Sancionada em 2023, a Lei de Igualdade Salarial foi criada para corrigir, combater e eliminar as disparidades salariais baseadas em gênero e proporcionar maior segurança para as mulheres, fazendo valer o que já é previsto na Constituição e na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) com relação à igualdade de remuneração entre mulheres e homens que desempenham funções equivalentes.
Além da transparência, a legislação determina que empresas com mais de 100 empregados devem criar ferramentas de garantia da igualdade, fiscalização contra discriminação, canais de denúncia, programas de diversidade e inclusão, assim como programas de capacitação de mulheres.
A regulamentação da lei, entretanto, tem levado muitas empresas do País a questionarem na Justiça Federal certas exigências, como a divulgação de maneira ampla um relatório com informações sobre a transparência salarial e os critérios utilizados para remunerar seus funcionários.
As empresas que procuram a Justiça questionam a exigência, por parte do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) de que elas publiquem de maneira ampla, até o dia 31 de março, um relatório com informações sobre a transparência salarial e os critérios utilizados para remunerar seus funcionários.
Em caso de descumprimento, a legislação prevê multa administrativa cujo valor corresponderá a até 3% da folha de salários do empregador, até o limite de 100 salários mínimos, atualmente correspondente a R$ 141.200.
Segundo essas companhias, as determinações do MTE podem implicar, entre outros pontos, em violações à Lei Geral de proteção de Dados (LGPD) ao expor dados pessoais. Há, por exemplo, funções executadas por um único empregado. A publicidade de informações salariais poderia, então, ser prejudicial ao colaborador. No caso de infração da LGPD, a multa pode chegar a R$ 50 milhões.
Pelo menos duas companhias que judicializaram a questão conseguiram liminares favoráveis, as drogarias São Paulo e Pacheco. Ambas estão desobrigadas a fornecer os dados para relatório de transparência salarial e, consequentemente, de publicarem essas informações como em seus sites e redes sociais.
Confederações nacionais recorrem ao STF
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional de Bens, Serviços e Turismo (CNC) foram além e apresentaram ao Supremo Tribunal Federal (STF), na quarta-feira (13), uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) com pedido liminar, questionando a exigência.
As entidades afirmam que não são contra o objetivo de "implementação da equidade e isonomia salariais, mas apenas buscam conferir interpretação adequada à lei". CNI e CNC alegam que a divulgação de relatórios com os valores absolutos de salários, ou mesmo de médias salariais, exponham dados pessoais ou informações sigilosas das empresas.
Nesta segunda-feira (18), o relator da ADI, ministro Alexandre de Moraes, determinou a solicitação de informações "a serem prestadas pelo Presidente da República e pelo Congresso Nacional" em 10 dias. Após esse prazo, os esclarecimentos devem ser encaminhados ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República para se manifestarem, sucessivamente, no prazo de 5 dias.
Na prática, contudo, as empresas ficarão obrigadas a cumprir o prazo estipulado pelo MTE, já que Moraes não concedeu a liminar pretendida pelas entidades na ADI.
Risco à reputação das empresas
"Em linhas gerais, as empresas não questionam a lei de igualdade salarial em si, mas apenas a forma como foi regulamentada no decreto e na portaria, pois criam a obrigação de divulgar o relatório de transparência ao grande público (e isso não está previsto na lei), o que pode gerar risco reputacional irreversível", explica o advogado Eduardo Pragmácio Filho, doutor em Direito do Trabalho pela PUC/SP.
A insurgência está no fato de as empresas não terem a chance de questionarem a metodologia e os dados do relatório, que é feito pelo Ministério do Trabalho, antes da sua publicação, o que fere o direito de defesa ampla e contraditório"
Além disso, as empresas também criticam "o gatilho automático para a criação do plano de ação de mitigação das desigualdades salariais, o que pode ser muito oneroso, sem que haja a oportunidade de um questionamento prévio ou mesmo de explicações fundamentadas".
