A visita do presidente Jair Bolsonaro ao Ceará, que completou uma semana na última sexta (5), marcou o aprofundamento das tensões políticas entre ele e o governador cearense Camilo Santana (PT) e as circunstâncias jogaram o Ceará no olho do furacão da crise sanitária nacional. Desde então, houve troca de farpas, reações de instituições, recrudescimento da pandemia e um cenário que indica uma tempestade perfeita.
Os eventos e personagens posicionam o Estado no centro das discussões sobre a pandemia no País.
De um lado, as disputas políticas recrudesceram, com articulações de cearenses para a abertura de CPI no Senado e acusações de má condução da economia. Por outro, a vacinação segue a passos lentos, os números de infectados pela Covid-19 deram um salto no Ceará e, em resposta, o Governo do Estado novamente adotou medidas rígidas de restrição, postura criticada pela Presidência da República.
Desde o ano passado, durante a corrida pelo início da vacinação, o governador cearense adotou uma postura mais distante dos embates políticos. Esteve em reuniões frequentes com o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, por exemplo. Diante das disputas entre o Governo Federal e o Governo de São Paulo pelo protagonismo na vacinação, Camilo manteve-se defendendo a imunização.
Contudo, a visita do presidente ao Ceará, no último dia 26, evidenciou novamente as diferenças na condução do combate à pandemia entre o Governo Federal e o Governo do Estado.
Antes mesmo da chegada do presidente ao Estado, aliados de Camilo faziam, nos bastidores, a avaliação de que o intuito da comitiva presidencial seria afrontar as medidas de isolamento determinadas pelo governador. Uma saia justa para Camilo, que teria que decidir entre prestigiar ou não a comitiva.
Na véspera da chegada do presidente, Camilo informou que não iria encontrar Bolsonaro e classificou a viagem como um “grande equívoco”.
A visita da discórdia
À época, o Estado tinha retomado a adoção de medidas mais rígidas de distanciamento social, incluindo toque de recolher – atualmente, o lockdown voltou a vigorar na Capital.
"Tenho todo respeito à autoridade, mas não posso compactuar com aquilo que considero um grave equívoco", disse o governador.
Ele justificou a ausência apontando a “real possibilidade de muitas aglomerações”. “Algo frontalmente contrário à gravíssima crise sanitária que vivemos neste momento”, acrescentou.
Para a cientista política Monalisa Soares, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), a tensão entre o Estado e o Governo Federal sempre existiu, mas o aumento se dá pelo contexto de aceleração da pandemia.
“Desde o início há esse tensionamento. Tanto é ideológico quanto tem a ver com a forma de condução da pandemia. Mas isso fica mais agudo porque há um aprofundamento da crise, com a chegada da segunda onda. Então, o presidente traz consigo um comportamento marcado pelo negacionismo”, avalia.
“Diante de um novo pico da pandemia, o presidente incentiva aglomeração ao invés de pedir isolamento, por isso as reações. A mensagem que fica é que ele deixou os estados se virarem e ainda atrapalha quando pode”, acrescenta, por sua vez, a cientista política Paula Vieira, pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem), da UFC.
Bolsonaro no Ceará
Concretizando as previsões de Camilo, a visita de Bolsonaro ao Ceará foi repleta de aglomerações e desrespeito tanto ao uso de máscara quanto ao distanciamento social. O presidente atacou a adoção de medidas restritivas pelos governadores e fez críticas indiretas ao cearense.
“Aos políticos que me criticam, sugiro que façam o que eu faço. Quero dizer a esses políticos do Executivo que o que mais ouvi aqui foi ‘quero trabalhar’. O povo não consegue mais ficar dentro de casa, o povo quer trabalhar”, afirmou.
Reveja o discurso do presidente em Tianguá:
Naquele mesmo dia, à noite, o petista respondeu. Nas redes sociais, ele disse que “aqueles que debocham da ciência e principalmente desrespeitam a dor das milhares de famílias vítimas da Covid receberão o justo julgamento. Continuaremos firmes, combatendo o negacionismo”.
