Um município com mais de 2,4 milhões de habitantes e que tem o desenvolvimento e o planejamento urbano norteados por uma legislação defasada. Essa é realidade de Fortaleza, quarta maior capital do país, cujo Plano Diretor Participativo — o PDPFor — aguarda por uma atualização desde 2019, quando, por obrigação, deveria passar por uma revisão. A legislação em vigência foi aprovada e sancionada ainda durante o mandato da ex-prefeita Luizianne Lins (PT), em 2009.
O prazo foi reavaliado por sucessivas vezes ao longo da gestão do prefeito José Sarto (PDT), tanto pelo próprio mandatário quanto por aliados que ocupam cadeiras na Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor). De saída do comando da Capital cearense, Sarto deverá entregar o gabinete de prefeito sem nem mesmo remeter para o Legislativo municipal o texto inicial para atualização do instrumento de planejamento.
A instituição do Plano Diretor é prevista em duas leis federais: a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade. Em ambos regramentos fica determinado que a elaboração dessa peça — exigida para municípios com população superior a 20 mil habitantes — deve ser participativa, prevendo, entre outros pontos, a cooperação de associações representativas neste processo.
Antecedentes, no Governo Roberto Cláudio
O périplo da tentativa mais recente de atualização do Plano Diretor teve início ainda durante a administração de Roberto Cláudio (PDT), em 2020. Naquela época, com o atraso de um ano e após pressões de entidades ligadas ao tema, as primeiras audiências públicas começaram a ser realizadas pela administração municipal. Os trabalhos foram interrompidos em julho daquele ano, por conta das medidas de isolamento social adotadas por conta da pandemia da Covid-19.
Devido a interrupção, ainda em 2020, a Prefeitura de Fortaleza chegou a tocar as discussões populares de forma virtual. Por ação do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), que defendeu uma participação da população de maneira efetiva dos diversos segmentos sociais, através das audiências públicas presenciais, as atividades foram suspensas, até que pudessem ser retomadas de maneira segura.
Chegada de Sarto
Em maio de 2021, após a chegada de Sarto no Palácio do Bispo, sede do governo municipal de Fortaleza, houve a primeira promessa: a de continuar discutindo o PDPFor a partir do segundo semestre. A previsão foi declarada pelo então líder do prefeito na Câmara Municipal, Gardel Rolim (PDT). Na época, ele alegou que o Executivo aguardava um "arrefecimento da pandemia" para que pudesse avançar nas discussões.
O prognóstico governista de dar seguimento para o debate com a população não se concretizou. Nenhuma ação capaz de produzir um efeito real foi promovida pelo Parlamento municipal até o fim de 2021, porque a parte que cabia à prefeitura não havia sido concluída até ali.
O prefeito, por sua vez, justificou que as atenções foram voltadas ao combate da emergência sanitária e, por mais uma vez, previu outro prazo. Ele alegou que em 2022 o documento poderia ser apreciado pelos vereadores da Capital. A ideia era que o avanço da vacinação permitisse a convocação de reuniões presenciais e, com isso, o assunto pudesse ser retomado junto aos parlamentares no retorno do recesso legislativo.
"Para alegria minha, o plano diretor está sob orientação do meu vice-prefeito Élcio Batista (PSB), que é presidente do Iplanfor (...). Creio que, a partir do próximo ano, com a retomada das atividades legislativas, nós vamos acelerar e tentar recuperar o tempo perdido”, assegurou Sarto naquela época, durante uma entrevista ao Sistema Verdes Mares.
A titular da Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (Seuma) à época, Luciana Lobo, chegou a dizer que a gestão iria iniciar, ainda naquele ano, uma licitação de contratação de uma empresa para auxiliar no processo. “A gente já iniciou os trâmites internos para retomada (da atualização) do Plano Diretor, a Prefeitura de Fortaleza já passou o ofício para as entidades que têm assento no núcleo gestor para confirmar ou renomear os membros, as que vão representar as entidades", completou ela.
Reuniões em 2022
O Núcleo Gestor do Plano Diretor passou a se reunir mensalmente, de forma virtual, no início de 2022, após os membros terem sido empossados em janeiro, por meio de uma videoconferência. Workshops de capacitação voltados aos integrantes do grupo foram iniciados, segundo alegou o então presidente do colegiado, o secretário de Governo do Município, Renato Lima.
