Três temas julgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ganharam evidência nas últimas semanas ao serem retomados ao mesmo tempo em que a presidente da Corte, ministra Rosa Weber, encerra a carreira como magistrada.
Fazem parte dessa relação de assuntos com forte repercussão no debate público que estão sobre as mesas dos ministros o marco temporal para demarcação das terras indígenas, a descriminalização do aborto e a suspensão dos direitos políticos da ex-presidente da República, Dilma Rousseff (PT).
Pensando em destrinchar o que está sendo deliberado pelo órgão máximo do Judiciário brasileiro, de que maneira os assuntos se aplicam atualmente, como votou cada um dos magistrados e como deverá se dar a aplicabilidade de cada tema após a conclusão dos julgamentos, o Diário do Nordeste traçou um panorama sobre cada um deles.
Marco temporal
O primeiro dos três teve a primeira fase encerrada nesta quinta-feira (21). Por 9 votos a 2, o plenário do STF decidiu pela rejeição da tese de que a data da promulgação da nova Constituição Federal, 5 de outubro de 1988, poderia ser utilizada para a definição da ocupação tradicional da terra por comunidades indígenas.
Votaram contra o argumento o relator Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Cristiano Zanin, Dias Toffoli, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Rosa Weber e Gilmar Mendes. Os ministros André Mendonça e Kassio Nunes Marques foram favoráveis à proposta, que é defendida por ruralistas.
Caso fosse aceita, seria considerada constitucional que os povos originários só tivesse direito a áreas que tivessem em sua posse no dia em que a Carta Magna foi publicada. A definição do Supremo tem repercussão geral e deverá ser seguida por todas as instâncias do Judiciário em situações de mesma ordem.
O processo foi incluído na pauta em 2021 e ficou conhecido como um dos maiores da história do Tribunal. Ao todo, ele foi analisado durante 11 sessões e contou com 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República.
Durante a apreciação, os ministros Moraes e Toffoli, respectivamente, ao proferir seus votos, ressaltaram a "boa fé" dos ocupantes de terras que deveriam ser remunerados caso atestassem tal virtude e defenderam a possibilidade de aproveitamento de recursos minerais, hídricos e orgânicos situados dentro de reservas indígenas.
O caso concreto que deu origem ao recurso tem relação com um pedido do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) de reintegração de posse de uma área localizada em parte da Reserva Biológica do Sassafrás. O perímetro em questão era declarada como de tradicional ocupação indígena pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
O Tribunal Regional da 4ª Região (TRF-4) havia concedido a posse para o órgão estadual - o que fez com que a Funai recorresse. Na resolução pelo STF prevaleceu o entendimento de Fachin, uma vez que a Justiça Federal não havia considerado a preexistência do direito originário e não teria proporcionado à comunidade indígena e a fundação a demonstração da melhor posse.
A segunda etapa do processo será a fixação dos termos que servirão de parâmetro para a resolução de casos semelhantes e deverá ocorrer na próxima quarta-feira (27). Segundo a Suprema Corte, cerca de 226 ações parecidas aguardam essa definição para serem julgadas. Os ministros devem debater alternativas para que um consenso defina como as indenizações a ocupantes de áreas indígenas deverão ser pagas.
No julgamento desta quinta, indígenas de diversas etnias acompanharam de perto os votos dos membros da instância máxima do Poder Judiciário, dentro do plenário e numa tenda montada do lado de fora. Com cantos e danças, os que estavam na parte externa comemoraram o voto do ministro Luiz Fux, que formou maioria para a derrubada do marco temporal.
Apesar do que definiu o Supremo, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que busca estabelecer a promulgação da constituição como marco temporal para o reconhecimento de posse de áreas pelos indígenas. A proposição foi aprovada pela Câmara dos Deputados em maio deste ano e hoje está sob apreciação do Senado Federal.
Um debate sobre a matéria estava previsto para acontecer na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa Alta no último dia 20 de serembro. Um pedido de vistas coletivo adiou a votação para a próxima quarta-feira (27). Caso seja aprovada pelo Legislativo, a medida poderá ser considerada inconstitucional.
