Os homens entravam e saíam, a todo instante, da casa de Ester*, no Serviluz, periferia de Fortaleza. Aos 12 anos, foi exposta a abusos e obrigada a se deitar, com quem a mãe decidisse, por alguns trocados. A escuridão do local escondia, por ora, a cara de sofrimento da adolescente. Após aquela primeira violência sexual, torceu para que nenhum outro abusador chegasse no restante do dia.
Ester, aos poucos, foi sendo convencida pela mãe a permanecer no que ela chamava de ‘trabalho’. Conheceu as drogas também. As palmas das mãos e os dedos já não eram mais os mesmos após o uso de crack. O corpo franzino ficou ainda mais magro. Já não se reconhecia mais no espelho. Suportou por cinco anos.
Com 17, fugiu. Recorreu à avó, que morava em Mondubim, noutro extremo da Capital, porque não aguentava mais a vida que levava. Pediu socorro: ‘não aguento mais’.
Orientada por uma vizinha, a avó foi até uma delegacia registrar um boletim de ocorrência. Após o registro, um inquérito policial foi instaurado e iniciada a investigação. Com provas levantadas, a vítima foi acolhida e encaminhada para uma rede de apoio, onde, pela primeira vez, recebeu a atenção e os cuidados necessários por conta da extrema situação de vulnerabilidade que vivenciava.
Ester precisou tratar de doenças sexualmente transmissíveis e foi encaminhada para clínicas para acompanhamento da dependência química que tinha. A mãe foi indiciada.
Há décadas, histórias como a de Ester - de crianças e adolescentes vítimas de crimes sexuais - se repetem no Ceará. Em 1º de julho de 2021, Daiana*, de 12 anos, escreveu uma carta para as irmãs relatando os estupros praticados pelo próprio pai, no município de Caucaia, na Grande Fortaleza. As violações aconteciam desde os sete, mas, segundo a vítima, ‘conseguia disfarçar bem’ e ninguém na casa percebia que a criança alegre, por dentro, estava ‘desmoronando’.
“Eu vou diser uma coisa que eu ñ tenho coragem de contar pra ninguém. É o seguinte, deis dos meus 7 anos de vida eu sou abusada pelo meu pai, sim pelo meu próprio pai. Eu não tenho medo de contar é qui a condição da minha família ñ é muito boa mesmo ele e minhas irmãs trabalhando. Ñ dá para pagar todas as contas e tudo tá bastante caro. Antes ele fazia as coisas comigo e eu não tinha coragem de fazer nada. Mas hoje em dia deis do ano passado eu concigo faser que ele ñ fassa nada comigo. Eu a uns dias atrás eu tentei denunciar ele mais não deu certo ñ cei porque. Tô cansada de ficar cendo mandada por ele e levar tudo de boa por conta das pessoas da que de casa e tambén cuando eu ñ vou de respeito com ele a mãe briga comigo. Eles ñ percebe nada porque eu concigo disfarssa bem mais agora pouco eu dei rabesaca pra ele e a mãe tava brigando comigo. Todo dia eu sou uma crianssa alegre mas por dentro é tudo desmoronado. Depois de vc ler isso denuncei ele por que eu só vouto pra casa cuando cuando ele ñ tiver mais ai. a não cer que pricise de min pra denunciar ele. eu não tô muinto lonje de casa. Tô nun lugar que pega internet então manda menssagem pro (nome de uma pessoa) que eu tô com celular dele por que eu ñ sou burra né (sic)”, dizia o texto. Em 9 de junho deste ano, o suspeito foi preso.
Mártir da castidade
Muitos anos antes, em 24 de outubro de 1941, em Santana do Cariri, no Interior do Ceará, Benigna Cardoso da Silva, de 13 anos, sofreu uma tentativa de estupro ao sair para pegar água em uma cacimba próxima à casa onde morava. No percurso, foi surpreendida por Raul, um colega de sala de aula. Mesmo em situação desfavorável, sem ter a quem recorrer, de forma firme, rejeitou as intenções do rapaz, e tentou fugir.
Cego de raiva, Raul pegou um facão e correu atrás de Benigna, até conseguir alcançá-la metros depois. Com os olhos arregalados de pavor, Benigna resistiu ao abuso e, enquanto virava instintivamente o rosto, sentiu o primeiro golpe de facão, que cortou os dedos mínimo e anular, resvalando na bochecha direita, abrindo um corte profundo. O abusador finalizou com mais três perfurações na região do pescoço. O relato faz parte do livro ‘Bem Aventurada: a história de Benigna Cardoso da Silva’, do juiz e escritor Flávio Morais.
No último dia 24 de outubro, quando completou 81 anos de morte, a menina cearense invocada como “Heroína da Castidade” e “Mártir da Pureza” foi reconhecida pelo Papa Francisco e beatificada pela Igreja Católica, em cerimônia que contou com mais de 60 mil fiéis em sua cidade-natal. Foram nove anos de mobilização religiosa e popular até o título de beata.