A "escuta comunitária", pelas audiências públicas, conforme indicou o auxiliar do prefeito Sarto, começaria no segundo semestre daquele ano. Além disso, rodadas de reuniões comunitárias em 39 territórios passariam a ser convocadas. Ambos os ritos foram seguidos.
Primeiras previsões de entrega
Em busca de acelerar debate em torno da legislação urbanística, em abril de 2023 a Câmara Municipal de Fortaleza inaugurou um curso sobre a elaboração do PDPFor. E, um novo vencimento foi dado pelos representantes do governo para a chegada e apreciação do texto no Plenário Fausto Arruda: ele seria remetido até dezembro.
"A prefeitura tem incentivado muito essa participação da sociedade civil. Hoje, nós estamos na segunda etapa do processo, que é justamente fazer o diagnóstico da Cidade. (...) A gente está prevendo para dezembro (a entrega do projeto à Câmara), mas a quarta etapa é que vai definir esse prazo, porque é onde a gente tem as audiências públicas e a conferência das cidades", disse a chefe da Coordenadoria Especial de Programas Integrados de Fortaleza (Copifor), Manuela Nogueira, no contexto do curso da CMFor.
Até ali, as discussões nos territórios já haviam sido concluídas e as equipes responsáveis pela formatação do Plano Diretor estavam numa segunda etapa, em que realizavam um diagnóstico da cidade. Duas outras fases estavam pendentes, a de recebimento de proposta e formalização delas e a de redação e consequente análise do plano pelos delegados eleitos para a Conferência das Cidades.
Em agosto de 2023, na volta dos trabalhos legislativos o prefeito José Sarto, numa coletiva de imprensa, reforçou a versão dada pela sua equipe de que o Executivo concluiria as etapas preparatórias da peça de planejamento até o fim daquele ano.
"Acho que a gente conclui o grande arcabouço dessa proposta de renovação do Plano Diretor até novembro, para dar tempo de enviar para a Câmara e ela se debruçar, ter seu olhar contributivo e associativo", anunciou Sarto, reduzindo a projeção da Copifor em um mês.
Postergação para 2024
Consultada novamente no fim de 2023, a Coordenadoria do Município postergou o envio do PDPFor para a Câmara Municipal para o ano seguinte. Pelo que explicou a chefe da pasta, o produto final, que antecede a elaboração da minuta do projeto de lei, sofreu um atraso e, consequentemente, não havia mais tempo hábil para que as demais etapas que antecedem o envio da proposição fossem concluídas.
Conforme argumentou Nogueira, o atraso na confecção do documento que reúne todas as informações que subsidiam a lei se deu por conta da densidade do conteúdo. "É um produto que tem muitos mapas e índices, acabou que atrasou um pouco a finalização e, com isso, tivemos que atrasar a finalização do processo", completou.
Inicialmente, disse Manuela, a perspectiva era de que o produto final fosse apresentado no fim de outubro de 2023, mas ele só se tornou apresentável no mês seguinte, em novembro. Entretanto, uma primeira reunião de discussão do conteúdo ainda seria marcada. A expectativa era de que o encontro ocorresse no fim da primeira quinzena de dezembro, no dia 14.
"Depois dessa primeira reunião é que a gente consegue saber se, para a sociedade, ele está maduro para que a partir dele possamos fazer a minuta de lei", esclareceu, citando ainda, como fases seguintes, a realização de uma audiência pública, cuja convocação obedeça o prazo de quinze dias de antecedência, e uma conferência que possa avalizar o texto-base a ser remetido para os vereadores.
Considerando os esforços que serão demandados para o cumprimento dos trabalhos, a chefe da Copifor ponderou que tudo deveria ser encerrado até março de 2024. "Dentro da minha programação, do que é possível da gente entregar, é ainda no primeiro trimestre do ano que vem", disse em entrevista.
Em 2024, eleição foi a justificativa
Passados cinco meses do início de 2024, a deliberação sobre o Plano Diretor, como mostrou uma matéria do Diário do Nordeste, foi atrasada novamente. Naquele estágio do ano, as movimentações políticas que antecederam o processo eleitoral já tomavam conta da Câmara Municipal.
