Quatro pontos para entender como as declarações de Zema sobre regiões são prejudiciais para o Brasil

Falas do governador de Minas Gerais envolvem uma percepção política histórica e uma disputa no contexto da Reforma Tributária

A fala do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), contra a distribuição equitativa de recursos entre as regiões brasileiras repercutiu mal entre membros da classe política, inclusive pelos representantes do perímetro defendido pelo gestor, o eixo Sul-Sudeste do país.

A declaração, que não é a primeira do mineiro com teor semelhante, comparou os estados do Norte e Nordeste a "vaquinhas que produzem pouco" e acusou a União de privilegiar unidades da federação com uma arrecadação menor, em detrimento daquelas que "mais produzem". 

A alegação do gestor acontece em um contexto em que o Congresso Nacional se debruça na discussão da Reforma Tributária, que prevê a revisão de dispositivos de incentivo fiscal e a possibilidade de criação de outros mecanismos de financiamento do desenvolvimento regional.

A medida tem dado o que falar entre os envolvidos e os governadores nordestinos formam uma articulação em prol de um texto benéfico a eles, no sentido de reduzir as desigualdades inter-regionais.

Segundo especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, a posição de Romeu Zema evidencia disparidades históricas e até equívocos, uma vez que parte do território do estado que ele comanda tem 249 localidades inseridas no raio de atuação das políticas públicas desenvolvimentistas da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) e do Banco do Nordeste do Brasil (BNB).

Com o objetivo de ampliar a discussão sobre a temática, separamos quatro pontos que explicam o impacto negativo da postura assumida pelo mineiro na agenda pública nacional:

1. CONTEXTO DA REFORMA TRIBUTÁRIA

Romeu Zema propôs publicamente que os governantes do Sul e Sudeste deveriam buscar uma aliança cujo objetivo seria a de ter o protagonismo político que ele acredita ser merecido. Segundo o mineiro, tal atributo seria algo natural a estes entes, uma vez que têm uma fatia expressiva de parlamentares no Legislativo, detêm 70% da economia e 56% da população do país.

Em junho, outra argumentação semelhante foi sustentada por ele, quando discursou no 8° encontro do Consórcio de Integração Sul e Sudeste (Cosud). O governador, diante dos pares, expôs sua visão sobre o assunto ao dizer que o eixo sul-sudestino tinha que se unir, pois, diferentemente das demais regiões brasileiras, possuía mais trabalhadores do que pessoas beneficiárias de programas sociais.

De acordo com o professor João Mário de França, do Programa de Pós-Graduação em Economia da Universidade Federal do Ceará (UFC), a existência da aliança entre os atores políticos, formalizada através do Cosud, é legítima. No entanto, uma ideia de antagonismo não é válida em um contexto em que estão sendo pensadas alternativas para um crescimento igualitário no país.

"É natural que eles queiram trabalhar entre si, defendam seus interesses. Não vejo nenhum grande problema nisso, mas que eles tenham essa percepção que combatendo a desigualdade regional, dando a oportunidade de crescimento para as demais regiões, o país como um todo vai ganhar", opinou o entrevistado. 

Na interpretação do estudioso, o pano de fundo é justamente o da Reforma Tributária, que já tramitou pela Câmara dos Deputados e agora está no Senado Federal, e carrega em seu conteúdo dois pontos "bastante sensíveis". 

O primeiro seria de como os recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, constante no texto-base da proposição, será utilizado e distribuído aos estados. "Há uma grande preocupação dos estados do Sul e Sudeste de que os do Norte e Nordeste sejam priorizados, quando na verdade deveriam ser, pela dívida com relação a essas localidades quanto a oportunidades e desenvolvimento", alertou França.

O segundo tem relação com a ocupação de cadeiras no colegiado que irá tomar decisões relativas ao Imposto Sobre Bens e Serviços (IBS), tributo a ser criado e que promete unificar o ISS (Imposto Sobre Serviço) e o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços). Conforme apontou o economista, há um temor "de como vai ficar a governança dessa instância e se os estados do Norte e Nordeste vão ter um protagonismo".

Doutor em Economia pela Universidade de Vanderbilt e ex-secretário de Fazenda de Pernambuco, Jorge Jatobá acrescentou que a Reforma Tributária propõe, dentre outras mudanças, um horizonte incomum aos governantes, sem os benefícios fiscais, atrativos em negociações pela instalação de novos empreendimentos, por exemplo. "Por conta disso, os governadores do País inteiro, sobretudo do Nordeste, pleitearam o Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional. Esse fundo foi aprovado na Câmara dos Deputados e depois que passar pelo Senado precisa ser regulamentado", lembrou.

"Essa repartição, os governadores do Nordeste sugerem que seja um instrumento de reduzir as desigualdades regionais, privilegiando, na medida do possível, os estados desta região, do Centro-Oeste e do Norte, pois eles têm a maior defasagem econômica e social se comparados ao Sul e o Sudeste. Eles estão em muitos indicadores abaixo da média nacional", ponderou Jatobá. 