Drama em números
Atualmente, as estatísticas (oficiais) são eloquentes. Entre janeiro e setembro deste ano, foram registrados 1.055 crimes sexuais contra crianças e adolescentes no Ceará. O número equivale a 72% dos 1.448 totais, que envolvem todas as faixas etárias.
Os dados fazem parte de levantamento feito pelo Diário do Nordeste com registros da Superintendência de Pesquisa e Estratégia de Segurança Pública (Supesp), da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
Apesar da gravidade do problema, prisões em flagrante por crimes sexuais contra crianças e adolescentes chegam a só 13%. Até setembro, mesmo com um aumento de 20,51%, apenas 141 prisões foram contabilizadas no Estado, 24 a mais que no mesmo intervalo do ano anterior. Em 2019, foram 1.506 ocorrências de crimes sexuais em todo o Ceará. Já em 2020, o número chegou a 1.452. Nos 12 meses do ano de 2021, aconteceram 1.511 casos do tipo.
Num recorte envolvendo os primeiros nove meses de 2022, a SSPDS mostrou que os crimes ocorreram nas segundas, 17,47%, e terças-feiras, 16,16%, principalmente pela manhã, entre 8 e 10h. A vítima-alvo tem gênero feminino, 89,47%.
A área do Interior Norte tem o maior número, com 510. Na sequência vem Capital, 417; Interior Sul, 398; e Região Metropolitana de Fortaleza, 314.
A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, recebeu, no primeiro semestre deste ano, 78.248 denúncias de crimes sexuais contra crianças e adolescentes pelos canais Disque 100 e Ligue 180, sem especificação de modalidade. Das denúncias, 3.289 foram realizadas no Ceará. O Estado é o quinto do País e o segundo do Nordeste em denúncias.
São considerados crimes sexuais contra crianças e adolescentes: o abuso sexual e a exploração comercial.
O abuso sexual se refere a toda atividade de conotação sexual exercida, direta ou indiretamente, que envolva uma pessoa adulta e crianças ou adolescentes. Os tipos são: intrafamiliar, que ocorre em âmbito familiar; e extrafamiliar, que depende da relação entre vítima e agressor - cometido por pessoas desconhecidas ou sem vínculo afetivo nem de parentesco.
Irlena Malheiros, do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do Ceará (LEV-UFC), afirma que a maioria dos casos registrados é de abuso sexual intrafamiliar, com alta recorrência de agressores que exercem papel paterno com sua vítima.
“Ele pode envolver atos libidinosos, conjunção carnal ou ambos. O conceito tem como pressuposto que crianças e adolescentes estão em estágio peculiar de desenvolvimento e não compreenderam ainda a natureza de uma interação sexual da mesma forma que o adulto, o que dá a este um lugar de poder”, explica.
Segundo o Disque 100, as violações ocorriam há mais de um ano, com frequência diária, intrafamiliar, dentro da casa da vítima. A maior parte das denúncias é de Fortaleza, vindas de terceiros. As vítimas são na maioria meninas, de sete a 14 anos, pardas e com ensino fundamental incompleto. Até 7 de julho, foram registradas 567 violações a esse público.
Malheiros conta que o abuso se trata de uma violência permeada por segredos, ameaças e manipulações emocionais. “Geralmente, é uma violação de corpos que não deixa vestígios ou testemunhas. Daí a dificuldade de provar o crime através de exames médicos”.
O painel também traçou o perfil do suspeito. Ele é homem, com idade entre 40 e 44 anos, pardo, com ensino médio completo, renda de até um salário mínimo e pedreiro.
Problema endêmico
A violência sexual contra crianças e adolescentes foi reconhecida oficialmente no Brasil como violação de direitos após a promulgação da Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990.
Mas foi somente após uma série de iniciativas na década de 1990 – como pesquisas, encontros, reuniões, congressos, seminários, Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) – que o governo brasileiro reconheceu tais práticas como um “problema social” endêmico.
À época, as discussões, de forma geral, denunciavam dados alarmantes sobre a situação de crianças e adolescentes, de ambos os gêneros, que vivenciavam cotidianamente situações de exploração sexual, tráfico humano para fins sexuais, pornografia infantil e abuso sexual em todo território nacional. Isso obrigou a sociedade e o Estado a criarem estratégias de enfrentamento.
Em 29 de abril de 1993, teve início a “CPI da Prostituição Infantil” na Câmara Municipal de Fortaleza. A investigação se deu após o Fórum Permanente de Combate à Prostituição Infantil, que incluía entidades ligadas aos direitos humanos, das mulheres e das crianças, enviar um documento à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Ceará. Nela, estavam listados nomes de taxistas, motéis, barracas de praia e placas de carro.
Após a realização de dez sessões, foi concluído que existia uma “rede informal de exploração de lenocínio em Fortaleza”.
No relatório final, a CPI classificou os poderes estadual e municipal como ‘coniventes ou omissos’. No ano seguinte, foi criado o Pacto de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, dando continuidade ao trabalho realizado pelo Fórum Permanente de Combate à Prostituição Infantil e o que foi extraído na CPI de 1993.
Em abril de 2001, uma versão estadual do Encontro de Articulação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil, do Ministério da Justiça, traçou seis eixos estratégicos de atuação: análise da situação; mobilização e articulação; defesa e responsabilização; atendimento; prevenção e protagonismo juvenil.
