou a estudiosa Lélia González –, oportunidade de nos aproximarmos não apenas das ideias, mas da forma de escrever de Carolina. Mente afoita, caneta indócil.

Separada por uma cor, o núcleo Kala avança na história ao mostrar o reconhecimento obtido com a publicação do já citado “Quarto de Despejo”, obra que virou best-seller e segue ganhando novas edições. “Por outro lado, nossa intenção também é apresentar várias produções de Carolina em gêneros específicos”, sublinha Nicole.

É quando nos deparamos com a Carolina compositora de músicas, ligadinha a um violão, e sempre muito perspicaz ao apresentar a própria opinião – sobretudo em publicações com comentários sobre a criação literária dela. Uma miscelânea imaginativa: provérbios, trechos de romance, poemas e notas autobiográficas, tudo reunido.

“Ela faz reflexões sobre questões étnico-raciais, de gênero, e como esses pontos influenciam na própria vida para além da situação socioeconômica, que já era complicada. Acho que o público vai gostar de ver esses manuscritos e datiloscritos inéditos, longe de qualquer correção gramatical e ajuste, do jeito que ela escrevia”.

Entender e admirar Carolina

Para encontrar o tom da exposição, foram explorados mais de cinco mil arquivos do acervo de Carolina, provenientes do acervo de Escritores Mineiros; de Sacramento, cidade mineira onde ela nasceu; da Biblioteca Nacional e do Arquivo Público de São Paulo. 

Os detalhes não param, e seguem no núcleo Tukula, destinado a exibir fragmentos da trajetória dela ainda devido ao sucesso de “Quarto de Despejo”. Aqui entra outra curiosidade sobre a escritora: o fato de ela também desenhar as próprias roupas. Em algumas imagens, Carolina surge bastante elegante com o fruto do trabalho.

Na visão de Nicole, isso não apenas enriquece a travessia pela vida e carreira dela, como promove um horizonte mais apurado de compreensão da escritora. Ela também pode ser vista como alguém bastante crítica do Brasil e até mesmo como dramaturga, uma vez desejar que os textos ganhassem o palco.

“Também buscava muitas conexões – em um documento, por exemplo, expressa vontade de conversar com o Itamaraty. Isso tudo para mostrar que ela não era só uma pessoa que catava lixo: catava informação, catava palavra. Estava muito ligada em tudo o que estava acontecendo”, analisa a pesquisadora.

Por fim, o núcleo Luvenda destaca produções como os poemas “Quando eu morrer” e “Por que chora?”, mas nunca de modo derrotista ou fatal. É a própria vida encenando a morte, embora consciente de que tudo permanece – sobretudo aquilo plantado com vigor e semeado com bravura.

Tantas Carolinas

Por fim, a segunda parte da exposição retrata Carolina em outras mulheres, mais especificamente dez: Alexia Ferreira, Alexsandra Ribeiro (Dinha Ribeiro), Aline Furtado, Dhiovana Barroso, Dinha Maria, Francisca Oliveira, Rejane Barcelos (Rainha do Verso), Renata Felinto, Sarah Forte e Slam Pretarau.

Negras e tão insurgentes quanto, elas desfilam com obras que vão da fotografia à pintura, passando pela instalação. Não apenas é bonito de ver: atrai e convoca. “As pessoas precisam estar aqui porque existem outras Carolinas para conhecer. E não estou falando apenas das artistas. Há bem mais do que apenas aquelas que cristalizamos na mente”, diz Nicole.  

Já bem próxima ao espaço onde são projetados trechos do romance “O Diário de Martha” ou “A Mulher Diabólica”, a curadora sorri e engata movimento de esperança. O passeio pela mostra, tão agradável, revela que saber de Carolina é sentir com o corpo todo. Então Nicole olha para os grandes panos suspensos em que estão manuscritos da escritora homenageada e brada:

“Sempre vi a Carolina como uma mulher muito consciente, autocrítica, que fazia uma leitura do Brasil de uma forma muito localizada, na própria realidade dela. Acredito que isso pode contribuir muito com todas as pessoas”.


Serviço
Exposição “Carolinas”, em homenagem à Carolina Maria de Jesus
Em cartaz até 4 de fevereiro de 2024 na Caixa Cultural Fortaleza (Avenida Pessoa Anta, 287, Praia de Iracema). Horários de visitação: 10h às 20h (terça a sábado); 10h às 19h (domingos e feriados). Entrada Franca. Informações: (85) 3453-2770 ou pelo site da Caixa Cultural