Para Paula Vieira, o cenário político brasileiro atualmente é propício aos embates entre gestores regionais e federais.
"Os governadores se veem em uma situação em que eles precisam fazer frente ao presidente porque precisam conter a pandemia. Sem um planejamento federal, os governadores desenvolvem essa autonomia por necessidade, se veem isolados e a alternativa é se organizar em consórcios, como forma de se fortalecer”, avalia.
CPI da Covid-19
Celebrada por parlamentares cearenses que fizeram parte da comitiva presidencial, a viagem do presidente ao Ceará também se tornou alvo de questionamentos e críticas de deputados, mas foram senadores do Ceará que começaram um movimento de reação concreto contra Bolsonaro.
O primeiro a direcionar artilharia contra o presidente foi Tasso Jereissati (PSDB). Após o episódio, o tucano intensificou as articulações para instalação da CPI da Covid-19 no Senado.
“Bolsonaro veio ao Ceará para tentar desmoralizar as medidas de restrição que acabaram de começar. Isso é criminoso”, disse.
Cid Gomes (PDT) também endossou as críticas. “O irresponsável, despreparado e inconsequente presidente da República se cerca de outros tantos irresponsáveis e promovem aglomerações no Ceará. Ignora a aflição do nosso povo”, atacou ao pedir a instalação da CPI da Covid-19.
O senador Eduardo Girão (Podemos) também defendeu a abertura da CPI, mas com a condição de que ela investigue também irregularidades no combate à pandemia em estados e municípios.
Por outro flanco, cinco procuradores do Ministério Público Federal (MPF) no Ceará encaminharam ao procurador-geral da República, Augusto Aras, pedido para investigar suposta prática de crime pelo presidente contra a saúde pública durante visita ao Estado. No ofício, eles relataram a realização do evento vetado por decreto local e a recusa ao uso de máscara.
Procurado pelo Diário do Nordeste, o Palácio do Planalto não quis comentar o episódio.
“O inimigo é o vírus”
Foi neste ambiente tempestuoso que o cearense Roberto Rocha Araújo tomou posse como novo Superintendente do Ministério da Saúde no Ceará e tentou amenizar os conflitos entre os governos estadual e federal.
“É momento de darmos as mãos, focarmos no inimigo comum que é o vírus. O inimigo não é o governador Camilo, não é o prefeito Sarto, não é o presidente Bolsonaro, não é o ministro nem o secretário. Cada um tem sua competência. Devemos unir os segmentos, inclusive os médicos que atendem na estrutura de plano de saúde. O inimigo não é o gestor público”, ponderou em entrevista ao Diário do Nordeste.
No entanto, qualquer tentativa de suavizar as diferenças entre Bolsonaro e Camilo parece não ter êxito. Dois dias após a visita do presidente, Bolsonaro publicou nas redes sociais uma lista de valores que o Governo Federal supostamente teria passado aos estados no ano passado. A postagem ocorreu em meio a questionamentos sobre o financiamento federal à abertura de leitos de UTI.
Governadores
A reação dos governadores foi instantânea, entre eles, Camilo Santana. Em carta assinada com outros 18 governadores, o petista fez novas críticas.
“Em meio a uma pandemia de proporção talvez inédita na história, agravada por uma contundente crise econômica e social, o Governo Federal parece priorizar a criação de confrontos, a construção de imagens maniqueístas e o enfraquecimento da cooperação federativa essencial aos interesses da população”, escreveram.
Lockdown
Paralelamente, com o aumento de casos de Covid-19 no Estado e em um cenário em que a taxa de ocupação de leitos de UTI supera 90%, Camilo Santana decretou, na última quarta-feira (3), lockdown na Capital e recomendou a mesma medida para outros municípios em situação de grave avanço da pandemia.
A medida é constantemente criticada pelo presidente. "No que depender de mim, nunca teríamos lockdown. Nunca. É uma política que não deu certo em lugar nenhum do mundo. (Nos) Estados Unidos vários estados anunciaram que não tem mais. Mas não quero polemizar esse assunto aí", declarou Bolsonaro, também na quarta-feira.