Turismo sexual
Entre 1997 e 2001, Fortaleza registrou 105 casos, sendo a terceira do País em número de violações. A preocupação das autoridades se dava, principalmente, pela lei do silêncio e o turismo sexual na Capital. A quem desembarcava no aeroporto, era oferecido um folheto alertando sobre a exploração.
“Há relatos em pesquisas e mesmo em investigações sobre a questão de voos que seriam reservados com a finalidade única de trazer estrangeiros ao país para o turismo sexual com adolescentes. Era muito difícil fazer frente a essa rede que se mantinha a partir dos lucros advindos dessa prática de violação dos direitos”, lembra Andrea Cordeiro, coordenadora docente do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (Nucepec), vinculado à Universidade Federal do Ceará.
Com o aumento de casos, foi instaurada uma CPI para investigar a rede de exploração em 6 de setembro de 2001. Como base, foram utilizados os resultados da CPI de 1993. Foram ouvidos representantes do setor de turismo, entidades, agentes públicos, ONGs, além de suspeitos e vítimas de exploração sexual.
Em um dos trechos, o então vereador Mário Mamede acusou: “o Governo do Estado, por repetidas vezes, tentou desconhecer o problema, minimizar e desacreditar nas denúncias, dizendo que as denúncias eram alarmistas e isso inclusive abalava a política do turismo, que eram casos isolados, localizados e que eram denúncias inconsequentes e alarmistas”.
Segundo ele, a falta de respostas durante aqueles sete anos ocorreu “pelo problema que poderia causar no turista que vinha para cá”. “A preocupação maior naquele momento não foi com as nossas crianças...”, completou.
Rosarina Sampaio, então presidente da Associação de Prostitutas do Estado do Ceará (Aproce), denunciou que a situação continuava igual mesmo após a CPI. “Eu não vou nominar, porque é só vocês pegarem o livro da CPI. Vocês vão ver tudinho... continua a mesma coisa... os barraqueiros são os mesmos...os donos dos hotéis são os mesmos...não foi dito nada…”.
Após a CPI, 15 prisões relacionadas à exploração de crianças e adolescentes foram efetuadas no Estado naquele ano.
Primeira ação pública
Foi também em 2001 que foi instituído pelo Governo Federal o Programa Sentinela, um conjunto articulado de ações para o enfrentamento do “abuso e exploração sexual”. Segundo o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca), tinha como objetivo “oferecer apoio psicossocial, educacional e jurídico a crianças e adolescentes em situação de violência sexual e às suas famílias”.
O Programa Sentinela foi “a primeira ação pública de proteção social especializada dirigida à proteção de crianças e adolescentes violados em seus direitos sexuais”, tendo Ceará como pioneiro, chegando a Fortaleza como projeto-piloto.
Em 2005, outra CPI foi realizada em Fortaleza. Ao todo, foram 49 reuniões ordinárias e 11 extraordinárias, além de indiciamentos e processos.
O problema perdurou e, no dia 19 de maio de 2011, uma nova CPI foi instaurada para investigar casos de exploração sexual de crianças e adolescentes na orla marítima da Capital. A comissão realizou visitas surpresas a estabelecimentos denunciados como sendo locais de ‘prostituição infantil’ (termo usado à época) em Fortaleza.
A intenção era prevenir possíveis casos de violência durante a Copa do Mundo de 2014, quando a cidade foi uma das sedes. Cordeiro explica que as vítimas de exploração sexual são, em geral, quem menos recebe na rede criminosa, e quem está obviamente exposta ao maior risco.
“Em todo caso há a circulação de um valor financeiro e, como muitas vezes a clientela é estrangeira, com valores em dólar, e por mais que se configure como uma das piores formas de trabalho infantil, traz um pseudo atrativo de ganho”, reitera.
A pesquisadora aponta que adolescentes que vivem em situação de vulnerabilidade socioeconômica podem ser iludidas ou iludidos pela rentabilidade enganosa. Para combater essas práticas, Cordeiro diz que o desafio é “oferecer a esse público alternativas de ganho salarial que sejam compatíveis ao que tinham ao se expor a essa violência”.
Atualmente, a Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS) é responsável pelo enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes no Estado, disponibilizando apoio técnico e financeiro aos 184 municípios cearenses, atendendo às demandas de Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), Centro Pop e Centro Dia.
Segundo a SPS, foi inaugurada, neste ano, a Casa da Criança e do Adolescente, um espaço centralizado de serviços especializados e multidisciplinares para atendimento às vítimas ou testemunhas de violência grave.
O equipamento busca integrar os serviços e o atendimento para que não haja a revitimização, oferecendo um atendimento integral e humanizado. Na Casa, funciona uma equipe técnica psicossocial composta por psicólogas e assistentes sociais; Tribunal de Justiça; plantão do Conselho Tutelar; Ministério Público; Defensoria Pública; Delegacia de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente; Perícia Forense, além de abrigamento. No último mês de outubro, foram realizados 338 atendimentos no local.
*Ester e Daiana são nomes fictícios