Ao menos 253 crianças e adolescentes sofreram violências diversas no Ceará, como homicídio, roubo e crimes sexuais, em 2 anos, conforme levantamento da Rede de Observatórios da Segurança, divulgado quarta-feira (20). A pesquisa usa registros de junho de 2019 a maio de 2021, e monitorou cinco estados: Bahia, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. Em todos eles, os homicídios contra menores de 18 anos e a violência sexual lideram a lista de crimes.
O relatório "Infância Interrompida: números da violência contra crianças e adolescentes" indica que o maior número de registros no Ceará é por homicídio (91), seguido de violência sexual e estupro (58), agressão física (23) e tentativa de homicídio (16).
O levantamento se baseia em matérias jornalísticas, publicadas nesses Estados, as quais os integrantes da Rede de Observatórios conferem diariamente e sistematizam as informações em um banco de dados.
Na lista sobre crimes cometidos contra esta população no Estado consta ainda casos de crianças e adolescentes mortos por bala perdida, e o número daqueles que passaram por cárcere privado, tortura, sequestro, negligência, roubo, tentativa de sequestro, assalto e aliciamento.
Situação de vulnerabilidade
A pesquisadora da Rede de Observatórios da Segurança e socióloga Ana Letícia Lins analisa que no Ceará “existe um aliciamento e uma vulnerabilidade desse público em relação às dinâmicas de grupos criminosos nos territórios das periferias de Fortaleza, da Região Metropolitana e do Interior”.
Isso, afirma ela, “faz com que, de forma literal, eles estejam vulneráveis aos tipos de violência que envolvem fazer parte ou estar próximas de pessoas que estão em grupos criminosos”.
Outro ponto destacado na pesquisa é que “a maior parte das vítimas, quando olhamos o total de casos de todos os estados, são meninas e, entre os que conseguimos registrar a raça, a maior parte é negra”. No Ceará, diz o documento, as meninas são as maiores vítimas.
"As meninas estão vulneráveis em vários sentidos. Existe um demarcador de gênero muito forte. Essas meninas, além de serem vitimas de homicídio e violência sexual, também são vítimas de agressões físicas, torturas, sequestros e tentativas de sequestros. Mesmo que não sejam assassinadas, são sequestradas, torturadas, por ter algum tipo de proximidade ou nível de envolvimento, ou morar em um território de uma facção rival".
Mortes relacionadas à ação policial
O relatório também faz menção a mortes envolvendo a atuação de agentes de segurança. No caso do Ceará, há destaque para o caso do adolescente Mizael Fernandes da Silva, de 13 anos, morto em julho de 2020, em Chorozinho na Região Metropolitana de Fortaleza; e para a morte de Juan Ferreira dos Santos, de 14 anos, ocorrida na Capital em 2019.
No caso de Mizael, o adolescente foi morto em uma ação policial enquanto dormia na residência da família. Na versão dos policiais, Mizael estava armado e tentou reagir contra os agentes.
Mas, conforme já noticiado pelo Diário do Nordeste, o laudo cadavérico apontou que foi encontrada apenas uma entrada de tiro, na região próxima ao peito do jovem, que se encontrava deitado no colchão. A perícia ainda constatou não haver traços genéticos do adolescente na arma de fogo apresentada pela composição investigada.
Já o crime contra Juan Ferreira dos Santos ocorreu em 13 de setembro de 2019. Ele foi baleado por um policial militar, na Praça do Mirante, no bairro Vicente Pinzón, em Fortaleza.
De acordo com o Diário do Nordeste, à época da ocorrência, Juan estava acompanhado dos amigos em uma reunião na Praça do Mirante, e policiais militares que patrulhavam o local disseram ter notado "indivíduos em atitude suspeita" e decidido realizar a abordagem.
À época do fato, a Polícia Militar do Ceará afirmou que “algumas dessas pessoas resistiram e começaram a arremessar pedras contra a composição”, e, neste momento, o soldado efetuou “disparos para o chão”, que atingiram o adolescente. Mas, a mãe da vítima sustenta que a ação dos agentes foi distinta e os disparos não foram direcionados ao chão.
“Chama muita atenção quando crianças e adolescentes são vitimadas em outros estados. O que os casos do Mizael e do Juan nos mostram é que essa violência está muito perto da gente, e não podemos perder de vista, como se fosse uma violência que está distante geograficamente”, avalia a pesquisadora, Ana Letícia.
Tipos de violência "não informado"
Outro destaque que consta no relatório é que, dentre os estados analisados, o Ceará tem uma especificidade: é aquele com maior número de casos cujo tipo de violência contra a população infanto-juvenil aparece nos registros como “não informado”.
Conforme o relatório “essa sub representação demonstra uma estrutura que tende a invisibilizar violências e dificultar o acesso aos direitos das crianças e adolescentes”. O documento aponta ainda que “É preciso entender as nuances das violências cometidas e seus números para estruturar políticas públicas específicas que impactem e minimizem esses índices”.
No documento, os pesquisadores indicam que a Rede de Observatórios da Segurança “surgiu para suprir a ausência ou omissão do Estado em produzir e divulgar amplamente dados confiáveis e de qualidade para que políticas públicas sejam avaliadas”.
Atuação da Secretaria de Segurança
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS) diz que a Polícia Militar do Ceará criou um Batalhão de Policiamento de Prevenção Especializada (BPEsp) voltado para atuar de forma especializada, continuada e individualizada, sobretudo, com crianças e jovens vítimas de todos os tipos de violência.
O batalhão, acrescenta, “hoje é uma das portas de acesso aos programas de proteção do Estado”.
Conforme a pasta, o BPEsp promove ações de proteção social, com mais de mil crianças e jovens atendidos, com a prática de futebol, karatê, músicas e outras atividades oferecidas pela própria PM em regiões de vulnerabilidade social.
Outra iniciativa mencionada pela SSPDS é o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd). A ação ocorre em escolas públicas e privadas de 2001, e já atendeu mais de 600 mil estudantes.
A secretaria destaca ainda as 324 escolas de tempo integral existentes no Estado como importante entre as políticas públicas para crianças e adolescentes. "Desse número, 201 são de ensino médio, que se somam às 123 escolas estaduais de educação profissional, que ofertam, ao mesmo tempo, ensino médio e cursos técnicos".
Já em relação à investigação dos tipos de violência contra a população de 0 a 18 anos, a SSPDS disse apenas que “destaca o trabalho das delegacias de Combate à Exploração da Criança e do Adolescente (Dceca) e da Criança e do Adolescente (DCA)”.
Sobre os dois casos destacados na pesquisa - morte de Mizael e Juan - a SSPDS acrescenta que “o balanço da pasta, neste ano, registra uma retração de 16% nas mortes por intervenção policial, indo de 119 casos para 99”.
A nota afirma também que “a pasta salienta que trabalha para que esse número siga em redução, por meio de capacitações continuadas de seus servidores, voltadas a intervenções técnicas, propiciando a formação de profissionais de segurança pública preocupados com as questões sociais e a resolução de conflitos”.