O Ceará acumula mais de três mil mortes violentas em 2021. Seis chacinas já foram registradas neste ano, o dobro de 2020. Para cada assassinato, uma história. Vidas perdidas devido à violência, ao confronto armado, a uma guerra urbana que por mais que o tempo passe e a Polícia ocupe territórios, amedronta a população.
A reportagem contabilizou que 25 pessoas foram executadas a tiros em chacinas no Estado, de janeiro até o o último sábado (11), quando a última morte múltipla foi registrada, em Viçosa do Ceará.
Os assassinatos em série aconteceram na Capital, Região Metropolitana e no Interior. Dentre as vítimas algumas tinham antecedentes criminais, outras já estavam ameaçadas de morte por grupo armado rival, mas há também algumas vítimas que sequer tinham passagens pela Polícia e confraternizavam com amigos quando foram alvejadas.
Para o sociólogo e pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará, Luíz Fábio Paiva, as chacinas mostram a ascensão dos grupos armados em diversos territórios e produz o efeito de que "pessoas podem se organizar, produzir mortes em série e ficar na impunidade"
VÍTIMAS ALEATÓRIAS
A cidade de Caucaia foi cenário para duas chacinas em 2021. A primeira morte múltipla com quatro vítimas aconteceu no dia 11 de abril, no bairro Parque São Gerardo. Um grupo bebia na calçada de um bar quando foi surpreendido por criminosos. A investigação indicou que nenhuma das vítimas tinha antecedente criminal e que as mortes foram aleatórias.
Naquela data, os pedreiros José Ednaldo Rodrigues da Silva, 29; e Francineudo de Sousa Teixeira, 22; a comerciante Maria Milena Soares de Sousa, 21; e o estudante Pedro Henrique de Sousa das Flores, de 15 anos, entravam para a lista das vítimas de Crimes Violentos Letais e Intencionais (CVLIs) da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS).
O delegado da região disse na época que a ação se tratou de um revide e um confronto entre facções que atuam na área e que os mortos no tiroteio não tinham envolvimento em crimes.
"Elas estavam na rua; dois deles eram pedreiros, uma moça que estava comprando churrasquinho e um rapaz que tinha ido comprar alguma coisa na mercearia", disse Huggo Leonardo sobre as vítimas, acrescentando que os criminosos chegaram com "sadismo" durante o ato.
No entorno do local foram encontradas cápsulas de escopeta calibre 12, e de pistolas .40 e .380. A SSPDS informou que cinco pessoas foram indiciadas pela Polícia Civil do Ceará e denunciadas pelo Ministério Público sob suspeita de participação no crime. Um sexto suspeito identificado como Robson de Souza, que usava tornozeleira eletrônica e foi rastreado no dia e horário da chacina, morreu em confronto com policiais.
A mãe do adolescente de 15 anos assassinato disse à época do crime que o filho havia ido à mercearia comprar bombons
Foram acusados pelo MPCE: Vítor Rocha Fernandes, Antônio Carlos da Silva Oliveira, Michael da Silva Segundo, José Germano do Nascimento Dias Filho e Francisco Alisson Ferreira de Sousa. Todos eles atualmente estão na condição de réus no Judiciário cearense.
O Ministério Público do Ceará destacou sobre esse caso que: "dezenas de tiros foram disparados contra as quatro vítimas, que, sem qualquer chance de defesa, foram abatidas nas imediações da Rua Esteban Rios. Não houve confronto. Só execução. Uma chacina. , "Grandão", "Dedé", "Shell", "Vítor", "Mike" (apelidos dos acusados) são todos useiros e vezeiros no mundo do crime. Eles têm péssimos antecedentes criminais".
Ainda no mesmo mês de abril, outra chacina, desta vez na capital cearense. Quatro pessoas morreram no Barroso em 25 de abril. Dois suspeitos identificados como Antônio Alex Sousa de Castro, de 20 anos, que responde por roubo e homicídio, e Luciano da Silva, de 30 anos, que responde por homicídios, porte ilegal de arma de fogo, além de integrar organização criminosa, chegaram a ser presos.
