Prefeituras cearenses e câmaras municipais têm sido foco de investigação do Ministério Público do Ceará (MPCE), nos últimos anos, diante de denúncias envolvendo a contratação de “funcionários fantasmas” no setor público. Desde 2015, o órgão atuou em, pelo menos, 24 casos.
O levantamento é baseado em divulgações do próprio MPCE. Os números, no entanto, devem ser maiores, tendo em vista a existência de processos que ainda não foram publicizados pela instituição.
Durante os últimos sete anos, a promotoria conseguiu na Justiça o afastamento de vereadores, promoveu busca e apreensão nas gestões, realizou ação civil pública, deflagrou operações, pediu afastamento de prefeitos, fiscalizou servidores e oficializou denúncias de corrupção.
Os casos afetam diretamente a eficiência da gestão pública, com a baixa quantidade de servidores atuantes.
Como funciona
A definição de funcionário fantasma é caracterizada quando um trabalhador é contratado para prestar algum serviço no Poder Público, mas o trabalho não é realizado, e o salário é pago normalmente.
Ao longo dos últimos anos de investigação, foram identificados diversos casos em que o funcionário mora em outro estado, por exemplo, e que nunca compareceu ao local que deveria bater o ponto.
Esse tipo de infração acontece como um acordo entre o contratante e o contratado e é motivado, rotineiramente, pela prática da “rachadinha” – que é quando há a divisão do salário por parte do contratante e do funcionário.
"Você receber dinheiro da prefeitura sem trabalhar, por incrível que pareça, é um status. Todos esses anos em que eu trabalhei com isso, descobri esse aspecto interessante: as pessoas recebem dinheiro sem trabalhar e ficam exibindo contracheque como se quisesse demonstrar que ela está acima da lei”, relata o promotor Ricardo Rocha que atua em casos como esses há 26 anos.
Receber sem trabalhar
A grande maioria das denúncias parte da população que procura o Ministério Público para apontar as supostas infrações, diz o promotor.
A população sempre procura o Ministério Público e denuncia os casos de funcionários fantasmas. Aí vamos pesquisar através do Portal da Transparência daquele órgão, vamos verificar junto ao Tribunal de Contas o que existe, vamos requisitar as folhas de ponto, enfim, tudo aquilo que possa comprovar que o funcionário recebe sem trabalhar.
Curiosamente, a contratação de funcionários que não trabalham é protegida por uma brecha na lei que acaba beneficiando a prática. Por não ser tipificada como crime, conforme o Superior Tribunal de Justiça, a infração continua sem constrangimentos no Executivo e Legislativo.
No dia 18 de janeiro deste ano, o Ministério Público do Ceará abriu investigação contra o deputado estadual André Fernandes (PL) por suposta contratação de funcionária fantasma.
A acusação é de que uma assessora batia ponto em uma empresa privada no mesmo horário em que deveria estar prestando serviços para o mandato do parlamentar. O deputado, porém, gravou um vídeo negando qualquer irregularidade no gabinete.
Em 2018, o ex-vereador Leonelzinho Alencar chegou a ser condenado a 11 anos de prisão. Na época, o juiz titular da 18ª Vara Criminal de Fortaleza, Ireylande Prudente Saraiva, entendeu que o ex-vereador cometeu crimes de peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro.
Segundo as investigações, as irregularidades se davam através da contratação de “assessores fantasmas” que praticavam também as “rachadinhas”. O então parlamentar, que está em liberdade, sempre negou a prática criminosa.
Nos últimos sete anos, há casos também investigados em municípios como Pentecoste, Russas, Reriutaba, Boa Viagem, Maracanaú e Itarema.
Legislação
O advogado e professor universitário com atuação em direito constitucional, Vanilo de Carvalho, explica que, pela atual legislação brasileira, o "pagamento de funcionário fantasma não é crime", mas que "é uma infração" alimentada culturalmente e que precisa ser combatida.
Existe um vácuo legal para cercear esse tipo de comportamento. Afinal de contas, a lei existe para determinar comportamentos.
Por haver esse “vácuo” citado pelo professor, a promotoria acaba procurando outras possibilidades na Constituição para tentar classificar a prática como crime.
O promotor Ricardo Rocha argumenta que a Constituição de 1988 dá garantias para que o funcionalismo fantasma seja punido. “Fere todos os princípios da Constituição previstos no artigo 37: princípio da moralidade, da impessoalidade, etc”, aponta.
“Receber do serviço público sem trabalhar é crime previsto no artigo 312 do Código Penal, cuja pena vai de dois a doze anos de reclusão. Na medida em que a lei de improbidade está sendo enfraquecida, vamos enveredar pelo Código Penal”, esclarece Rocha.
A promotoria, portanto, recorre às leis que tratam dos crimes de peculato e improbidade administrativa para tentar conter a rotina fantasma no serviço público.
Mudanças propostas no Senado
Meses depois em que a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o funcionalismo fantasma não é crime, em dezembro de 2020, o senador Styvenson Valentim (Podemos-RN) apresentou o projeto de lei 3/2021 que tipifica a prática como uma ação criminosa.
O texto passa a prever que o crime de funcionário público fantasma consistente na conduta de receber remuneração em razão de cargo, emprego ou função pública sem desempenhar, de forma habitual, atividade laborativa na Administração Pública, com punição de reclusão de dois a doze anos e multa, incidindo nas mesmas penas a autoridade para quem deveria ser prestada a atividade, caso seja confirmada a participação no crime.
Não há dúvidas de que se trata de conduta ilícita. Em nossa opinião, aliás, trata-se de conduta grave, que deve ser elevada à categoria de infração penal, haja vista os danos diretos e indiretos que ocasiona. Recursos que seriam utilizados em favor da sociedade como um todo, na prestação de serviços públicos voltados, por exemplo, à saúde, à educação ou à segurança pública, acabam beneficiando indevidamente pessoas apadrinhadas por agentes públicos e políticos.
A matéria segue tramitando no Senado, mas está paralisada desde agosto do ano passado.
Como denunciar?
A contratação irregular de funcionários que não trabalham ocorre em toda instância de poder. Denúncias, inclusive anônimas, podem ser feitas diretamente à ouvidoria do Ministério Público do Ceará através dos seguintes contatos:
Ouvidoria-Geral MPCE
Telefones: 127 / 0800.2811553 / (85) 3253.1553 / (85) 3452.1562 (fone/fax)
E-mail: ouvidoria@mpce.mp.br