Cirurgião voluntário devolve o sorriso a milhares de crianças e trabalha para abrir hospital no CE

Doutor Ferreira cedo descobriu que amor é cuidado e tem se empenhado a mudar a vida de pessoas com Fissura Labiopalatina

O sorriso vem sempre de longe, escreveu José Saramago. Doutor Ferreira cedo aprendeu isso. Não se trata apenas de mostrar os dentes, ampliar a musculatura da face. Tem mais a ver com sentir que o coração pode ficar feliz. Se o resultado for, de fato, alegria estampada da forma como conhecemos – lábios esticados e tudo – aí o mundo se agiganta, a beleza renasce.

É o que explica a vocação do cirurgião cearense para transformar a vida de milhares de crianças e famílias que diariamente chegam ao consultório em busca de motivo para viver melhor. Não são experiências fáceis, ele sabe bem. Mas gosta do desafio de prover amor em terra árida. Doutor Ferreira trata de pessoas acometidas por Fissura Labiopalatina.

Antigamente chamada de Lábio Leporino, é uma malformação ocorrida durante a gestação. No início da formação do feto, a face pode se fechar e formar fissuras. Não existe causa específica, apenas ocorre. É multifatorial. Pode acontecer devido à genética, ao consumo de álcool e drogas e até por medicação tomada pela mãe sem saber que estava grávida.

Uma entre 650 crianças nasce assim e precisa enfrentar questões sérias. Embora sem risco de morte, a Fissura Labiopalatina afeta muitos aspectos da vida. Quando não reabilitadas, pessoas enfrentam problemas de fala, arcada dentária deformada e, por consequência, dificuldade de socialização. “Ficam muito tímidas, introspectivas, com vergonha de aparecer”.

A solução, claro, é tratar. Mas Doutor Ferreira vai além: derrama-se por inteiro ao ofício. Especialista em Cirurgia Bucomaxilofacial, presencia histórias de amor aos montes. Mães, pais e filhos são os grandes protagonistas delas, verdadeiros milagres. E o odontologista recorda cada relato com vontade de que se multipliquem. São lindos.

Houve a mãe que, diante de uma fila de espera enorme para cirurgia, bateu o pé para que a filha conseguisse logo o procedimento. Não arredou presença até saber que havia possibilidade. Por surpresa, a chance surgiu logo, devolvendo sossego ao coração. “Vi o brilho nos olhos diante dessa luta. Hoje a criança é uma adolescente em recuperação”.

Outra mãe ligou emocionada para o médico porque a filha foi comprar um sorvete e voltou chorando. Era choro de júbilo: após passar por cirurgia, pela primeira vez a pessoa da loja entendeu o que ela havia falado. São coisas aparentemente miúdas capazes de mudar a importância das horas. De prover novos passos ou reforçar os que já foram dados.

Doutor Ferreira quer seguir testemunhando esses carinhos. Está envolvido em algo grande. Faz parte do time que está erguendo um hospital para atender a pacientes com Fissura Labiopalatina. Apesar de o Hospital Albert Sabin, em Fortaleza, cobrir todas as especialidades infantis, por vezes pessoas com Fissura não possuem prioridade frente a pacientes com maior gravidade.

“Esse hospital nasce, então, com a tentativa de atender a toda a população desassistida, que infelizmente o SUS não consegue reabilitar. O processo é longo. Para se ter uma ideia, desde quando a criança nasce até o final do crescimento facial – ou seja, até os 18 anos, quando os ossos da face se consolidam – ela precisa estar em tratamento”.

O futuro hospital – cuja gênese esteve nas mãos do doutor Francisco de Assis Teixeira, renomado cirurgião plástico já falecido – será o primeiro do Ceará especializado em deformidades craniofaciais, e funcionará no Condomínio Espiritual Uirapuru ainda neste ano. É lá que, desde 2010, também opera a Associação Beija Flor.

A organização cuida de crianças e adultos com Fissura Labial ou Palatina e má formação na face. O trabalho é 100% voluntário e conta com profissionais de diversas especialidades, entre eles dentistas, fonoaudiólogos, psicólogos, assistentes sociais, ortodontistas e cirurgiões plásticos. Doutor Ferreira está lá, colocando tijolinho por tijolinho na edificação emocional.

Faz parte dele o doar-se. Natural do município de Morada Nova, graduou-se em Odontologia pela Universidade Federal do Ceará e se especializou em Cirurgia Bucomaxilofacial em 1996. Desde criança, porém, sentia que a trajetória seria de cuidado ao outro. “Hoje entendo que está na programação da vida da gente, sabe?”, arrisca.

“Temos livre-arbítrio. A gente pode escolher o que quer ser e o que quer fazer. Mas acho que, no meu caso, o destino foi me colocando nesse lugar onde estou. E eu procuro, com muita tranquilidade e humildade, exercer da forma mais respeitosa possível meu trabalho para ajudar o maior número de pessoas possíveis com essa missão”.

Quando fala de sonhos, inclui muita gente, sobretudo toda a equipe que, dia a dia, torna o universo maior junto a ele. São pessoas para as quais um “muito obrigado” transforma os instantes em mais leves e cheios de esperança. Presenciarão quantos outros milagres? Escutarão quantos outros relatos? Desejam que sejam muitos, infinitos.

“Meu maior sonho, um sonho sonhado junto, é que toda pessoa que nasce no Ceará com má formação na face seja reabilitada. Que tenha o direito de ser igual a todo mundo – de ter um sorriso normal, uma fala normal, uma vida normal. A gente calcula mais de 15 mil pessoas com fissura lábio-palatina no Estado; só a Associação Beija Flor atende mais de 1400. É muita gente”. Vindas de longe e de perto, desenham o novo rosto do futuro.

Um em que será possível validar novamente a frase de Saramago. Sorrisos vêm sempre de longe. Brotam da força do amor.

 

Esta é a história de amor que o cirurgião José Ferreira da Cunha Filho dedica para cuidar de pessoas com Fissura Labiopalatina. Envie a sua também para diego.barbosa@svm.com.br. Qualquer que seja a história e o amor.