Aos 101 anos, Monsenhor Ágio se despede do Crato deixando a terra fértil para colheita dos 'filhos'

O religioso dedicou a vida para o plantio tanto na espiritualidade quanto na música, no Cariri. Eterno padre, Ágio Augusto Moreira deixa legado na fé e na cultura do Estado

Algo soprou em meus ouvidos que, se não fosse daquela vez, não seria mais. Estávamos em meados de novembro de 2018, e o sopé da Serra do Araripeesbanjava um verde desses bonitos de se ver no sertão. A melodia que ecoava da Sociedade Lírica do Belmonte (Solibel) encontrava meu imaginário para dizer de forma enfática: "visite o Padre Ágio".

A oportunidade de conversar com um líder espiritual e musical centenárioseria única, mas as obrigações profissionais da viagem não me permitiram ir até lá. E foi essa lembrança que tive nas primeiras horas desta quarta-feira (12), ao saber da partida do Monsenhor, aos 101 anos. Foi seu "encontro amoroso e definitivo com Deus, sob o canto suave dos anjos", como escreveu o bispo diocesano Dom Gilberto Pastana de Oliveira, em homenagem da Diocese de Crato.

Não tive a mesma história de Izaíra Silvino, por exemplo. Aos 20 e poucos anos, a recém-graduada em música viajou até o Cariri para descobrir os sons da terra e lá soube de um padre que dava lições musicais a agricultores e seus filhos na própria casa, em Belmonte, no Crato. A amizade intensificou-se e foi fortalecida durante mais de 50 anos. Hoje, já aposentada, Izaíra recorda de todas as viagens que fez para encontrar o padre, professor e amigo, e também das visitas dele em sua casa, na capital cearense.

"Nos últimos três anos, no dia do meu aniversário, em agosto, ele vinha na minha casa me convidar para o aniversário dele, que é em fevereiro. Ele chegava de surpresa, sentava, conversava, só pra me chamar para as festas de 99, 100, 101 e também para os 75 anos de sacerdócio, que foi em dezembro passado. Eu estive presente em todos", emociona-se ao lembrar.

Despedida

Izaíra conta que, nos últimos dois meses, o padre se encontrava debilitado. Uma pneumonia o fez ir muitas vezes ao hospital. Estava sendo acompanhado por um cuidador e um fisioterapeuta desde então, mas já não se alimentava bem. Essa conjunção de fatores, segundo ela, resultou em sua partida. A missa de sepultamento acontece nesta quinta-feira (13), às 15h, na Capela Nossa Senhora das Graças, em Belmonte, conforme o pedido do líder espiritual ainda em vida.

O secretário da Cultura do Estado do Ceará, Fabiano Piúba, estará entre os admiradores que prestarão esta homenagem ao Monsenhor Ágio, no Crato. A relação de amizade com o padre vem dos últimos quatro anos, em virtude da construção da Vila da Música, equipamento cultural da Secult inaugurado em 2017, no Cariri.

"Só existe a Vila porque existe a Solibel e porque existia o Padre Ágio", reforça Piúba em referência ao projeto Sociedade Lírica de Belmonte (Solibel), escola de música fundada pelo padre em 1974. Para o secretário, o líder religioso "atravessou a longitude do tempo com uma sabedoria que não cabia só nele, uma arte musical que não cabia só nele e, por isso, compartilhou essa beleza sempre com o outro e para o outro".

700
Alunos são atendidos pela Vila da Música. O projeto, inspirado no trabalho do Monsenhor Ágio, contempla um público de crianças, adolescentes e idosos

O músico Raphael Belo Xote foi um dos jovens que cresceu e se desenvolveu profissionalmente a partir do projeto iniciado pelo padre. Filho de agricultores, ele começou no coral infantil, aprendeu instrumentos de percussão, flauta e violino até receber um convite do sacerdote para tocar acordeon. Hoje, aos 33 anos, é referência em pé de serra no Cariri; conta com três CDs gravados, agenda de shows concorrida, um site, canal no youtube, videoclipes e sucessos com composições próprias.

Em sua despedida, ele escreveu o que outros tantos também poderiam dizer: "Então se foi o mestre dos mestres... Vai em paz padre Ágio, vai com o dever cumprido de ter realizado muitos sonhos aqui na terra, inclusive o meu".

Herança

"Tudo que ele tocava virava ouro", expressa a amiga Izaíra Silvino. "Aliás, ouro é pouca coisa para se comparar", completa ela. Antes da Solibel, padre Ágio também foi precursor da Escola de Educação Artística Heitor Villa Lobos e da Orquestra Sinfônica Padre Davi Moreira, ambas voltadas à formação em música.

O secretário Fabiano Piúba também atribui a ele um "espírito esportista", que garantiu a construção de uma quadra de esportes para o usufruto dos participantes das atividades da Vila da Música. "Ele atravessava o Crato e ia para Assaré (sua terra natal) de bike, em aventuras dominicais. Caminhava também. Era uma pessoa extremamente sábia, amorosa, generosa, grande educador, professor; um padre que cuidou do seu rebanho com a música e com a arte", ressalta.

título de Monsenhor ganhou em 2003, por indicação do então bispo diocesano Dom Fernando Panico. E todas as atividades ele conciliava com a escritura de livros de próprio punho. Aos 100 anos, lançou "Padre Cícero Romão Batista: O maior líder espiritual do Nordeste Brasileiro". Outros tantos ainda pretendia publicar.

"Ele estava escrevendo pelo menos três livros: um sobre a velhice, outro sobre Padre Cícero e um sobre alimentação", revela a amiga. Fabiano Piúba, por sua vez, cita uma possível publicação sobre a música como terapia, mas Izaíra acredita que, por falta de dados científicos, ele ainda não havia começado a escrever este.

Há uma expectativa para que este material se torne público futuramente. Além disso, Izaíra defende a incorporação do nome do padre no equipamento Vila da Música. "É impossível não ser renomeado", declara com a certeza da reverência de toda uma comunidade aos serviços prestados pela liderança centenária. A professora acredita que a memória de Ágio precisa ser contada em livro e se voluntaria a escrever com parceiros.

Do prazer da convivência, eu não pude compartilhar, mas findam aqui algumas das linhas em homenagem a essa semente de amor e esperança.

Trajetória

Família

Monsenhor Ágio Augusto Moreira, filho de Augusto Moreira e Raimunda Moreira, nasceu em 5 de fevereiro de 1918, na cidade de Quixará, hoje Farias Brito, na época terras pertencentes ao município de Assaré.

Sacerdócio

O padre iniciou a formação religiosa aos doze anos. Ele foi com seu irmão David Moreira e o seu pai Augusto a Campinas para estudar. De lá, regressou ao Seminário da Prainha, em Fortaleza, onde aprimorou os estudos em música clássica e Canto Gregoriano e depois concluiu os estudos no Seminário São José, no Crato.

Música

Em missão no distrito de Goianinha (hoje Jamacaru), em Missão Velha (CE), foi surpreendido por um grupo de trabalhadores rurais, entoando os chamados "Cânticos de Trabalho" enquanto colhiam arroz e café. Esse foi o "start" para a construção da escolinha de música que hoje o imortaliza.