Alex foi apontado com participação direta nas execuções das vítimas e Luciano como mandante da ação criminosa. Na semana passada, a Secretaria informou ao Diário do Nordeste que o caso foi concluído pela 7ª Delegacia do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) e remetido à Justiça, com um suspeito indiciado. Não há informações sobre a identificação de quem foi indiciado.
"NÃO ESTAMOS ATRÁS DE CIDADÃO, E SIM DOS PILANTRAS"
A terceira chacina de 2021 é um retrato da guerra entre facções criminosas rivais. No mês de agosto, os holofotes se voltam novamente para Caucaia. É lá onde cinco pessoas são brutamente assassinadas dentro da mesma residência. O motivo: teriam saído de uma facção carioca e passado a integrar uma local.
A reportagem teve acesso a documentos nos quais constam detalhes do que aconteceu na madrugada de 1º de agosto de 2021. Uma testemunha ocular do crime dormia profundamente quando ouviu os primeiros disparos. Um homem de balaclava entrou no quarto e a avistou na companhia dos três filhos crianças.
A mulher disse aos policiais que só foi poupada por estar na presença de menores e ainda ouviu: "não estamos atrás de cidadão, e sim dos pilantras".
Ela foi mantida no quarto e minutos depois quando ouviu o barulho de motos se distanciando da casa se levantou para ver o que havia acontecido. Foi quando chegou ao quarto da mãe e a viu sangrando em cima de uma cama. Andou mais um pouco e viu cinco corpos, dois eram seus primos, um o padrasto. Até ali, segundo a testemunha, não entendia o porquê do ataque.
A motivação para o crime passa a ser conhecida quando os próprios criminosos são localizados. No local do crime, foram encontradas cápsulas de pistola calibre .380 e, conforme a Polícia, os executores picharam o local com a marcação de uma facção criminosa de origem carioca.
"A leitura dos autos permite concluir com facilidade que a motivação da infame chacina foi torpe, traduzida em mais uma sangrenta escaramuça entre facções e subfacções criminosas com atuação em Caucaia. Com efeito, indicam os autos que segundo os acriminados as vítimas Patrício, Carlos André e Francisco Matheus haviam composto o "Comando Vermelho" (CV), até que decidiram abandonar tal facção e passar a militar pela recém-fundada "Tropa do Mago/Massa Carcerária", com isso passando a ter nos ora delatados e ex-companheiros novéis inimigos"
Inconformados com a possível traição, os executores planejaram e executaram a chacina para recuperar o território. Trecho de documento obtido pela reportagem mostra a crueldad da ação. "Como se não fosse suficiente a brutalidade da ação, os delatados ainda gravaram um vídeo das vítimas mortas nos vários ambientes da residência palco do crime".
Além das mortes, os acusados picharam a sigla de uma facção no muro da residência. Para o Ministério Público, isso demonstra "a motivação torpe acima referida, eis que às escâncaras cuidou-se de demarcação de dominação criminosa de território".
O MP afirmou ainda que "o bando ainda tratou de subtrair diversos pertences das vítimas após se certificarem de suas mortes, eis que levaram consigo ao deixar o local bens tais como motocicletas, celulares, e objetos de uso pessoal, como bijouterias".
Todos eles estão na condição de réus na Justiça do Ceará. Além dos cinco que morreram nesta chacina, duas mulheres foram baleadas, socorridas ao hospital, e sobreviveram.
Fonte da Inteligência da Segurança Pública destaca que a única coisa que converge entre ambas as chacinas em Caucaia é que todos os responsáveis foram presos.
"A primeira chacina se tratou de uma demonstração de força, com execução de quatro inocentes, a partir do momento que não aceitavam dividir terreno. Agora, com as prisões, com isolamento dos líderes houve um abrandamento das ameaças na Cidade".
MORTES MAIS RECENTES
Nos últimos meses de setembro de outubro, as autoridades contabilizaram outras duas chacinas em Chorozinho e Guaraciaba do Norte, respectivamente. De acordo com a SSPDS, sobre a morte múltipla em Chorozinho são poucas as informações até então.