Com essa panorama iminente, o estabelecimento de critérios passou a ser visto como primordial ao processo. "O governador de São Paulo sugeriu que fosse baseado no CadÚnico, o que seria bom para o Nordeste porque boa parte das pessoas que estão no cadastro são daqui. Outros acham que deveria ser proporcional à população, e nesse caso o Sul e o Sudeste têm um peso maior", elencou o pesquisador.

Na sua percepção, o que está na mesa neste momento é uma luta política pelos critérios de repartição do fundo. "Os governadores do Nordeste, por exemplo, defendem que ele seja o inverso da renda per capita, o que significaria que as regiões com menor renda por pessoa pudessem ter uma maior participação no fundo. É uma disputa por recursos".

"Eu defendo, por exemplo, que esses critérios de repartição do fundo sejam, de fato, instrumentos de redução das desigualdades porque o Nordeste, com a extinção dos benefícios fiscais, para atrair novas empresas, vai ter que investir muito para melhorar a qualidade da sua infraestrutura econômica e social. Agora as decisões de investimentos não serão mais tomadas com base em incentivos, mas na capacidade de atração que os estados têm em termos de qualidade de infraestrutura e recursos humanos", finalizou.

2. REPERCUSSÕES DA CLASSE POLÍTICA 

Os tucanos Eduardo Leite e Aécio Neves, governador do Rio Grande do Sul e deputado federal por Minas, respectivamente, demonstraram insatisfação quanto ao teor da mensagem ainda nos primeiros instantes em que ela passou a circular pela internet. Para o gaúcho, a atitude não foi um ataque, mas, caso tenha sido, esta seria uma posição que não o representa. Aécio foi mais enfático e intitulou a ação do conterrâneo como um "desserviço".

Além dos dois políticos sul-sudestinos, governadores e outras figuras públicas também expuseram opiniões contrárias ao que foi dito. O presidente de Senado e do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD), foi um deles. "Não cultivamos em Minas a cultura da exclusão. Juscelino Kubitschek, o mais ilustre dos mineiros, ao interiorizar e integrar o Brasil, promoveu a lógica da união nacional. Fiquemos com seu exemplo. Ao valoroso povo do Norte e Nordeste, dedico meu apreço e respeito. Somos um só País", escreveu o parlamentar em seu Twitter, onde o assunto atingiu o ranking de mais comentados no final de semana.

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), ex-governador do Maranhão, também deu sua opinião nas redes sociais. "É absurdo que a extrema-direita esteja fomentando divisões regionais. Precisamos do Brasil unido e forte", provocou o socialista. Que continuou: "Está na Constituição, no art. 19, que é proibido 'criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si'. Traidor da Constituição é traidor da Pátria, disse Ulysses Guimarães".

Em resposta a Romeu Zema, o Consórcio Nordeste, instância jurídica, política e econômica formada por representantes dos 9 estados da região, emitiu uma nota em que afirmou considerar o teor da entrevista do chefe do Executivo mineiro uma "leitura preocupante do Brasil". De acordo com o comunicado oficial, há um indicativo de tensionamento com os demais estados, sobretudo do Norte e Nordeste, que estão em desprestígio ao longo da história dos projetos nacionais de desenvolvimento.

"Já passou da hora do Brasil enxergar o Nordeste como uma região capaz de ser parte ativa do alavancamento do crescimento econômico do País e, assim, contribuir ativamente com a redução das desigualdades regionais, econômicas e sociais", ressaltou o texto divulgado, que também ressaltou que o Consórcio não representa "uma guerra contra os demais estados" e nega qualquer "lampejo separatista".

Com a repercussão negativa, o diretório estadual do Partido Novo no Ceará lançou um informe assinado pelo presidente Afonso Rocha em que acusa o veículo responsável pela veiculação da matéria de "sensacionalista". Conforme alegou a sigla que abriga Zema, há um interesse em prejudicar a imagem do político e da agremiação ao publicar o que chamaram de "falsa mensagem de uma contraposição à região Nordeste".

"A leitura da entrevista na íntegra deixa claro que a união do Sul e Sudeste jamais foi pensada para diminuir ou ser contra nenhuma das regiões do Brasil, mas sim para somar esforços. A união das regiões Norte e Nordeste serviu de inspiração para as demandas pleiteadas pelo Sul e Sudeste", pontuou o comunicado, citando o exemplo do Consud, que foi inspirado no Consórcio Nordeste e no Consórcio Amazônia Legal.

Como desdobramento, um deputado de oposição da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), Cristiano Silveira (PT), ingressou com um projeto de lei que propõe a criação do Dia Estadual do Nordestino. A celebração, sugeriu o parlamentar, deve acontecer na mesma data de aniversário de Luiz Gonzaga. Após apresentar a ideia, o petista provocou: "Aprende, Zema". 

3. PERCEPÇÃO POLÍTICA TEM BASES HISTÓRICAS

A produção cafeeira foi a mola propulsora da concentração industrial e urbana do Sudeste. Dado o lucro da monocultura, o pós-independência e os anos posteriores foram de franca ascensão da região no cenário econômico brasileiro. Foi a partir do acúmulo de recursos adquiridos pelo cultivo do café que a infraestrutura e a edificação de indústrias se tornou possível em cidades como São Paulo. 

