Descartes inicia o seu famoso "Discurso do Método" com uma ironia ao afirmar que o bom senso é a coisa mais bem distribuída do mundo já que todos estão convencidos de que o têm de sobra. Bom senso, explica Descartes, é o poder de bem julgar e de distinguir o verdadeiro do falso. A diversidade de opiniões não decorre de uns serem mais bem dotados do que outros, mas do fato de conduzirem os pensamentos por vias diversas e não considerarem as mesmas coisas.
O que aconteceria, então, se, em um contexto de pandemia, o líder de uma nação e seus seguidores não se limitassem a mal conduzir seus próprios pensamentos acerca do problema, mas tentassem impor políticas públicas baseadas em seus equívocos e tivessem a força das redes sociais para fazer o erro parecer verdade? O resultado seria cerca de meio milhão de mortos.
Vivenciamos no Brasil um caos sanitário potencializado pelo fanatismo e pela baixa política. O depoimento da dra. Luana Araújo na CPI da Covid causou impacto por ter sido uma lufada de bom senso em meio a tudo isso. E o bom senso dela mostrou-se, inclusive, nos princípios epistemológicos antidogmáticos que balizaram seu apelo científico: a ciência trabalha com "verdades relativas de ponta", não com verdades absolutas.
No começo, explicou a médica, havia plausibilidade teórica em relação ao uso da cloroquina no tratamento da Covid-19, mas as evidências científicas acumuladas pelo mundo inteiro, que está trabalhando contra o mesmo inimigo, invalidaram a hipótese. A despeito disso, insistiu-se no fármaco porque o presidente da República fez uma aposta de interesse político, jogando suas fichas na imunidade de rebanho, na cloroquina e no tratamento precoce. Apostou alto, jogou com vidas humanas e não voltou atrás quando suas apostas se mostraram desastrosas.
O veto à nomeação da dra. Luana confirma o padrão Bolsonaro de governar: ele despreza profissionais competentes e dignos para se cercar de aduladores.
*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião da autora.