A arte e o vandalismo instagramável

A definição de arte está longe de ser unânime e há séculos sofre transfigurações. A arte já foi, sobretudo, representativa. Também já foi reduzida à sua funcionalidade e, desde 1917, as fronteiras sobre o que seria arte se expandiram enormemente. Foi em 1917 que o artista francês Marcel Duchamp (1887-1968) comprou um urinol, o colocou em uma galeria de arte e o assinou, colocando-o lado a lado com outras obras de arte. Este ato, incompreensível para muitos, carrega um simbolismo intergeracional e marca a chamada arte moderna.

Duchamp não era bobo, vivia um tempo em que arte estava sendo produzida em série, no qual o mercado ditava o valor das obras, reduzindo-as a um negócio qualquer. Duchamp utilizou-se de tal urinol, posto na galeria de arte, para nos dizer que não deveria ser o mercado a ditar o que seria arte, não caberia ao sistema ou mesmo ao objeto em si ter a tarefa de definir arte, mas sim ao artista – este é quem está apto a dizer o que seria arte.Duchamp trouxe o artista para o centro da discussão.

Outros, como Walter Benjamin (1892-1940), foram incansáveis em suas críticas à arte na Era da reprodutibilidade técnica. Nos tempos atuais, entretanto, testemunhamos um novo cânone surgir: a arte na Era Instagramável – a arte pensada, da sua produção à exposição, nos feeds de redes sociais virtuais.

(In)felizmente, em mais de uma ocasião, caí de paraquedas em uma exposição instagramável. Os curadores não anunciam que ali se trata de uma exposição instagramável – mas, é inegável, são. Neste tipo de exposição, a obra e o artista ficam em segundo plano. Tudo é fotografável, os espaços são montados pensando no enquadramento para a foto. A interação é a regra – você certamente poderá posar junto a essas obras.

Aqui ainda não debaterei em termos valorativos esse tipo de arte, trago-a somente para nos contextualizar acerca de diversos tipos de arte. São inúmeras! 

É preciso, ainda, lembrarmos dos mais diversos objetos que não são usualmente categorizados como arte, mas, sim, merecem esta alcunha. Em meu casamento, meu vestido era feito de renda nordestina, sob medida para meu corpo – não consigo contabilizar quantas vezes disse “estou vestindo arte”.

Claro, se o vestido não coubesse, se tivesse que ser adequado em plena festa, remendado, causando constrangimentos e aflição de ele cair em pleno dançar, certamente não pensaria no trabalho intelectual da designer do vestido ou nas rendas nordestinas – a falta de sua funcionalidade, para mim, anularia sua arte, seria apenas um vestido mal elaborado.

E se eu tive oportunidade de vestir arte um dia, há aqueles que possuem a sorte de morarem em arte. Isso acontece quando arquitetos e designers transformam seu trabalho intelectual em projetos que modificam a realidade – formas abstratas e traços se tornam ambientes concretos, feitos para aquele cliente, sob medida.

Entretanto, similar ao caso do vestido, se por falhas de coordenação, execução ou qualquer outro tipo de negligência, o projeto não for exequível, tiver que ser repetidamente modificado, trouxer prejuízos incalculáveis, certamente a arte potencial se desmancha. De nada serviria esse trabalho intelectual para o cliente. Seria apenas um projeto mal feito…

Este preâmbulo, de Duchamp a projetos arquitetônicos falidos, possui uma função: nos lembrar da multiplicidade da definição de arte, de suas diferentes funções – haverá arte pela arte; haverá arte representativa, que imitam milimetricamente a realidade; haverá artes cuja função é ser compartilhada com o público em redes sociais; haverá artes que assim serão chamadas ao cumprirem o propósito inicial do consumidor, seja um vestido de casamento ou um projeto de arquitetura.

Entretanto, todas elas possuem denominadores em comum: essas possíveis artes provocam afetos (do êxtase ao asco), todas elas foram produzidas em determinado tempo histórico e, de certo modo, dialogam com ele.

Algumas artes se tornam raras, perduram ao passar dos anos e são testemunhas únicas de um tempo histórico. Algumas se tornaram memória coletiva de uma nação e foram exatamente estas que vimos serem destruídas nos ataques do último dia 8. “As Mulatas”, de Di Cavalcanti, é avaliada em R$8 milhões de reais – mas não sei se a história que carrega, os presidenciáveis que com ela estiveram, possa ser contabilizada.

“A Flautista”, de Bruno Grigori, é avaliada em R$250 mil reais, mas não sei quanto custa à família do artista ver a peça em pedaços. A destruição do relógio, presente da corte francesa, denuncia que nosso presente é frágil, nossa inaptidão de preservar a memória de nossa noção. A lista de itens destruídos e roubados é longa e todos eles, independentemente se remetiam a artes representativas, modernas, funcionais, entre outras, apontavam para a memória coletiva do nosso povo.

Recordo-me agora do experimento literário de George Orwell (1903-1950), em seu cânone "1984". O autor nos apresenta diversos mecanismos que sustentam o regime totalitário ficcional, e um desses mecanismos é o “Ministério da Verdade”. Ironicamente, esse ministério trabalha com mentiras e reformulação de dados, especialmente do passado. Esse ministério reescrevia a história: os fatos e documentos antigos poderiam ser facilmente apagados.

Na distopia Orwelliana, até edições antigas de jornais eram reformuladas, o passado era constantemente reescrito e sistematicamente apagado. O absurdo literário está mais próximo do que nos damos conta. Muitos devem lembrar dos inúmeros escândalos na pandemia sobre a reformulação dos dados referentes ao número de óbitos do período. Ficamos impotentes.

De modo surpreendente, agora, não é o regime totalitário de Orwell por meio do Ministério da Verdade, mas cidadãos, que por meio de atos grotescos e dignos de uma distopia orwelliana, destruíram obras de arte e o passado que carregavam consigo. As artes eram diversas. Algumas, deveriam ser arte pela arte; outras, eram representativas. A arquitetura artística de Niemeyer chorou pelo vandalismo instagramável.

*Este texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora