“O que é a vida?” – esta era a questão que o apresentador Antônio Abujamra, por vezes, perguntava aos seus entrevistados. Como se trata de um questionamento filosófico, não há gabarito correto para esta pergunta, e, assim, cada resposta era inteiramente única. Não raramente, alguns entrevistados forneciam respostas bem formatadas, estruturadas, citando teóricos, como se já tivessem pensado sobre o assunto.
Diante destas respostas pré-fabricadas, o genial Abujamra sustentava o olhar em seu entrevistado e repetia “o que é a vida?”, como se dissesse “não me venha com frases prontas, não reproduza teorias, não repita filosofias, quero saber o que é a vida para você, neste instante”. Diante da repetição da pergunta, novas respostas, menos elaboradas e curiosamente mais verdadeiras surgiam. Quando julgava necessário, Abujamra insistia na pergunta “o que é a vida?” repetidas vezes, até que o entrevistado desse uma resposta mais autêntica.
O convidado Marcelo Tas chegou a dizer que a vida “é o que acontece entre uma respiração e outra.”; Pedro Cardoso disse que “é alguma coisa que passa”; Flávio Tavares disse que “a vida é o caminho para a morte.”. Mas, talvez, a resposta mais honesta seja a do brilhante Jô Soares: “sei lá, não faço a mínima ideia.”.
A maioria de nós, como Jô Soares, teria uma extrema dificuldade de conceituar a vida. E, se falhamos na tentativa de definição de vida, como seria possível estabelecermos quando exatamente ela começa? Para alguns, a vida humana se inicia a partir do nascimento. Para outros, a partir do momento que o embrião começa a ter batimentos cardíacos. Ainda há aqueles que acreditam que a vida humana começa na concepção, ou seja, quando o óvulo é fertilizado.
Pensar sobre o que é a vida e quando ela se inicia é algo de extrema complexidade. Inúmeras teorias, correntes filosóficas e espirituais se debruçam sobre estas questões e fornecem possíveis respostas aos seus adeptos. Por exemplo, para a Igreja Católica e seus fies, assim como para muitas vertentes evangélicas, a vida começa na concepção, quando o óvulo é fertilizado, ou seja, antes mesmo do embrião ser formado. Assim, para eles, provocar um aborto, ainda que em estado inicial de gestação, seria o equivalente a retirar uma vida. Já a perda gestacional, por meio de um aborto espontâneo, significaria a perda de uma vida, a perda da vida do filho que gestava. De tal modo, o luto gestacional para as mulheres que possuem essa crença pode ser extremamente doloroso.
Em suas crenças, elas não perderam um feto, mas um filho e isto, obviamente, merece ser respeitado. Assim, comentários como “não fique triste, já já você engravida novamente” devem ser absolutamente evitados, vidas não podem ser substituídas.
Por outro lado, Annie Ernaux, laureada pelo prêmio Nobel de Literatura, descreveu em seu livro O Acontecimento detalhes de sua trajetória para realizar um aborto, relatando, literalmente, desde a busca por um profissional que lhe auxiliasse até à descarga dada após expelir o feto. Sua maneira de narrar o ocorrido pode chocar a maioria de nós, leitores, entretanto, Annie Ernaux não professava a crença de que a vida humana se inicia desde a concepção, para ela se tratava de um feto e não de uma centelha divina.
Diferentes crenças levam a diferentes modos de ser e estar no mundo.
Crenças pessoais são norteadoras de nossas ações e, de modo geral, nossos atos e nossos afetos estão em consonância com nossas crenças. Assim, a maneira de lidar com um luto gestacional, assim como o modo de uma pessoa se posicionar no debate público sobre a questão do aborto (uma pauta de saúde pública), é atravessada por crenças pessoais.
Isto me remete a um fato que chocou a web neste sábado: a influenciadora Maíra Cardi sofreu um aborto espontâneo e seu esposo, o coach financeiro Thiago Nigro, compartilhou, em suas redes sociais, com os seus mais de nove milhões de seguidores, um vídeo com uma música sensível ao fundo, no qual mostrava o feto de 8 semanas abortado pela esposa. Os detalhes são aterradores – o feto ainda envolto a membranas, sangue, mãos tocando (meio que cutucando) o feto e a legenda "Nesta noite, a Maíra expeliu. Tantas coisas passando na cabeça… Ele já tinha bracinho, dedinho".
O vídeo chocou milhões de pessoas, personalidades públicas vieram à tona, Thiago foi acusado de ser um caçador de likes, de publicizar o aborto para ganhar engajamento nas redes e o debate sobre os limites éticos nas redes sociais e do compartilhamento foi reaceso.
Entretanto, o que mais me chamou atenção foi a dissonância entre esta ação de Thiago e a crença que ele professa, com frequência, em suas redes. Thiago se diz cristão, relata estar triste pela perda do filho (ou seja, para ele, teoricamente, não era somente um feto, mas seu filho). Entretanto, há um evidente abismo entre o que ele relata acreditar e sua ação. Se o filho de Thiago já tivesse nascido, será que ele se autorizaria a postar uma foto do filho morto? Ele acharia coerente filmar suas mãos “cutucando” o cadáver do filho? Ele compartilharia isto em suas redes sociais? É preciso assumir que a ação cometida e a crença professada estão completamente desalinhadas.
Em tempos como os nossos, professar certas crenças se tornou uma sinalização de virtudes, uma bandeira política, um modo de ser mais bem aceito.
Assim, de modo irrefletido, quase em um movimento de manada, muitas pessoas professam discursos e crenças sem sequer refletirem se realmente acreditam naquilo que reproduzem. Entretanto, não raro, suas ações denunciam como estão longe de agirem em consonância com o que dizem acreditar.
Ao pensar sobre tudo isto, imagino Abujamra perguntando: “Thiago, quando começa a vida?”, imagino Thiago respondendo que ele é cristão, que a vida começa na concepção, imagino até ele falando da dor de perder um filho. Então, imagino Abujamra sustentando o olhar em Thiago e repetindo: “Thiago, quando começa a vida?”.
*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora