'Fui casada com o meu pior inimigo': histórias de mulheres que romperam ciclo da violência doméstica

Em pouco mais de um ano, são pelo menos 20 mil registros de violência no Ceará que se encaixam na Lei Maria da Penha

A fala da universitária Iane Santos, 34, que intitula esta matéria reflete o que tantas mulheres vivenciaram ou até mesmo o que muitas diriam hoje, se tivessem conseguido romper o ciclo da violência doméstica antes de um desfecho trágico. Neste Mês Internacional da Mulher, falamos sobre aquelas que sofreram e superaram a rotina de horror dentro da própria casa. Afinal, qual o caminho para trilhar um recomeço?

As estatísticas assombram. Em 2021, foram quase 19 mil registros de violência no Ceará que se encaixaram na Lei Maria da Penha, conforme a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS). Já neste ano, o número se aproxima dos três mil casos contabilizados só nos dois primeiros meses.

A Defensoria Pública do Ceará estima por meio do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) que as vítimas passam em média de cinco a dez anos até denunciar formalmente os crimes.

E como pode ser explicada a demora para levar os casos a conhecimento das autoridades? Veruska Rabelo, 39, conta que foram o medo, comodismo e a necessidade de dar satisfação à família e a Igreja que a levaram a adiar durante anos o término do casamento: "Não era medo dele, era medo das consequências", diz.

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A mulher conta que tentou ao máximo prolongar o relacionamento, que ela mesma já havia notado não ser benéfico: "Era ele quem mandava em casa, era ele quem sustentava. Eu me vi obrigada a obedecer. Por mais que ele melhorasse, não demorava três dias e começava a agir como antes".

Até que chegou o dia da morte da sua irmã, e o esposo, segundo ela, não teria respeitado o luto. Enquanto Veruska chorava, o marido cobrava relações sexuais. Quando não, cobrava que ela deixasse de lado os sentimentos e fosse fazer o almoço.

"Quando eu disse a ele que não queria mais o casamento, ele gargalhou. Me chamou de fracassada, de derrotada. Eu me sentia um lixo e por muito tempo acreditei em tudo que ele falava ao meu respeito. Foram muitas piadas e provocações até eu conseguir superar tudo isso, até quando eu decidi ir na delegacia e pedi a medida protetiva", conta Veruska.

A violência psicológica a partir dos insultos também foi o primeiro dos crimes sofridos por Iane Santos. Ela ficou casada durante quase um ano e meio e acreditava estar feliz, "até descobrir que vivia com um monstro". "Ele me manipulava, dizia que não era para eu andar de cabelo solto, eu não podia usar determinados tipos de roupa, não podia usar maquiagem. No começo ele era maravilhoso, depois virou um psicopata".

"Todos viam que eu estava diferente, nem sorria mais e se eu sorrisse, ele me beliscava. Também não podia chorar, para ninguém saber que eu sofria. Então ele começou a me trancar em casa, a puxar meus cabelos"
Iane Santos

A decisão em denunciar aconteceu quando o agressor ameaçou esquartejá-la. "A assistente social que me atendeu na Casa da Mulher Brasileira disse que o meu caso de depressão era o pior que ela já tinha visto. Fiquei com síndrome do pânico", disse.

Ela foi incentivada pela equipe multidisciplinar do equipamento a fazer um curso. Passou no Enem e conseguiu bolsa pelo Prouni. Foi aos ônibus vender jujuba para pagar o restante da mensalidade da faculdade, até que com o passar do tempo uma outra mulher, hoje sua chefe, concedeu uma oportunidade de emprego como secretária.

"Hoje eu estou bem, realizando meu sonho. Hoje eu sei que sou exemplo para outras mulheres, antes tinha medo até de falar, mas hoje eu sei a importância de contar a minha história. Eu sinto orgulho de ter sobrevivido", pondera Iane.

Estudos do Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria) revelam que 15% das brasileiras com 16 anos ou mais assumem ter passado por algum tipo de violência psicológica, física ou sexual perpetrada por parentes ou companheiros íntimos.

A HORA DE DAR UM BASTA

Quem também procurou acolhimento na Casa da Mulher Brasileira foi Kécia Alves, 25. Foram quatro anos em um relacionamento conturbado, com agressões quase que diárias, até ela sofrer risco de morte. Kécia relembra que no dia 1º de janeiro de 2021 ficou bastante ferida, após mais uma discussão com o companheiro, pai do filho do casal.

 —  Sempre que ele bebida, me agredia. Eu estava desempregada e com um filho pequeno, então eu dependia dele. Denunciei outras vezes, mas como eu não tinha para onde ir, eu voltava. Até que as agressões pioraram. Eu fiquei desfigurada da última vez. Então chegou a hora que dei um basta.

Kécia ouviu durante anos a frase: "se não for minha, não vai ser de mais ninguém" e percebeu que não se tratava de amor, mas sim o sentimento de posse que havia tomado conta do ex-marido, cada vez mais violento e perigoso. "Hoje eu tenho meu emprego, coloquei um ponto final naquela situação. Nós podemos ter o nosso dinheiro e a nossa felicidade".

"Não precisamos estar com uma pessoa que não nos dá amor, não precisamos ficar com alguém só porque nos dá comida. Nós temos a quem recorrer"
Kécia Alves


A IMPORTÂNCIA DO ACOLHER

A Supervisora do Núcleo de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (Nudem) e defensora, Jeritza Braga, fala que é comum receberem casos de mulheres dentro do ciclo de dependência financeira, emocional e psicológica. Mas a partir do momento que elas se reconhecem como vítimas, entendem a necessidade de buscar acolhimento.

"Temos equipe psicossocial que fazem o trabalho de encaminhamento. Nosso papel é orientar, conversar, mostrar as consequências. Muitas mulheres não querem prejudicar seus agressores, elas só querem paz. Nós esclarecemos como é necessário evidenciar as situações, para muitas o que acontece não é grave suficiente para registrar um boletim de ocorrência. Precisam ser responsabilizados pelos atos cometidos", diz a defensora.

Além de ofertar ajuda psicológica às vítimas, também é preciso entender que muitas delas se curvam às ameaças por haver dependência financeira dentro do relacionamento. Atualmente, 35% das assistidas na Casa da Mulher Brasileira no Ceará não possuem renda própria.

Segundo a coordenadora da Casa, Daciane Barreto, o acolhimento e o atendimento humanizado é porta de entrada, quando a porta de saída é a autonomia econômica. Quando o Estado apresenta mecanismos e ferramentas possibilitando que elas rompam o ciclo da violência, é cumprida uma obrigação em prol de construir uma sociedade com igual de gênero.

"Em função do grande número de mulheres que dependem financeiramente do agressor, que não estão inseridas no mercado de trabalho, ofertamos cursos profissionalizantes. Firmamos parceria com entidades públicas e privadas para encaminhar essa mulher ao mercado", acrescentou Daciane.

ENTENDA OS TIPOS DE VIOLÊNCIA

  • Violência física – ofende a integridade corporal, deixa marcas no corpo;
  • Violência psicológica – causa danos emocionais, com diminuição da autoestima, controle de ações, crenças, comportamentos, humilhação, xingamentos etc.
  • Violência sexual – constrangimento a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força;
  • Violência moral – prática de calúnia, difamação ou injúria;
  • Violência patrimonial – retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.