A participação feminina nos processos eleitorais foi conquistada com muita luta dos movimentos organizados por mulheres. E, mesmo quando o voto feminino foi instituído no Código Eleitoral Provisório decretado há 90 anos, as casadas ainda tinham de pedir “autorização” dos maridos para votar e, as solteiras, de comprovar suas rendas financeiras.
Isso não só atrasou em décadas o engajamento das mulheres na tomada de decisões da vida pública — elas são historicamente mais associadas à vida privada — como as reprimiu de pleitear com mais frequência o próprio espaço nos poderes, especialmente o Executivo.
Até hoje, por mais que os partidos políticos sejam obrigados a reservar 30% das vagas de candidaturas para mulheres, são poucas as que se elegem para assentos no Legislativo e menos ainda as que conseguem ocupar cargos nos Executivos municipais e estaduais.
Nesta parte da série “As pioneiras do poder no Ceará”, o Diário do Nordeste conta a história de Aldamira Guedes e Maria Luiza Fontenele, mulheres que se destacaram na história da política brasileira e que até hoje inspiram outras mulheres a ocupar seus espaços de direito.
As prefeitas
Elas são referência nacional: Aldamira Guedes, de Iguatu, primeira prefeita eleita por voto direto, e Maria Luiza Fontenele, primeira prefeita eleita de uma capital brasileira.
Cada uma ajudou a pavimentar caminhos para que outras mulheres se sentissem confiantes para disputar os cargos mais altos do Executivo. Mas, para se ter uma ideia, atualmente, só 27 prefeituras do Ceará são comandadas por mulheres, o que representa 14,6% do Estado.
Aldamira Guedes
Embora seja de Iguatu, Aldamira Guedes exerceu seu mandato como primeira prefeita eleita por voto livre e direto em Quixeramobim, no sertão central cearense, em 1958. Ela passou a morar no município depois de casar jovem, aos 17 anos, com o médico e também ex-prefeito de lá, Joaquim Fernandes. Ganhou o pleito por maioria absoluta de votos (59% do total).
Em entrevista ao Diário do Nordeste em 2008, poucos anos antes de falecer, Aldamira contou como conquistou o eleitorado à época. “A gente tinha que conquistar era na visita, na conversa, mostrando nossas propostas de trabalho. Era comum a gente pedir o voto às comadres e compadres, assegurando, por conta disso, uma boa margem de votos”, disse.
Embora tenha vencido as eleições num contexto social marcado pelo machismo e pelo patriarcado, em que nenhuma mulher, antes dela, havia conseguido conquistar o direito de gerir uma cidade, Aldamira disse à reportagem que acreditava não ter sofrido discriminação de gênero e que contava com o respeito e o apoio dos quixeramobinenses e de seu esposo, Joaquim.
Maria Luiza Fontenele
Algumas décadas depois da vitória de Aldamira, em 1985, em Fortaleza, numa eleição que marcou a redemocratização brasileira, se destacou Maria Luiza Fontenele.
De agenda social forte e apoiadora do movimento “Diretas Já!”, a professora universitária conseguiu desbancar os dois favoritos do pleito, Paes de Andrade e Lúcio Alcântara, e se tornar a primeira prefeita eleita de uma capital.
Para a deputada federal Luizianne Lins (PT), que foi a primeira e única mulher que conseguiu se eleger prefeita de Fortaleza depois de Maria Luiza Fontenele, a vitória da antiga correligionária num contexto machista e de redemocratização do País foi “um fato histórico”.
“Depois de muito tempo sem a participação popular na escolha de governantes das capitais e cidades estratégicas definidas pelo regime de exceção, o povo de Fortaleza, em uma demonstração de ousadia e consciência democrática, elegeu a professora universitária e deputada estadual Maria Luiza, então no PT, prefeita. Foi revolucionário”, compreende.
Luizianne diz também que “toda vez que uma mulher ocupa um espaço político, já é um acontecimento importante”, seja nos parlamentos ou no Executivo.
“Costumo dizer que, quando uma mulher governa, faz com cuidado, amor. Foi esse o sentimento que a candidatura de Maria despertou naquela época, ao tempo em que alinhado a um discurso profundamente libertário e emancipacionista”, lembra a deputada, destacando que a ex-prefeita ainda sofreu “oposição ferrenha das elites conservadoras e preconceituosas” que diziam que nenhuma mulher voltaria a governar Fortaleza depois dela.
Estímulo à competitividade
Para a cientista política Paula Vieira, da Universidade Federal do Ceará, a eleição de Maria Luiza Fontenele para prefeita de Fortaleza e a eleição de mulheres para o Legislativo nas décadas de 1980 e 1990 foram fundamentais para fortalecer a competitividade delas.
A especialista acredita que, especialmente devido às cotas para a reserva de vagas para candidaturas femininas e ao financiamento especial de campanha, os partidos se veem na obrigação de lançar mais mulheres para o Legislativo e o Executivo, sejam elas de direita, centro ou esquerda.
“É difícil porque é uma mudança cultural, que vai contra uma ideia que entende a mulher mais voltada para o espaço privado e os homens mais para o espaço público”, reconhece Paula. No entanto, ela aponta a figura da vice-governadora cearense Izolda Cela (PDT) como uma possibilidade de impulsionar ainda mais essa transformação.
Izolda Cela
A vice-governadora Izolda Cela deve assumir o Ceará nos próximos meses, tão logo o governador Camilo Santana (PT) se licencie do cargo para se candidatar ao Senado. Essa será a primeira vez que o Estado será comandado por uma mulher.