Através de nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), uma das principais organizações que defendem os direitos dos primeiros habitantes do território brasileiro, discutiu os pormenores do julgamento do STF e chamou a atenção para a conduta dos parlamentares.
Para a instituição, a tramitação se configura como um embate entre os dois Poderes da República e representa "uma afronta de políticos que querem impor seus interesses econômicos nas terras indígenas sobre as próprias vidas indígenas".
Caso opte por legislar sobre o assunto de outra maneira, o Parlamento poderá ingressar ainda com uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Entretanto, caso o STF considere o entendimento recente como uma cláusula pétrea, ele não poderá ser modificado por força de nenhuma articulação dos congressistas.
Descriminalização do aborto
Conforme dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), realizada em 2021 pela Universidade de Brasília (UnB) e o Instituto Anis, uma a cada sete mulheres brasileiras com idade próxima aos 40 anos já fez ao menos um aborto e 43% tiveram que ser hospitalizadas após realizar o procedimento. O levantamento ouviu 2 mil pessoas em 125 municípios do País.
O fenômeno social, que atinge principalmente mulheres negras e indígenas - somadas elas representam 39% do extrato analisado pelo estudo - e com baixa escolaridade - uma vez que a maior parte delas, aproximadamente 18% estacionaram no ensino fundamental II -, virou assunto na Suprema Corte do Brasil nessa sexta-feira (22) por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442.
Inicialmente, o tema começou a ser julgado no plenário virtual, porém, depois de um pedido de destaque do ministro Luís Roberto Barroso, o julgamento foi suspenso. A solicitação do magistrado pretende levar o caso em questão para o plenário físico.
A análise do STF foi motivada por uma ação protocolada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) em 2017. A legenda argumenta que a interrupção da gestação até a décima segunda semana - cerca de três meses - deixe de ser crime, uma vez que a criminalização afetaria a dignidade da pessoa humana, sobretudo a parcela feminina racializada e pobre.
O primeiro voto, favorável, foi da relatora do processo e presidente da Corte, a ministra Rosa Weber. Ela deverá se aposentar na próxima semana por ter completado a idade máxima de serviço, que é de 75 anos. Quem assumirá a chefia é Barroso, numa cerimônia de posse que está marcada para a próxima quinta-feira (28). Será ele o responsável por definir a retomada do julgamento.
Caso a decisão final seja favorável, tanto as pessoas que optarem pelo serviço de saúde quanto os profissionais que executarem procedimentos de aborto de maneira voluntária até o prazo estipulado ficarão imunes de processos ou qualquer tipo de penalização.
Não é certo que, com a descriminalização, também ocorra a determinação para que o Sistema Único de Saúde (SUS) incorpore o aborto por vontade própria em seu quadro de atendimentos. Apesar disso, a Corte pode estabelecer recomendações para que o Executivo possa aderir ao que foi decidido.
O Código Penal prevê três tipificações de crimes relacionados ao aborto: quando é provocado em si ou consentido que outra pessoa realize (pena de um a três anos de detenção), quando é provocado por terceiro sem que haja o consentimento de quem gesta (de três a dez anos de prisão), ou quando se provoca com o consentimento da gestante (de um a quatro anos de reclusão).
Atualmente, só é permitida a realização da conduta por médicos nas situações em que não há outro meio de salvar a vida da gestante, caso a gravidez seja resultante de um estupro, ou se o feto gestado não tiver condições de desenvolver um cérebro.
As últimas movimentações renderam manifestações contrárias, principalmente de grupos religiosos fundamentalistas. Em um comunicado divulgado no último dia 18 de setembro, a presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) criticou a atuação do STF.
Conforme subscreveram os principais membros do episcopado católico, "iniciativas que pretendam apoiar e promover o aborto" jamais seriam aceitas e a atuação opositora da entidade se daria "em defesa da integralidade, inviolabilidade e dignidade da vida humana".
Sob as duas cúpulas do Parlamento, o tema reverbera de maneira expressiva entre as alas que concordam com a legalização do aborto e com as que discordam. Como reação ao julgamento do Supremo Tribunal Federal, uma sessão especial foi convocada para o dia 8 de outubro, a fim de se debruçar sobre o ocorrido.