A vantagem do restante do Brasil quanto a estrutura oferecida e a utilização de diferentes forças de trabalho - primeiro a mão de obra escravizada, depois a de imigrantes estrangeiros, e mais recentemente de migrantes nordestinos - foram atributos que contribuíram diretamente para a manutenção do protagonismo econômico e financeiro que vigora até os dias atuais.

Durante a Primeira República, a busca pela predominância do poder pelas duas principais oligarquias do Brasil, representadas por Minas Gerais e São Paulo, instituiu um sistema político de alternância na cadeira da Presidência, a "Política do Café com Leite", intitulado deste modo pelos ativos que sustentavam a economia da época. Nesse sistema, os dois estados detinham o direito exclusivo de eleger o chefe do Executivo nacional.

Aliado a esse contexto, apenas na década de 1950 é que as primeiras políticas de desenvolvimento passam a ser executadas no sentido de integrar todo o país em uma lógica de desenvolvimento. É a partir daí que são criados o Banco do Nordeste, a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) e a Superintendência do Desenvolvimento do Centro-Oeste (Sudeco).

Para a professora Doraliza Anunciadora, que é doutora em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professora de Gestão Pública na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a enunciação de Romeu Zema não está isolada de um repertório anterior. No seu entendimento, o que foi dito reforça uma "percepção pejorativa de que quem produz e quem trabalha no Brasil é o Sul e o Sudeste".

"É uma fala imbuída de preconceito, que desmerece o histórico de lutas do povo do Norte e Nordeste", aponta, salientando o potencial produtivo delas. "Essas regiões foram historicamente apartadas de acesso a serviços públicos e de políticas públicas em diversas áreas. Elas foram limadas possibilidades de desenvolvimento e perspectivas e processos de indução histórica de desenvolvimento", classificou.

Na compreensão de João Mário de França, o que falta é uma visão do Sul e Sudeste que o Norte e o Nordeste não são problemas. "Pelo contrário, são regiões que têm um potencial muito grande de desenvolvimento, desde que ocorra uma política nacional olhando para elas com investimentos com estratégias nesse sentido", propôs o docente especialista no assunto.

Ele, entretanto, não considera que haja um preconceito no episódio que trouxe a questão à baila. "Não diria xenofobia, mas ainda há uma visão muito distorcida do Nordeste, que ainda o vê como problema e não como um território com uma potencialidade", categorizou França. 

Jatobá, também entrevistado pelo DN, opinou que houve uma infelicidade no conteúdo do que o mineiro proferiu: "O que faltou a Zema foi a percepção de que o estado dele tem o Vale do Jequitinhonha na área de atuação da Sudene. Ele tem acesso ao Fundo de Desenvolvimento do Nordeste (FNE) e todas as políticas que a Sudene vem conduzindo ao longo dos anos para reduzir as desigualdades regionais".

4. A FORMAÇÃO DE CONSÓRCIO E OS DESAFIOS PÚBLICOS

Em 2005, o federalismo brasileiro ganhou um incremento, com a criação da Lei dos Consórcios Públicos, dando ênfase ao que estava previsto no artigo 241 da Carta Magna. A legislação promulgada na época pelo Congresso permitiu a estados e municípios a formalização de arranjos governamentais para diversas ações conjuntas, seja na aquisição de equipamentos e insumos ou na implementação de pactos.

Ao que contou João Mário de França, a ideia destes organismos é "reunir esforços, no sentido político e econômico, e também compartilhar experiências e soluções. "Há muito ganho de escala quando você trabalha dessa maneira", destacou. Contudo, ressalvou o economista, é essencial é que não haja nenhum tipo de antagonismo entre essas regiões.

Como explicou Doraliza Auxiliadora, o principal papel deste modelo de gestão, conforme o que prevê a legislação, é a cooperação entre entes federados na gestão associada de serviços públicos e na realização de objetivos comuns.

Segundo ela, a formação de consórcios é um instrumento bastante utilizado Brasil, principalmente nas últimas duas décadas, para resolução de problemas comuns entre entes federativos, incluindo os municípios que compartilham de uma certa proximidade territorial.

A primeira estrutura do tipo que reuniu estados foi o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento do Brasil Central, fundado em 2015. Quatro anos depois, em 2019, após a eleição de nove chefes do Executivo que demarcavam oposição ao presidente da época, Jair Bolsonaro, foi implementado o Consórcio Nordeste. Na mesma época, foram instalados o Consud e o Consórcio Interestadual da Amazônia Legal.

No decorrer dos últimos anos, o órgão consorciado nordestino ganhou destaque ao agir em frentes integradas, como o combate à pandemia da Covid-19 e a captação de investimentos na região. O ecossistema forjado a partir disso tem ajudado os envolvidos a superar dificuldades e estabelecer saídas. O Consórcio Nordeste, com sua força política, tem sido ponta de lança de uma mobilização política descentralizada.