"Acredito que há espaço para aperfeiçoamento da regulamentação, para atingir o necessário objetivo da lei, sem se descuidar de violar garantias constitucionais das empresas" acrescentou o advogado.
Com relação ao não deferimento da liminar pedida pela Ação Direta de Inconstitucionalidade da CNI e CNC, Pragmácio Filho explicou que "só resta às empresas o questionamento individual, perante a justiça federal, até 30/03, a respeito da regulamentação da lei. Sem essa insurgência, já estarão sujeitas à multa e obrigadas a fazer o plano de ação de mitigação, sem olvidar o dano reputacional a que estão sujeitas", conclui.
Vazamento de informações
Outro ponto de insatisfação das empresas é o risco de dano jurídico que ganhou ainda mais corpo com um suposto vazamento de dados dos relatórios no site do MTE na última semana.
O ministério não confirma oficialmente o vazamento, mas emitiu nota oficial informando que "somente o relatório, que será divulgado a partir do dia 21 de março, deve ser considerado como oficial. Informações disseminadas antes desta data devem ser ignoradas".
A área técnica do MTE ainda está trabalhando para consolidar os dados que serão disponibilizados no portal Emprega Brasil na próxima quinta (21)"
A suspeita fez com que, mais uma vez, a CNI e a CNC acionassem o STF, desta vez com um pedido de liminar para "salvaguardar as garantias fundamentais das empresas e seus empregados, ameaçadas pela publicação, em data próxima, 21/03/24, dos Relatórios de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios previstos na legislação impugnada por esta ADI".
Análise do Cade
No fim de fevereiro, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), órgão subordinado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), baixou uma nota técnica em que analisa o decreto e a portaria que regulamentaram a legislação e instituiu as medidas que agora estão sendo judicializadas pelos empresários.
A pasta concluiu que "a obrigação de publicação de relatórios com dados sobre remuneração dos trabalhadores pelas empresas pode configurar a publicação de dados concorrencialmente sensíveis e, dessa forma, contribuir para a adoção de condutas concertadas anticompetitivas, como a adoção de conduta comercial uniforme ou concertada entre concorrentes, ou mesmo, formação de cartéis".
Foi recomendado na nota a suspensão ou o cancelamento de instruções contidas em trechos da regulamentação. O Conselho sugeriu ainda que fosse reavaliada a necessidade de publicação dos relatórios das empresas nos próprios sites com informações que possam sinalizar aos demais agentes do mercado a política de remuneração da empresa para seus empregados individualmente ou para determinado cargo ou função.
Por fim, foi proposto pelo Cade ao Ministério do Trabalho e Emprego que, caso haja publicação de dados ou relatórios, que sejam também tomadas medidas de cautela para evitar a divulgação de informações que possam facilitar condutas colusivas entre agentes de um determinado mercado. Isso, segundo a análise, poderia gerar efeitos nocivos ao ambiente concorrencial e no mercado de trabalho.
Mal-entendido
Apesar das manifestações questionando a regulamentação, o chefe de fiscalização do Trabalho no Ceará da Superintendência do MTE, Luís Freitas, afirmar que está havendo um "mal-entendido" com relação aos relatórios. "As empresas estão achando que vai sair assim, cargo tal, salário tal (vai discriminado ipsis literis, em outras palavras). Claro que não vai sair nome nem CPF de ninguém, mas vai sair média do cargo tal na empresa, média do cargo tal para mulheres. Média e mediana", diz.
Segundo Freitas, as informações serão disponibilizadas por função, "mas não por função detalhada". Ele dá um exemplo: "Vai sair um cargo geral. Olha, na parte de auxiliar, na parte de assessor, a média é tanta. Aí vai ter a média do homem e a média da mulher para mostrar, efetivamente, quem está ganhando mais ou menos", explica.
"Não pode ter diferença, se for o mesmo cargo, mas se tiver plano de cargos e carreiras., pode ter diferença. Quem não tem, não pode. Tudo isso vai ser verificado", resume.
Com a colaboração dos repórteres Bruno Leite e Luciano Rodrigues.