Há tempos, as casas abandonadas nos inquietam, nos fascinam, fazem-se vivas nas nossas ruas e em nosso imaginário. São palcos e cenários de narrativas que misturam realidade e ficção e despertam em muitos de nós um desejo uníssono: saber quais histórias contam ou são contadas sobre e entre seus muros, janelas, árvores, cerâmicas, e por entre as luzes do dia e da noite que refletem ou perdem-se entre suas fachadas sempre tão expressivas.
Praticamente todo mundo já teve seus devaneios acerca de uma casa abandonada e todas as fantasias que cercam seus muros, arredores, vizinhos. Seus vazios. Antes da moradia da “Mulher da Casa Abandonada”, de Chico Felitti, outras tantas casas mundo afora já tiraram o sossego de muita gente, que cata entre realidades e delírios as muitas versões sobre que lugares são esses, os quais, embora desabitados, tanto têm de vida.
Talvez o que queremos. para além de saber o que acontece entre as ruínas de uma casa abandonada, é também ser protagonistas das lendas que elas escondem entre belezas e restos em esquecimento; desejamos ainda reconhecer nossas raízes, as histórias que se fizeram antes de nós e que, de alguma forma, refletem em qualquer ponto do nosso existir; almejamos até experimentar em concretude as nossas próprias fantasias, habitar e nos reconhecermos entre os nossos imaginários.
Sobre isso e tanto mais, há muitas histórias. Uma delas também é minha, e ao mesmo tempo em que posta-se feito memória singular de mim, pulsa como memória coletiva sobre a cidade viva. Há cerca de 30 anos, no bairro Ellery, periferia na zona oeste de Fortaleza, uma casa abandonada protagonizava as histórias de terror entre as crianças da rua.
Lá - acreditávamos - uma blusa vagava sozinha flutuando pelos cômodos, uma nuvem, várias vezes ao dia, fazia chover apenas sobre a residência de 2 andares, de jardim marcante, pé de dinheiro perdido entre as pedras e um espaço enorme para quem tinha pouco mais de 5 ou 6 anos. Portas e janelas quebradas, mato crescido. Cenário perfeito para a fantasia das melhores lendas de terror da criançada.
A casa abandonada do bairro Ellery foi por tempos temida, motivo de choro - mas também de riso - entre corridas pelas nossas calçadas. Espaço de travessuras infantis. Por coincidência, destino, leis do Universo ou tanto mais, acabei indo morar na casa abandonada, com minha mãe e 3 irmãos. Ficamos, por tempos, conhecidos como “os meninos da casa abandonada”. Mas, com o passar do tempo, invertemos a lógica, e criamos novas lendas de vida.
Porque a casa abandonada foi alugada por minha mãe. Reformada. E, então, habitada. Transformamos - com gargalhadas, brinquedos, amigos e amores - o abandono da casa em resistência. Abrigo, de corpos, crenças, corações e almas. Lugar de renascimento. Virou um lar, cenário de encontros, de cochilo depois do almoço, cabana com os lençóis da cama e tijolinhos de madeira para erguer castelo de bonecas. Pula-pirata, soldadinhos e caixa de música a tilintar de frente pra chuva da janela.
Na casa habitada, aprendi que eu gosto de tomate, virei a melhor amiga de um primo-anjo-de-céu e depois de fraturar a clavícula entendi que nem sempre a gente alcança o interruptor, mas há outros jeitos de se fazer luz. Aprendi a ter coragem e que as paredes falam, e também nos ouvem. Nos guardam, protegem, e podem ser imensas telas de arte. Que janelas abertas são refúgios. E que paredes são a pele da nossa história, e desvendar os mistérios entre muros e mundos nos mantém vivos. E nesse caminho inteiro abrem-se portas porque bate-coração.