O engajamento dos parlamentares na campanha eleitoral e o atraso na conclusão dos debates do instrumento de planejamento pelo Executivo foram os responsáveis por empurrar a tramitação da pauta, segundo destacaram políticos com mandato na CMFor naquele momento.
O vereador Gabriel Aguiar (PSOL), membro da bancada de oposição e ativo nas discussões do Plano, demonstrou preocupação quanto ao atraso. “Já está atrasado em muitos meses. E já temos indicativos, falas públicas de algumas pessoas, que apontam que talvez nem virá esse ano. Isso nos preocupa e nos frustra também”, iniciou, mencionando o valor do Orçamento municipal investido e as dezenas de encontros realizados para a elaboração do texto.
Essa morosidade também nos preocupa porque aqui na Câmara o Plano está sendo alterado todo dia. Na semana passada foi alterado, na outra também e seguirá sendo alterado ao longo do ano. Isso nos preocupa porque o processo participativo não está sendo aqui, está sendo nessas reuniões. Tivemos encontros nessas últimas semanas, ainda falta apresentar parte significativa do resultado e depois será marcada a audiência pública para tramitar.
Líder do Governo Sarto na Câmara, Iraguassú Filho (PDT) admitiu o atraso. Segundo ele, um “rito” estaria sendo seguido pela Prefeitura de Fortaleza, “dentro da programação”.
Obviamente, o cronograma acabou atrasando um pouco, mas acontece em uma grande ação de diálogo e debate com a comunidade, vários aspectos relevantes precisam ser avaliados para ser finalizado internamente e depois feita a avaliação para uma apresentação da proposta.
O pedetista disse ainda que ele e seus colegas não foram comunicados sobre a previsão de envio da peça para a Casa Legislativa, que só iria participar “mais efetivamente”, conforme comentou, quando a proposta fosse protocolada pelo Executivo municipal.
Mais uma vez procurada para que se manifestasse sobre o assunto, a Copifor, por meio de nota, indicou que “após intensas discussões e reuniões", a equipe responsável pelo Plano Diretor de Fortaleza estava finalizando a nova versão do Produto 6. “Este documento é um passo fundamental na atualização do plano e reflete as contribuições técnicas e legais coletadas até o momento”, acrescentou.
Manuela Nogueira, titular da Coordenadoria, explicou que, naquela altura do processo, estavam sendo revisados pontos construídos e discutidos. O compilado seria submetido ao Núcleo Gestor do Plano Diretor e apresentado durante uma audiência pública. Através dela, a comunidade poderia fornecer novas contribuições. Embora tivesse mencionado uma brevidade, o comunicado não estipulou prazos ou um cronograma a ser seguido.
Postergação para o pós-eleição
Nos meses que antecederam a eleição municipal, governistas passaram a defender que o Plano Diretor ficasse para depois do pleito. Numa participação na live PontoPoder, o presidente da CMFor, Gardel Rolim, defendeu que a votação do Plano Diretor ficasse para 2025.
No entendimento dele, o Parlamento “precisa de muita tranquilidade para tratar do tema”. “Este ano acho que tem algumas coisas que são impróprias”, continuou, falando também de uma dificuldade em escolher o “melhor momento”. Para ele, o acirramento entre os políticos durante a corrida eleitoral poderia “contaminar” o debate.
Aliado de Sarto, o vereador Lúcio Bruno (PDT), que compõe a Comissão Especial do Plano Diretor na Câmara Municipal, também falou que a peça não deve mais ser encaminhada neste ano. “Até pela questão da importância para a cidade, é um projeto que requer um bom tempo de discussão, embora já tenha mais de um ano sendo discutido nos territórios”, discorreu.
“Caso venha, iremos ter que nos debruçar bastante nele. Infelizmente, esse é um ano eleitoral e atrapalha muito, não só pela questão dos vereadores não terem tempo para tratar do Plano, mas a gente sabe que, no ano eleitoral, muitas vezes se desvia a questão que interessa para vir outras questões ideológicas”, ponderou.
Representantes de organizações não governamentais (ONGs), da academia e de movimentos sociais organizados, que participam do processo enquanto membros do chamado Campo Popular, criticaram o atraso. Um deles, o professor Luís Renato Bezerra Pequeno, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), pontuou que o atraso na entrega do planejamento pode trazer prejuízos para a cidade.