Na semana passada, escrevi o centésimo artigo para minha coluna nesse jornal, o Diário do Nordeste. Me pus, então, a refletir sobre o próprio ato da escrita. Afinal, por que escrevemos? Por que os seres humanos inventaram e se dedicaram a escrita? O que buscamos, o que almejamos no gesto de escrever? Muitos pensadores importantes já se fizeram essas perguntas e há, entre a maioria deles, uma certa unanimidade: a escrita nasce da busca humana por tornar seus pensamentos e ações imorredouras.
Como a maioria daquilo que os humanos criaram, a escrita teria uma relação privilegiada com a morte, com o fato de que nós humanos morremos e sabemos disso. Essa condição trágica humana, de ser o único ser vivo, portanto mortal, que sabe que irá perecer, seria a motivação para que os humanos tenham desenvolvido várias formas de registro, de relato e testemunho de sua existência, da sua passagem pela vida.
Como afirmava o filósofo e escritor francês, Maurice Blanchot, escrevemos, pois, para não morrer. Há a acompanhar o gesto da escrita a busca e a ilusão de perenidade, de eternidade. Cada vez que escrevemos um texto, que publicamos um livro, que elaboramos uma memória, que registramos, por escrito, algo que fizemos, algo que nos aconteceu, algo que sentimos, julgamos que estamos os salvando da corrosão do tempo. A escrita, do mesmo modo, que se passa no tempo, que discorre em uma dada duração, que se materializa num dado instante, busca capturá-lo e fazê-lo eterno, busca retirá-lo do rio do devir, busca detê-lo, cristalizá-lo, torná-lo permanente.
Sempre que escrevemos sobre algo ou alguém pensamos tê-los retirado do fluxo do tempo para espacializá-los, dar a eles a presença e permanência da página do papel. Para Blanchot, o ato de escrever, em si mesmo, adiaria a morte. Para ele era normal que as pessoas no final de suas vidas se dedicassem a escrever as suas memórias. Nesse gesto, ele via um duplo esforço e uma dupla valência: a busca por colocar a vida por escrito, de fazê-la materializar-se na escrita, ao mesmo tempo, a colocaria à salvo da morte e prolongaria e justificaria a própria vida de quem escrevia.
A escrita seria, nesse caso, uma atividade que serviria para preencher e dar sentido a uma vida já em seu término, uma vida já esvaziada de sentido e de metas. A escrita pode ser, em um dado momento de nossas existências, a única atividade que justifica o continuar vivendo, que atribui a um viver esvaziado o sentido que lhe falta.
Não há vida sem causa, sem objetivo, sem meta, ela começa a se acabar à medida que se torna tediosa e um mero passar dos dias, sem que nada exista para preenchê-los, sem que deles nada resulte. A escrita salva vidas, impede a morte à medida que infunde sentido e objetivo a viveres já carentes de justificativa. A escrita impediria que a morte se instalasse em meio a própria vida, a pior das mortes, aquela que flagra o ser humano ainda em pleno viver. Os quadros de depressão e melancolia que, muitas vezes, instalam a morte no próprio viver, podem ser combatidos com o gesto da escrita. Se muitos desses quadros resultam em suicídio, quando a pessoa deliberadamente vai à procura de se entregar aos braços da morte, é porque não se descobriu a escrita como uma forma de alívio da dor de existir como morto-vivo.
A escrita foi, desde os primórdios, uma forma de lidar com uma das faces da morte, que habita o nosso dia a dia: o esquecimento. Esquecer tem parentesco com o morrer, por isso quando queremos ferir alguém lhe dizemos que ele ou ela morreu para nós, o que, na verdade, significa que já o ou a esquecemos. A escrita é uma poderosa tecnologia na luta contra o esquecimento, sendo uma forma de registro, ela impede que algo seja olvidado, que alguém deixe de existir por ausência de relato. Em nossa vida cotidiana lançamos mão, muitas vezes, desse atributo da escrita. Em nossas agendas, blocos de anotações, redigimos lembretes, registramos os compromissos e encontros dos quais não podemos esquecer.
O filósofo alemão Walter Benjamin defendia a ideia de que nas sociedades da escrita as memórias sofreram um processo de fragilização. À medida que responsabilizamos os artefatos escritos por guardarem nossas memórias, teríamos as tornado mais frágeis e vulneráveis ao esquecimento. Nas sociedades em que prevaleciam a comunicação e o registro oral, a memória era uma faculdade muito exigida e privilegiada, pois a ela cabia o registro e a guarda do que se dizia, do que se pensava, do que ocorria. Mas a voz, a oralidade, se caracterizam pela fugacidade, pelo nomadismo, não estando capacitadas para ser antídotos convincentes contra a morte, contra o esquecimento, contra o desaparecimento das coisas e dos seres.