O inquérito que apura homicídios de três adolescentes e um adulto segue em andamento. A investigação está a cargo da Delegacia Metropolitana do Município onde o crime aconteceu. O que se sabe, conforme nota da Pasta, é que as vítimas respondiam a atos infracionais análogos aos crimes de roubo e furto.
Já sobre o ocorrido em Guaraciaba do Norte há mais informações e presos. Depois que quatro pessoas morreram na madrugada de 4 de outubro, nove suspeitos foram presos, indiciados e denunciados. O real alvo da ação na trágica data era o líder de uma facção local. Mas ele não morreu na ação.
Na chacina de Guaraciaba foram executados Ezequias Ferreira da Costa, José Leonardo Lima Gomes, Maria Elizangela da Silva de Oliveira e Maria Ana da Silva. Dias depois, a Polícia Civil já sabia que os executores eram os mesmos autores de crimes semelhantes nas cidades vizinhas. O relatório da PC foi concluído e o órgão representou pelas prisões de Gabriel dos Santos Nascimento, José Lairton Silva Nascimento, Antônio Wagner Cardoso, Lara Beatriz Saldanha Braga, Francisco Danielson Tavares Pereira, Eliane Ambrósio Martins Linhares, Carlene Araújo de Souza, Keven Lopes de Lima e Antônio Erlânio Ribeiro de Sousa.
Há dois dias, outra chacina. Novamente, vítimas foram executadas mesmo estando dentro de casa. Criminosos invadiram um imóvel no bairro Santa Cecília, na cidade de Viçosa do Ceará, e efetuaram disparos contra quatro pessoas, duas delas mãe e filha. Ainda não há informações sobre o que teria motivado o crime em Viçosa.
SITUAÇÃO SE AGRAVA
O sociólogo destaca que os problemas com grupos armados cometendo assassinatos vêm antes das facções, mas agora não se tratam de casos isolados. Luíz Fábio relembra ainda outros episódios nos últimos anos que vitimaram pessoas sem antecedentes criminais, como a Chacina da Grande Messejana e a do Forró do Gago e diz: "há um tempo eles mostram disposição para invadir, entrar em territórios e cometer assassinados de maneira indiscriminada".
"É um tipo de ação que é planejada, envolve articulação muito específico, armamento específico, e que precisa ser efetivamente estudada pelos órgãos de Segurança Pública. Precisam ser produzidos protocolos e estratégias. Esses crimes se repetem, acontecem na Capital, Região Metropolitana, Interior do Estado. É uma dinâmica geral", pontua o especialista.
"Não é possível aceitar nem mesmo sob justificativa que é um acerto de contas entre bandidos. Essa justificativa é inaceitável. Os órgãos não podem continuar repetindo isso como possibilidade. É gravíssimo. É preciso chamar responsabilidades"
O QUE DIZ A SSPDS
A reportagem solicitou entrevista a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social. No entanto, a Pasta se posicionou apenas por meio de nota informando que no acumulado de janeiro a novembro de 2021, o índice de CVLIs reduziu 18,6% comparado ao mesmo período de 2020.
A Secretaria destacou que para os indicadores permanecerem em queda, o Governo do Ceará anunciou investimento extra de quase R$ 120 milhões para o reforço operacional nas ruas de todo o Estado e ampliação das 3 mil vagas para o concurso da Polícia Militar do Ceará (PMCE).
"O Governo do Ceará tem investido, desde 2015, na contratação de profissionais, valorização das categorias como a Lei de Promoções para os militares e progressão salarial para policiais civis e servidores da Pefoce, compra de equipamentos como armamentos, viaturas e aeronaves, reforma e construção de batalhões e delegacias, interiorização do CPRaio, investimentos em tecnologia que tornaram o Estado referência no uso da inteligência para combater a criminalidade, entre diversas outras iniciativas".
A SSPDS destacou ainda "que realiza ofensivas como as operações Domus, Sumé, Apostos, Redoma e Guarida". Segundo a Pasta, esse trabalho diário tem o objetivo de coibir ações criminosas no Ceará e já resultou em mais de 30 mil pessoas capturadas entre janeiro e novembro de 2021, sejam por flagrantes ou por cumprimento de mandados.