Izolda Cela tem crescido muito como o nome da política cearense. Como ela tem experiência em administração pública, ela tem desenvolvido bem o papel de vice-governadora, tanto que tem sido cogitado o nome dela como possível continuação do governo Camilo”.
Antes de se filiar ao PDT, Izolda teve uma atuação forte na Secretaria da Educação de Sobral, onde nasceu, e foi titular da Secretaria da Educação do Ceará (Seduc) por oito anos, tendo sido o grande nome "por trás" de projetos de relevância nacional, como o Programa Alfabetização na Idade Certa (Paic).
Em 2014, ela foi convidada por Cid Gomes para compor uma chapa com Camilo Santana, que chega, neste ano, ao fim de sua segunda gestão, e deixa em aberto para a vice a possibilidade de continuar sua gestão.
Izolda, inclusive, é pré-candidata ao Governo. Ela é a única mulher que disputa internamente a vaga no PDT com outros três homens da sigla: o ex-prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio; o deputado federal Mauro Filho e o presidente da Assembleia Legislativa, Evandro Leitão.
Sem o costume de alardear suas movimentações políticas, diferentemente de alguns dos seus concorrentes, Izolda tem um perfil mais moderado, de atenção ao diálogo e preocupação com a gestão.
Recentemente, seu nome como pré-candidata ao Governo se fortaleceu ainda mais quando, diante de uma série de desgastes entre PDT e PT referentes à manutenção da aliança entre os partidos e à formação da chapa para o Estado, ela conversou com a deputada Luizianne Lins, que teria saído satisfeita do encontro.
Artigo de opinião
Leia, abaixo, um artigo de opinião da ex-deputada estadual e atual prefeita de Tauá, Patrícia Aguiar, sobre a representação feminina nos cargos do Executivo.
Desafio, superação e luta
Desafio, superação e luta compõem o tripé que resume a participação da mulher em cargos do Poder Executivo no Brasil.
Temos uma realidade completamente desigual na participação da mulher na política. A nossa presença em cargos eletivos, quer seja nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, Congresso Nacional ou no Executivo fica em torno de 15%. Um paradoxo em virtude de sermos maioria da população.
Enquanto não tivermos a presença feminina no centro das decisões, teremos essa cenário desequilíbrado. Isso tem reflexos nas políticas públicas aplicadas pois a mulher tem a visão mais sensível pela sua própria natureza do querer cuidar. Avançamos em muitas áreas. Somos maioria nas universidades, no setor de serviços e em várias atividades, mas o desafio na representatividade política permanece.
Como experiência própria, tive que enfrentar preconceitos ainda arraigados na nossa cultura/criação patriarcal. Na minha primeira eleição para prefeita de Tauá - município encravado em pleno sertão -, no ano 2000, por várias vezes tive que ouvir que eu não receberia voto por ser mulher. Tempos depois, quando voltava àquela localidade já eleita e encontrava com o eleitor que havia dito aquilo, ele admitia que as mulheres têm competência para administrar e pedia desculpas…
Essa é só a ponta de um problema bem maior que enfrentamos. Dados mais recentes apontam que chegamos ao Dia Internacional da Mulher ocupando a embaraçosa 161ª posição no Ranking de Presença Feminina no Poder Executivo, dentre os 186 países analisados pelo Projeto Mulheres Inspiradoras.
Os dados são baseados em informações das Nações Unidas, do Banco Mundial e do instituto de pesquisas The Heritage Foundation. Segundo o ranking, os dez primeiros países com presença política de lideranças femininas no Executivo são: Nova Zelândia, Chile, Reino Unido, Suíça, Ilhas Marshall, Myanmar, Islândia, Noruega, Peru e Alemanha.
No Poder Legislativo, ocupamos uma colocação menos desconfortável, mais ainda estamos no 142º lugar no ranking de países com maior representação feminina no Legislativo.
A série histórica mostra que a nossa presença aumentou no Congresso Nacional ao longo dos anos. Esse aumento chegou a mais de 50% na Câmara Federal, mas os índices de participação política feminina no país são ainda muito baixos. Estamos atrás dos Estados Unidos, Itália, Bolívia e Cuba.
Vale ressaltar que muito desse crescimento decorre da própria Legislação Eleitoral que prevê cotas de 30% nas listas de candidaturas proporcionais do Legislativo e pela obrigatoriedade do investimento do fundo eleitoral partidário nas candidaturas de mulheres.
Nas mais recentes eleições municipais, em 2020, foram mais de 187 mil mulheres candidatas em todo o país, ou seja, cerca de 28,5 mil a mais do que em 2016. Na prática, esse aumento resultou em mais mulheres eleitas: foram 658 prefeitas com vitória nas urnas contra 641 anteriormente.
Neste ano de 2022, celebramos os 90 anos da conquista do voto feminino no Brasil, sendo um dos primeiros 30 países em que as mulheres conquistaram esse direito. No entanto, esse “pioneirismo” esbarra na realidade da falta da representatividade feminina seja no Executivo ou no Legislativo.
Para mudar a situação, se faz necessária uma mudança estrutural dos próprios partidos políticos abrindo cargos e funções de direção para as mulheres, bem como a ampliação do debate com a sociedade sobre a participação das mulheres na política.
A realidade é que nunca foi fácil para nós, mulheres, ocuparmos os espaços, sejam eles na política, nas empresas e na sociedade como um todo. Mas os desafios existem para serem superados e os preconceitos para serem vencidos. Estamos juntas na construção de uma realidade menos desigual e que nos garanta espaços para soltarmos nossa sua voz, abraçarmos nossas conquistas e usufruir nossos direitos.
Patrícia Aguiar
Prefeita de Tauá e ex-deputada estadual