Necrocidades ou a banalização da morte nas cidades

Depois de tantas repetições, estaríamos perdendo a sensibilidade frente a esses fatos?

Nesta semana senti um imenso desejo de escrever sobre temáticas amenas. Até anotei, no meu bloquinho virtual, lista de assuntos mais palatáveis, curiosos e divertidos. Frustrei minha vontade! A vida como ela é me trouxe a realidade.

As tragédias urbanas do mês passado, mesmo não sendo novidades para o padrão Brasil (leiam com todo o tom de crítica possível), merecem atenção e registro neste espaço opinativo. Estou me referindo a duas, especificamente: a enésima operação policial nas comunidades cariocas e seus resultados (dezenas de mortos e feridos) e os desmoronamentos na Grande Recife, levando ao túmulo mais de uma centena de brasileiros.

Para estes acontecimentos nosso grau de atenção e impacto tem diminuído. Depois de tantas repetições, estaríamos perdendo a sensibilidade frente a esses fatos? Estamos naturalizando os acontecimentos trágicos nas cidades? Fiquei muito intrigado!

As cidades brasileiras estão submetidas ao regime da necropolítica. Tal conceito é defendido pelo autor camaronês Achille Mbembe em livro homônimo. Fundamentalmente, o Mbembe discute o papel do Estado, seus poderes e a capacidades de ditar quem pode viver e quem deve morrer.

Na introdução do livro, o historiador faz uma pergunta provocativa: “sob quais condições práticas se exerce o poder de matar, deixar viver ou expor à morte?” Ele lembra da história do racismo, da guerra, do totalitarismo e dos espaços de segregação, sobretudo, nas cidades.

O camaronês nos faz refletir sobre o papel do Estado na regulação da vida, e mais ainda, no seu poder de matar ou de transformar zonas urbanas em espaços onde a morte é uma forma de controle ou uma banalidade.

No Brasil, nas comunidades ou nas favelas, o direito de matar e a morte foram vulgarizados. É como se a sociedade tivesse acordado que nesses espaços, acontecer o que aconteceu no Complexo da Penha (Rio de Janeiro) ou nos Morros de Jaboatão dos Guararapes (Pernambuco) fosse tolerável, fosse normal!

O leitor pode construir sua opinião e dizer, de pronto, que são situações diferentes e com causas, da mesma forma, distintas. Numa, a necessidade de caçar bandidos e narcotraficantes e, noutra, a tragédia tem causas naturais: a chuva.

Todavia, se nos aproximarmos dos argumentos de Mbembe, podemos chegar a outra conclusão. Os brasileiros mortos por balas perdidas, dos traficantes ou da polícia, e os demais, soterrados por lama das encostas pernambucanas (lembrem dos casos dos fluminenses, dos mineiros e dos baianos), são resultado da ação direta ou da omissão do Estado brasileiro. No Brasil é assim, milhões vivem em “necrocidades”, onde a morte é rotina.

Por não falarmos abertamente de racismo, guerra e terror, vimos ao longo do século XX o avançar de um processo de urbanização precário e socialmente excludente. A constituição das favelas, nas várzeas ou nos morros, e como tudo isso foi deixado correr, é exemplo de como a sociedade brasileira subcategoriza os seres humanos. A Constituição de 1988 até demarca que todos somos iguais perante a lei, mas na realidade não o somos.

Os meninos e as meninas das favelas podem morrer de bala perdida, afinal quem mandou eles morarem perto de bandido, assim diz o pensamento conservador. Ah! A morte de um é suportável, é resultado aceitável diante da necessidade de limpar as cidades dos traficantes, retruca o cidadão de bem. É disso que me refiro quando menciona a naturalização da morte e a subcategorização dos brasileiros. Uns valem tão pouco que podem morrer. Aqui o Estado é tolerado pela sua ação.

Tomemos um caso diferente. Quando uma família resolve, sem muitas alternativas, construir sua casa numa vertente de morro barrenta e instável. O Estado sabe o que vai acontecer. Todos sabemos que a chuva virá. Os desmoronamentos acontecerão e bateremos outros tantos recordes de desabrigados e mortos. Aqui o Estado é tolerado por sua omissão.

No próximo ano, assim como foi no ano anterior, serão publicadas outras tantas reportagens. Sem projetos estruturantes, sem democratização do bem-viver, da habitação digna; teremos o cachorro (Estado) fingindo que corre atrás do próprio rabo.

O povo brasileiro precisa se enxergar por dentro. Reconhecer suas idiossincrasias e seus preconceitos fundantes. A cidade bem reflete toda esta desigualdade. Não podemos admitir que um pequeno grupo social

tenha a soberania de decidir o que ou quem importa, não podemos aceitar a transformação do urbano brasileiro numa rede de necrocidades.

*Esse texto reflete, exclusivamente, a opinião do autor.