Com seu vestido estampado de cor amarela, sentada no chão e os pés esticados, a artesã Dasdores Maria da Conceição amassa, por horas, punhados de argila com as mãos. Em um trabalho delicado, cria pratos, panelas, potes, vasos, entre outros objetos, no quintal de casa, numa comunidade rural próxima ao distrito de Dom Quintino, a uns 30 quilômetros da sede do Crato, no Cariri.
Logo após tomar café da manhã, inicia sua jornada, que só é interrompida na hora do almoço. A pausa para comer é forçada pela própria filha, já que a idosa nem percebe o passar do tempo quando se dedica àquele ofício.
Prestes a completar 85 anos, no próximo dia 22 de junho, ela retomou o trabalho como “louceira” — pessoas que dão vida aos utensílios domésticos de barro — como uma forma de terapia, durante este difícil período de isolamento social, causado pela Covid-19.
O sustento do barro
Foi sujando as mãos que Dasdores conseguiu sustentar suas duas filhas sozinha. A lida com o barro começou através do seu pai, o agricultor e artesão Antônio Jerônimo da Silva, que “era um fino louceiro”, garante a senhora. “Ele vendia e comprava coisas. Legumes não faltava. Mistura e roupa era tudo do barro”, lembra.
Foi observando seu pai que, aos dez anos, começou a fazer seus primeiros pratos e pequenos potes para colocar doces. Além disso, criava suas panelinhas de barro para brincar com as bonecas. “Eu aprendi muito rápido. No inverno era roça, no verão era na louça”, explica a artesã. A partir dali, traçou sua sobrevivência do que tirava da terra, seja transformando em louça ou em alimentos.
Aos 22 anos, Dasdores se casou, mas “não deu certo”, resume. Com pouco mais de dois anos, saiu da casa do marido e levou suas duas filhas. Decidiu trabalhar com o barro para sustentá-las. Não foi fácil. Durante o dia, percorria léguas e léguas, trazendo os potes, quartinhas, pratos e panelas no lombo de um burro, que conseguiu emprestado. A cria mais velha, Dalvaniza Maria da Silva, ia montada na garupa do animal, já a caçula Maria da Conceição, era trazida no caçuá.
Do sítio Lambedor ao Cachoeira, do Cipó a Malhada e do Riacho Verde ao Lambedor. Não há uma comunidade no Crato que não tenha conhecido as louças de Dasdores. “Eu trocava por galinha, feijão, milho, ovo, dinheiro”, descreve com entusiasmada memória. No inverno, também plantava feijão, milho, fava, arroz e amendoim. “Na época, não tinha ajuda nenhuma do governo. Tinha que continuar na roça ou na luta”, recorda a filha Dalvaniza, hoje aposentada, aos 62 anos.
Após as duas filhas casarem, a artesã permaneceu trabalhando com o barro até se aposentar. Depois, por problemas de saúde, passou a morar com a mais velha e deixou de lado o ofício que aprendeu com o pai. Tudo mudou com a chegada da Covid-19, que privou a idosa de visitar seus amigos, familiares e ir às missas. “Quando chegou essa ‘bendita’ doença, não pude ir para canto nenhum. Eu mesmo tinha medo e também porque ela (Dalvaniza) não me deixava sair. Hoje, eu agradeço, porque era capaz de não tá viva”, conta de forma humorada.
“É uma terapia para ela”
Sem nada para fazer, Dasdores encontrou perto de casa um barro que considerou ideal. De iniciativa própria, voltou a trabalhar com as louças e transformou o seu quintal em uma grande oficina. “Fiquei feliz. Depois de tudo de bom e ruim que passei na vida, vem cada arranjo na cabeça. Eu tenho falta de sono e não durmo. Sonho toda noite. Coisa boa e ruim. Acordo e fico na cabeça. Aqui, fico entretida e já alivia mais”, garante.
“É como uma terapia para ela. Ela se sentia sozinha”, conta a filha, que não se opôs ao retorno do trabalho de sua mãe, desde que cuide de sua alimentação e sua saúde. “Não quero que ela continue por muito tempo, não, por causa da idade. Fico até brigando para ela comer, porque quando começa, não quer mais parar”.
De fato, quando a idosa se apruma no barro, é difícil tirá-la. Em um dia, mesmo octogenária, chega a fabricar dez peças. Potes e panelas grandes chegam a um total de quatro.
Até o resultado final, passa por um minucioso cuidado, desde a escolha da argila à retirada de pequenas pedras, que podem fazer perder todo seu trabalho. No percurso, ainda fica banhando o barro por quatro dias. Depois, amassa-o com uma pequena marreta para dar firmeza ao futuro utensílio. Após ser moldado, leva ao fogo de lenha até o ponto certo: “quando os cascos começam a ficar com um ‘beicinho branco’”, explica.
Renda
Em sua caminhada rotineira, o jornalista Ronuery Rodrigues, que também mora no distrito de Dom Quintino, soube que Dasdores estava “mexendo com barro”. Logo estranhou, pois nunca soube que a idosa, conhecida na comunidade, exercia tal ofício. Foi checar e se surpreendeu com trabalho. “A pandemia trouxe a oportunidade das pessoas se reinventarem. Para a gente, que não tinha louceira há muito tempo, é bom ver essa arte florescer”, acredita.
Logo que conheceu as peças, Ronuery expôs os produtos da artesã nas redes sociais e, rapidamente, apareceram fregueses. De fazendeiros a padres. As encomendas não pararam de chegar. Os preços variam de R$ 12 a R$ 30, dependendo do tamanho. Naturalmente, as vendas das louças de barro complementaram a renda. “Já ajuda, mas ela não faz porque precisa, faz porque gosta”, reforça Dalvaniza. Mesmo assim, ela aceita pedidos pelo número (88) 98103-1179.
“Eu não passo precisão, faço porque me 'entreto' muito. Minha vida foi dura. Para criar minhas filhas, foi ajuda de Deus e o bolinho de barro. Hoje, vivo numa boa. Tenho minha casinha, moro perto de milha filha”, descreve. Com orgulho, ostenta a contagem: oito netos, dez bisnetos e um tataraneto. “Estou bem de vida”, completa.