Escrevemos para não esquecer, porque esquecer e, principalmente, ser esquecido é o equivalente ao morrer. Escrevemos para preencher e justificar a vida, dar sentido e significado ao existir. Escrevemos para materializar a nossa presença no mundo. Quando escrevemos estamos tomados pelo desejo de que aquele escrito faça a nossa presença no mundo, na vida se materializar, se eternizar e se justificar. O prazer de escrever, de ver um escrito concluído tem semelhança com o prazer de colocar alguém no mundo, de ter um filho.
Os homens adoram escrever porque é a única forma de sentirem o prazer do parto. Se durante séculos os homens interditaram às mulheres o direito de escrever é porque, de forma invejosa, somente através dela podiam realizar aquilo que é um atributo feminino impossível para eles: o ato de partejar, de dar à luz a um descendente, de pôr um filho no mundo.
Os homens masculinizaram as próprias línguas, as tornaram viris, para fazer delas a matriz, o útero de suas criações literárias. Invejosos da capacidade de criação natural das mulheres, tentaram monopolizar a capacidade artificial de criação representada pelo domínio da linguagem. Os homens tentaram interditar até a fala das mulheres, criando, inclusive, a figura repressiva da faladeira, da tagarela, da fofoqueira, para que não pudessem se inscrever no mundo, para que não pudessem ter existência. Interditar o aprendizado da escrita as mulheres era uma forma de evitar que se escrevessem e se inscrevessem no mundo, deixassem registro de suas existências, deixassem testemunho de suas maneiras próprias de ver o mundo.
Mas, a filósofa e escritora feminista franco-argelina Hélène Cixous nos fala de uma outra justificativa para o ato de escrevermos. Escrevemos para nos dar realidades que ainda não podemos viver. É na escrita que nossa imaginação opera para que tenhamos ao nosso alcance mundos ainda inexistentes. A alegria e a sedução da escrita advêm, muitas vezes, do fato de que através dela podemos vivenciar e materializar nossos sonhos, nossos desejos, nossas utopias, nossas esperanças, nossas fantasias e ilusões.
A escrita permite que transformemos nossos fantasmas em aparições. Com a escrita produzimos a presença daquilo que existe apenas como ausência, falta ou inexistência. A escrita, muitas vezes, se torna terapêutica porque ela reduz a frustração de não vivermos no mundo, na sociedade, na realidade, num tempo e espaço que desejamos. Para Cixous, a literatura foi um espaço encontrado pelas mulheres para conseguirem pensar e escrever um mundo não dominado pelo masculino, pelos homens. Assim como, durante muito tempo, a escrita foi o único lugar de inscrição e vivência não clandestina dos amores e desejos homossexuais.
A escrita nos salva, muitas vezes, porque nos traz o alento de uma realidade outra, distinta e distante da que temos de viver em nossa vida comezinha. Quantas vidas foram salvas porque puderam dizer, pensar e desejar, através da escrita, aquilo que o mundo concreto e real, que a ordem social circundante, interditava, castigava e punia.
A escrita seria essa janela de sonhos, essa abertura para possíveis, essa brecha para que virtualidades e devires venham se alojar. A escrita, muitas vezes, em vários tempos e espaços, foi o lugar e o artefato da transgressão, inclusive das enfadonhas regras da gramática e dos discursos. A escrita sempre pode ser tomada como uma arma de luta, de combate. A escrita é política porque serve, sobretudo, não só para simular mundos possíveis, mas para transformar o mundo em que vivemos. Eu não teria escrito cem vezes para esse jornal se não acreditasse no poder de intervenção e transformação da escrita. Escrever é atuar, intervir e se posicionar perante as versões da realidade circulantes, as verdades que tentam se tornar inquestionáveis e incontestes, é fazer um gesto de intervenção na vida social para problematizá-la e questioná-la.
Escrever é se colocar em público, com os riscos que isso implica, é se expor, inclusive à morte. Quantos morreram por causa do que escreveram, ao longo da história. Escrever é sair de si, é se projetar para o fora do mundo, é se atirar no jorro da vida, é se abrir para o diálogo com o outro, é participar do burburinho e do rumor de tudo que é dito. Escrever é, pois, se afirmar vivo, é afirmar a vida, à medida que põe a linguagem e a língua em movimento e o mover-se é o que define o estar vivo.
Escreve-se para não morrer, mas se acaba morrendo por escrever, porque no gesto da escrita também nos desgastamos, nos depauperamos, comprometemos a nossa própria a saúde. Escrever nos permite ver as coisas de outra maneira, inclusive, pelo desgaste da visão, do olho, que ela implica. Mas, escrevemos, sobretudo, para justificar a nossa existência, para fazê-la ter sentido, para dizermos, ao final da jornada (do jornal), afinal estivemos aqui!
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.