No espectro contrário à legalização, a Frente Parlamentar Mista contra o Aborto e em Defesa da Vida reúne 192 políticos que se definem como "pró-vida". Na legislatura anterior, as Casas Legislativas encamparam a pauta da liberdade sexual e reprodutiva das mulheres a partir da Frente Parlamentar Feminista Antirracista, que realizou eventos sobre o assunto.
Recentemente, o Estatuto do Nascituro, ainda em fase embrionária nas mãos da bancada conservadora, rendeu discussões acaloradas nas comissões da Câmara dos Deputados. A proposta é uma das apostas do grupo conservador, que pleiteia através agora a sua inserção na próxima ordem do dia via requerimento como uma revanche ao Supremo.
O projeto de lei versa que a natureza humana "é reconhecida desde a concepção" e deste modo lhe é conferida "proteção jurídica através" da legislação que é proposta e dos códigos civil e penal. O texto ainda propõe a terminologia "nascituro", que definiria um "ser humano ainda não nascido".
Direitos políticos da ex-presidente Dilma
Em 31 de agosto de 2016, no contexto da acusação da prática de manobras conhecidas como "pedaladas fiscais", Dilma Rousseff (PT), a primeira agente pública do sexo feminino a sentar-se na cadeira da Presidência da República foi impedida de dar continuidade ao seu mandato.
O ato final consumou um processo iniciado em 2015, com o acolhimento da denúncia de crime de responsabilidade pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (MDB). O pedido havia sido apresentado pelos juristas Hélio Bicudo, Miguel Reale Júnior e Janaína Paschoal.
Naquele dia, decorrido todos os passos do trâmite legislativo pelas duas instâncias que compõem o Parlamento, os senadores aprovaram o Impeachment da então mandatária por 61 votos a 20. Por escolha dos mesmos parlamentares que optaram pelo impedimento - com um placar de 42 votos a 36 - os direitos políticos da petista, porém, foram mantidos.
A separação das votações aconteceu por meio de um pedido da bancada do Partido dos Trabalhadores, acatado pelo então presidente da Suprema Corte, Ricardo Lewandowski, que também presidiu o processo que retirou Dilma do poder.
Três dias antes, a própria acusada esteve frente aos acusadores para o julgamento. Ouvida, Rousseff negou ter cometido os tais crimes, classificou como "golpe" a possível aprovação daquele processo e acusou o seu vice-presidente, Michel Temer (MDB) e o deputado Cunha de "conspiração". A acepção por quadros do PT e de agremiações aliadas.
A narrativa do "golpe" voltou a ter força entre petistas e aliados com sentenças de segunda instância como a do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), que em 2022 extinguiu uma ação popular que pedia o reembolso de valores pela ex-presidente por supostos danos de sua gestão aos cofres públicos, e a do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), que manteve uma decisão que havia sido tomada na primeira instância, em setembro de 2022, pela 4ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, que negou uma ação de improbidade administrativa apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF).
A ex-chefe do Executivo federal chegou a se candidatar ao cargo de senadora em 2018 pelo estado de Minas Gerais, mas não logrou êxito na sua eleição. Hoje ela lidera o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), órgão de financiamento mantido pelo Brics.
Neste período, outras ações foram movidas para questionar a habilitação de Dilma para exercer cargos públicos, mantida pelos parlamentares na ocasião do processo de Impeachment.
Nessa quinta-feira (21), sete anos depois de proferido o resultado, o STF formou maioria para fechar o entendimento em prol da manutenção dos direitos políticos da ex-presidente, ao analisar um conjunto de ações movidas por legendas e partidários que questionam o resultado obtido no Senado.
Ao apresentar seu relatório, a ministra Rosa Weber concluiu não ser possível que o Poder Judiciário tome uma nova decisão sobre o caso, de modo que seja substituído o parecer do Legislativo, e que seria inviável a realização de uma nova votação.
Além de Weber, votaram de modo contrário ao provimento do recurso a ministra Cármen Lúcia e os ministros Edson Fachin, Dias Toffoli, Cristiano Zanin e Alexandre de Moraes.