Um policial militar, que atuava como líder de um grupo religioso no Ceará, teria se utilizado da função que exercia e da fé de jovens para cometer crimes sexuais. O Diário do Nordeste recebeu os relatos de cinco vítimas - todas do sexo masculino - com denúncias contra o PM, por abusos ocorridos entre 2013 e 2021. O grupo funcionou pelo menos até agosto deste ano.
As vítimas não procuraram a Polícia porque têm medo do líder religioso, que é policial militar. A reportagem não publicará o nome do PM nem do grupo religioso, porque o suspeito ainda não é investigado oficialmente pelos crimes.
Entretanto, algumas vítimas procuraram a Igreja Católica para denunciar os crimes sexuais. Em nota emitida na última sexta-feira (29) pelo Tribunal Eclesiástico Regional e de Apelação do Ceará (Terace), a Arquidiocese de Fortaleza afirma que "recebeu através do Tribunal Eclesiástico do Ceará, em 1° de outubro de 2024, com profunda tristeza, uma grave denúncia relacionada ao idealizador do grupo".
Questionada sobre a denúncia, a Polícia Militar do Ceará (PMCE) informou, em nota, que "tomou conhecimento da denúncia e instaurou investigação preliminar para apurar as circunstâncias do caso".
"A PMCE reforça seu compromisso com a transparência, a ética e o respeito aos direitos humanos, assegurando que todos os procedimentos necessários sejam realizados para a elucidação dos fatos", completa a Polícia Militar do Ceará.
O policial militar foi procurado pela reportagem e respondeu, por telefone, que "essas pessoas que fizeram isso (denúncias) saíram da comunidade com raiva. Houve vários problemas de relacionamento e de decisões, e elas saíram de alguma forma". Sobre os supostos crimes, o PM afirmou que "são as palavras deles contra a minha, não têm provas".
O grupo religioso foi fundada pelo policial militar e tinha como membros dezenas de leigos católicos (fiéis que não receberam o sacramento da Ordem, ou seja, não foram ordenados; eram pessoas comuns voluntárias no trabalho religioso). Questionado sobre a comunidade, na ligação, o policial confirmou que "não existe mais". Segundo o militar, ele resolveu encerrar os trabalhos da instituição "por falta de tempo e outras questões". "Como houve essa intriga (com outros membros), foi cada um para o seu lado", indicou.
O Tribunal Eclesiástico do Ceará afirmou que o grupo, "embora formado por membros pertencentes à Igreja Católica, não possui autorização, reconhecimento ou aprovação eclesiástica por parte desta Arquidiocese".
Mesmo sem o reconhecimento da Igreja, o grupo religioso nasceu em Caucaia, por volta de 2013, e se espalhou pelo Ceará, nos anos seguintes, com missões e grupos de oração instalados nas cidades de Fortaleza, Maracanaú, São Gonçalo do Amarante, Cascavel, Itapipoca, Itapajé e Crato.
A Arquidiocese de Fortaleza garantiu que "adotou todas as medidas de sua competência para apurar os fatos e tomar as providências cabíveis conforme o Direito Canônico. Diante da gravidade das denúncias, orientou os denunciantes a recorrerem às autoridades civis, dado que a Arquidiocese de Fortaleza não possui competência para impor punições nos âmbitos penal e civil".
A Arquidiocese permanece firmemente comprometida com a busca da verdade e da justiça, sempre confiando na orientação divina e nas orações que sustentam nossa missão."
Vítimas eram ludibriadas com 'passagens bíblicas'
Uma vítima contou à reportagem que foi estuprada pelo líder religioso aos 17 anos, em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF). O PM aconselhava espiritualmente o adolescente, quando pediu para ele entrar em um quarto, na residência do militar, sob a alegação de "salvar uma pessoa". A data e outros detalhes do crime não serão detalhados, para preservar a vítima.
A minha primeira atitude foi de total estranhamento, porque eu nunca tinha tido um contato assim. Me deixou muito enojado, fiquei sem reação. Mas eu tava tão apaixonado pela comunidade e pela caminhada que eu tava fazendo, que eu permaneci. Pensava que tinha sido algo pontual, que tinha acontecido só comigo, decidi perdoar."
O jovem continuou a participar do grupo religioso e teve que conviver com o suspeito. "Ele agia como se nada tivesse acontecido", lembra. Mas aquele episódio modificou a vida da vítima: "passei a viver uma vida muito desregrada, a me relacionar com várias pessoas. Prejudicou meus estudos, perdi trabalho. Procurei um padre, que me aconselhou e me ajudou. Mas, até hoje, tomo quatro medicações e desenvolvi transtorno de ansiedade generalizada (TAG)".
A segunda vítima ouvida pelo Diário do Nordeste contou que foi estuprada várias vezes, aos 16 e 17 anos. "Eu não sei dizer quantas vezes aconteceu", revela o jovem.
"Ele se utilizava de estratégias de cunho religioso, passagens bíblicas, para tocar no meu corpo e me convencer que aquilo não era errado. No dia seguinte, eu chorava e me sentia indigno. Mas eu continuava na comunidade, não queria deixar de confiar nele. Tentava ver um lado positivo, porque ele era meu 'pastor' e eu queria crescer na comunidade", relata.
A terceira vítima afirma que foi abusada três vezes, aos 18 anos. "Dá vontade de chorar, toda vez que eu lembro do que aconteceu. Eu gostava demais da comunidade. Mas ele fez coisas, prometendo apagar meus pecados, prometendo mudar minha vida. Tenho certeza que muitas pessoas passaram por isso", afirma.
A quarta vítima conta que sofreu uma tentativa de estupro, quando tinha 21 anos. "Ele pediu que eu entrasse no escritório e tirasse minha roupa", conta o jovem, que conseguiu fugir. Nos anos seguintes, a vítima afirma que ainda sofreu importunação sexual, quando frequentava a comunidade. "Hoje, sofro com ansiedade, tomo remédios e sou acompanhado por psicólogo e psiquiatra", revela.
A quinta vítima pediu ajuda a um padre, a quem entregou uma denúncia sobre um abuso sexual que ele sofreu no grupo religioso, aos 18 anos. O texto narra como o líder religioso o obrigou a ter relações sexuais, ao ler uma passagem bíblica que fala que "a ovelha não paga pelo pecado que comete, se estiver em obediência ao seu pastor", segundo a vítima.