Um processo educativo sobre a necessidade da luta por direitos. É essa a expectativa da assistente social Irene Jucá, de 50 anos, caso a ideia legislativa apresentada por ela, em 2017, seja aprovada no Congresso Nacional e transformada em legislação.
A proposta – assinada por ela, mas criada a muitas mãos – prevê a obrigatoriedade de criação de centros de assistência integral a pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Sistema Único de Saúde (SUS).
Algo que, ao ser efetivado, pode representar uma melhoria na qualidade de vida de crianças e adultos com autismo, mas também de cuidadores e, principalmente, cuidadoras, já que, Irene enfatiza, este papel é majoritariamente ocupado pelas mães.
Mas, para além dos impactados por essa proposta, Irene Jucá deseja também inspirar outros a iniciativas semelhantes, na busca pela garantia de direitos.
"Eu gostaria muito que as pessoas vissem que a gente precisa lutar pelos nossos direitos. Pelos direitos que a gente já conquistou e os que ainda precisa conquistar, como é esse o caso. É tão importante, porque pode mostrar para outras pessoas que é possível também".
Mãe de Letícia, de 29 anos, a luta de Irene é compartilhada por outras mães de pessoas com autismo atendidas pela Fundação Projeto Diferente, localizada em Fortaleza. E o compartilhamento de dificuldades encontradas na busca por atendimento aos filhos foi o ponto de partida para a ideia de criação de uma proposta legislativa de iniciativa popular.
Suporte a pessoas com autismo
"O autismo é uma condição que demanda acompanhamento especializado. (...) São atendimentos caros", explica Irene. A necessidade de cada pessoa com autismo é diferente, mas ela cita algumas das mais comuns, como o atendimento com psicólogo, fonoaudiólogo ou terapeuta ocupacional.
Existem ainda casos em que é necessário um suporte médico em especialidades como a neurologia ou a psiquiatria.
"O autismo não é uma doença, mas pode vir acompanhado de comorbidades, como o atraso de fala e linguagem, epilepsia, além da própria questão que é fundamental no autismo, que são as dificuldades de comunicação e interação social. (...) E não é algo que vai ter um mês de atendimento e pronto. É algo que vai se dando ao longo da vida da criança, do adolescente e do adulto também".
Por isso, a ideia legislativa nº 65.884, apresentada pela cearense, cita as "barreiras cotidianas" encontradas por pessoas com TEA e familiares para ter a "atendimentos multiprofissionais que ocorrem de
modo insuficiente nos CAPS (Centro de Atenção Psicossocial)".
A "chave da questão", explica Irene, é a garantia de recurso público para o atendimento, a partir dessa legislação, para que os centros "saiam do papel".
Isto porque a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, aprovada em 2012, já prevê o acesso a ações e serviços de saúde, incluindo o diagnóstico precoce e o atendimento multiprofissional, por exemplo. "Algumas cidades conseguiram implementar, com recursos do próprio município ou do Estado, mas a maioria não", afirma.
O que dá início a uma "peregrinação" de mães e pais em busca do atendimento aos filhos. Casos de quem vem de municípios do Interior são comuns, relata a assistente social, algo que a proposta busca minimizar.
"A ideia é que esses atendimentos sejam disponibilizados para o Brasil todo, para os territórios de maior concentração de famílias. Esse é um estudo que precisa ser feito pelo próprio governo, a respeito de como isso vai se dar", completa.
Melhoria na qualidade de vida
Existe ainda uma outra camada do impacto dessa legislação, caso seja aprovada pelo Congresso Nacional. Além da necessidade de garantir o acesso a serviços de saúde a pessoas com autismo, é importante melhorar a qualidade de vida delas e de seus cuidadores – na maioria dos casos, as mães.
Com a filha Letícia, a rotina de cuidados é dividida entre Irene e o pai, Judas Tadeu. Divorciados, eles mantêm um bom relacionamento e Judas possui uma participação importante não apenas nos cuidados, mas na vida de Letícia. Uma realidade, infelizmente, incomum.
"Muitos pais abandonam as famílias ou, quando estão, alguns não participam desse suporte. A atividade de cuidado é mais destinada à mulher e é uma sobrecarga de responsabilidades que ela assume. Mesmo que ela não trabalhe fora, ela trabalha em casa, cuidando da família, fazendo o trabalho doméstico, que não é remunerado, e cuidando da pessoa com autismo", diz.
Diminuir o cansaço dessa mãe, que, por vezes, precisa se deslocar por diferentes pontos da cidade para que o filho possa ser atendido, ao integrar, em um mesmo espaço, os serviços de saúde. Ela também cita casos de pessoas com autismo que possuem questões sensoriais e para quem é difícil, por exemplo, lidar com o excesso de barulho em um ônibus – algo que fica mais difícil caso os trajetos sejam longos e frequentes.
"O propósito da gente foi exatamente esse: garantir o atendimento em um espaço, para que as famílias e a pessoa com autismo tenham menos desgaste nesse processo", afirma. "A gente espera que a lei consiga ser aprovada para que esses centros comecem a acontecer no país. A gente pensou não só nos nossos filhos, mas nos filhos e mães de todo o Brasil", conta.
Organização e informação
Seis anos depois de protocolar a ideia legislativa no Senado Federal, Irene Jucá – junto às outras mães da Fundação Projeto Diferente que também contribuíram com a proposta – ainda aguarda a concretização do projeto de lei.
A proposta é, contudo, a mais adiantada em tramitação no Congresso Nacional e pode se tornar a primeira ideia legislativa apresentada por um cidadão comum a virar lei, segundo o site do Senado Federal.
O trâmite seguido por ela foi o mesmo de outras propostas apresentadas por iniciativa popular: por meio do E-Cidadania qualquer pessoa pode propor uma ideia legislativa. Para ser analisada, no entanto, é necessário o apoio de, pelo menos, 20 mil pessoas – "uma cidade", como define Irene – em um intervalo de quatro meses.
Apenas depois disso, é que o texto irá para análise da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal, onde poderá ser transformada em projeto de lei ou proposta de emenda à Constituição.
Foi assim que, depois de 20.876 assinaturas, a ideia legislativa nº. 65.884 se transformou no Projeto de Lei (PL) 169/2018, aprovado em outubro de 2021 pelos senadores e enviada à Câmara dos Deputados. Lá, foram mais alguns anos de espera.
Apenas no último dia 17, a proposta – transformada em PL 3630/2021 - foi aprovada pelos deputados federais e enviada para ser votada novamente no Senado, já que passou por alterações. Agora, o projeto está em análise nas comissões.
O "trabalho de formiguinha" feito durante estes anos só foi possível, explica Irene, graças ao acesso à informação da possibilidade dada para qualquer pessoa propor uma ideia legislativa e a organização de mobilização para angariar o apoio necessário ao projeto de lei.
E, enquanto trabalha – junto a entidades e pessoas que militam pelo direito de pessoas com autismo – para aprovação da proposta, ela confessa que já pensa em outras ideias legislativas para apresentar ao Congresso Nacional. "Porque tem muitas demandas que temos e que ainda não são atendidas pelas políticas públicas. E para elas existirem, a gente precisa se mobilizar", enfatiza.