Depois de tudo que vivemos, o que é ser brasileiro?

Se um extraterrestre desavisado me perguntasse o que é ser brasileiro, eu responderia com música. Só as canções poderiam dar conta da complexidade de uma resposta justa.

Nossa identidade como nação é tão bela quanto trágica. Nascer e viver no Brasil é estar sempre fadado a não entender, a deixar escapar a lógica das coisas. É espantar-se no percurso de um estado ao outro, perder-se sempre e se achar de novo. Mas quando toca o melhor da nossa música, tudo fica claro.

Pensei nisso semana passada durante o show da Gal Costa em homenagem a Milton Nascimento. Aos setenta e seis anos ela cantou grandes sucessos de sua carreira e um coro, feliz e emocionado, cantou junto.

Tudo que ela interpreta com sua voz desde tão jovem, nos shows e nos discos, conta as histórias das nossas vidas. Minha filha mais nova nasceu ao som de “Baby”, por exemplo, o que me faz chorar de alegria sempre que escuto.

Imagino que outras músicas sejam tema de amor de tantos casais, amigos, famílias. Um artista faz isso por nós: embeleza o caminho, alegra a vida. Foi um show cheio de alegria e carinhos, por todos os lados.

Ainda estamos em pandemia, sob a sombra e o risco de uma nova variante, mas foi um alívio ouvir tantas vozes soltando o que estava preso por quase dois anos. Todos vacinados e de máscaras em um festival com nome sugestivo, Elos, celebramos a felicidade de estarmos vivos.

A última música do show foi “Brasil”, uma canção que declara a revolta diante de problemas políticos de outra década, outro contexto, mas o sentimento permanece.

Nós, brasileiros, estamos sempre às voltas com questões graves que massacram a maioria mais vulnerável. Nos anos noventa ou nos dias de hoje, parece inacreditável que a sombra permaneça pairando sempre, ameaçando o potencial de país que poderíamos ser.

Cantamos “Brasil” com uma força de catarse no encerramento do show. Perto do fim do ano nosso desejo é olhar para o que vem, o futuro próximo, as coisas que estão ao alcance das mãos. O que podemos fazer, dentro das nossas condições, para buscar solução e alívio? Ouvindo a Gal cantar eu pensava nisso. Mas pensava, também, no quanto ainda precisamos entender o que é ser brasileiro.

Pois se alguém me pedisse para explicar, certamente eu não conseguiria sem a ajuda da nossa música popular. Começaria por Gal Costa, Caetano Veloso, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, que sempre estiveram atentos à tentativa de nos traduzir. Os homens e mulheres do povo, o cotidiano dos trabalhadores, os processos históricos, o uso da língua portuguesa para amar e odiar, essa é a matéria prima da nossa MPB.

A recente eleição de Gilberto Gil para a Academia Brasileira de Letras confirma a ideia de que ele é um dos grandes escritores do nosso país. Um mestre, consciente do passado, da origem africana na religião, nos hábitos e costumes, na mistura de raças que resulta em características que nos define, únicos no mundo. Precisamos voltar a ter orgulho do Brasil. Sobretudo voltar a louvar os artistas brasileiros, hoje mais ainda.

Ano que vem Gil e Caetano vão completar oitenta anos de vida. Depois de tudo o que vivemos, virá aí um ano que pode trazer o fim da pandemia, o fim de uma temporada de trevas, uma nova esperança.

Eu diria ao extraterrestre curioso que o Brasil é um lugar, um estado de espírito, é um tempo, é um amor que nunca sai do peito.

Eu tocaria “Aquele abraço”, pra começar, depois “Indio”, seguido por “Baioque” e talvez ele nunca mais quisesse sair daqui, nunca mais parar de ouvir como somos um país abençoado por todos os deuses.


*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.