Sem consenso com teles, Cagece aguarda União para iniciar obra de dessalinizadora na Praia do Futuro

Previsão é de início das obras até março de 2024

A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) aguarda apenas o parecer da Superintendência de Patrimônio da União no Ceará (SPU/CE) para avançar com os trâmites legais da usina dessalinizadora a ser construída na Praia do Futuro, em Fortaleza, a Dessal do Ceará.

A declaração foi feita pelo presidente da companhia, Neuri Freitas, na nesta segunda-feira (11), durante evento no Palácio Abolição.

O SPU é onde se encontra atualmente o projeto da usina. É a penúltima etapa antes do início das obras. Segundo o gestor da companhia, após a autorização do órgão, será solicitada a licença de instalação, último passo antes de começar a construção.

A espera se dá concomitantemente aos contatos da Cagece com empresas de telecomunicações instaladas na Praia do Futuro, que ocorre por meio de um Grupo de Trabalho Técnico (GTT) coordenado pela Federação das Indústrias do Ceará (Fiec), a fim de acabar com o imbróglio entre as partes, conforme esclareceu Freitas.

"A ideia é só pensar alternativas para dar um pouco mais de conforto para eles. Onde passar a tubulação que tiver um cabo, a gente vai fazer por método não destrutivo, para evitar utilização de máquinas escavando. São apenas métodos que estamos trabalhando com eles para dar o conforto que eles querem. No mais, as instalações continuam com o projeto que foi licenciado e a gente aguarda o SPU", afirmou Neuri.

Neuri Freitas ainda se posicionou acerca das reclamações feitas pelas empresas de telecomunicações. Ao todo, 16 cabos submarinos, instalados no Hub Tecnológico de Dados da Praia do Futuro, são responsáveis por mais de 90% do tráfego de internet de todo o Brasil e da América do Sul. 

A principal crítica das operadoras é de que a estrutura de captação de água do mar da usina dessalinizadora deve ficar muito perto dos cabos de fibra óptica, e que a extração pode causar vibração no mar, prejudicando a qualidade do serviço de telecomunicações, podendo deixar boa parte do território nacional com instabilidade no sinal de internet.

Teles "não têm competência para estar questionando nada", diz Neuri Freitas

O gestor da Cagece salientou que a captação foi alterada, e agora se dará a 567 metros a oeste dos cabos, sem qualquer possibilidade de interferência. Ele disse ainda que as telefônicas "não têm competência para estar questionando nada" do projeto da Dessal do Ceará.

Nas discussões que temos com alguns diretores operacionais, estão sendo compreensivos. Independente disso, não compete às empresas de internet ser dona daquela região, dominar aquela região, muito menos à Anatel. Quem tem competência para dizer se a gente pode ou não entrar no mar é o SPU, e no continente quem decide são as instituições locais. 
Neuri Freitas
Presidente da Cagece

"A gente já convive lá há décadas. A gente tem tubulação cruzando os cabos deles em mais de 1.200 pontos. A gente só vai ter mais quatro pontos de cruzamento com os cabos, não vejo nenhum problema. E está dentro do continente, imagina se a gente não poder fazer nada perto de cabo porque está dentro do continente, vai inviabilizar o continente", completou.

O QUE DIZEM OS ENVOLVIDOS?

A reportagem do Diário do Nordeste entrou em contato com a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), com a associação de operadoras TelComp, com a SPU/CE e com a Fiec para elucidar os fatos tratados nas declarações de Neuri Freitas.

A Anatel ponderou que só tomou conhecimento em 2021 - quando foi iniciada a atuação regulatória - da construção da Dessal do Ceará na Praia do Futuro "após uma manifestação petição protocolada por uma das operadoras interessadas".

"Antes de tal data, a Anatel nunca foi demandada por qualquer ente responsável pela concepção, contratação ou construção do citado empreendimento, nem, tampouco, participou de qualquer ato ou debate acerca da temática", declarou a agência.

Questionada acerca da conformidade do projeto com a segurança da operação dos cabos submarinos, a Anatel informou que "notificou cada uma das operadoras interessadas, visando a apresentação de manifestações técnicas acerca da existência de impactos e riscos aos cabos".

A agência se opôs à primeira proposta para a Dessal do Ceará, localizada a cerca de 50 metros da estrutura de cabos submarinos. Com as mudanças no projeto, o órgão nacional evidenciou que ainda estuda a nova planta para dar o parecer técnico. 

"Como de costume, todas as operadoras responderam à provocação da Agência, tecendo seus apontamentos e percepções, cujo teor encontra-se em análise pela área técnica, cuja conclusão embasará o teor das próximas manifestações da Anatel", completou a Anatel.

Já a TelComp apontou que é favorável à construção da usina dessalinizadora, desde que não seja na Praia do Futuro, por entender que a atual infraestrutura existente de cabos submarinos no local atendem uma demanda de rápida conectividade no País passando por Fortaleza.

"A porta de entrada no Brasil para todo esse ecossistema da conectividade com o mundo é o hub da Praia do Futuro, que abriga não somente cabos submarinos, mas também grandes data centers, é importante não apenas para o Brasil, mas para a América do Sul", explicou a associação de operadoras.

A entidade argumentou ainda que a localização estratégica de Fortaleza é importante também para países africanos, uma vez que passam pela cidade estruturas que conectam nações do oeste africano aos Estados Unidos.

Caso a usina se concretize nos moldes atuais, a TelComp acredita que isso deve causar uma fuga de investimentos na capital cearense.

Caso o projeto siga, da forma como está, haverá um êxodo das empresas da região, pois elas estão há cerca de 20 anos no local e precisam de modernização e, se a usina estiver lá, sairão aos poucos. Hoje, são 16 cabos instalados, mas há previsão de ampliação. Contudo, os projetos que estão em andamento podem ser revistos e as novas entrantes desistirem de investir no estado.
TelComp
Sobre avanço da Dessal do Ceará na Praia do Futuro

Apesar da iminência da construção da usina, a associação de operadoras frisou que ainda não foi apresentado o projeto executivo da obra para as empresas de telecomunicações: "sem esse projeto detalhado, não há como prever as consequências da construção no local, mas sabemos que podem ser muito danosas".

"A construção da usina afeta e coloca em risco essa infraestrutura crítica para o Brasil e outros países amigos, parceiros comerciais. É maior do que o interesse das empresas de telecomunicações e de tecnologia. (...) As associadas mantêm diálogo permanente com a Anatel e com o Governo Federal, que se mostraram sensíveis aos nossos argumentos e tem buscado solução para o caso", finalizou a TelComp. 

Questionadas sobre o assunto, tanto SPU quanto Fiec, até o fechamento desta reportagem, não responderam com as informações solicitadas.

ENTENDA O CASO

A parceira público-privada (PPP) entre a Cagece e o Consórcio Águas de Fortaleza, liderado pela empresa Marquise, embora tenha sido oficializada em 2021, é um projeto antigo que busca oferecer alternativa ao fornecimento de água potável para Fortaleza e Região Metropolitana através da Dessal.

Projetada para ser instalada na Praia do Futuro, próxima a tubulações já existentes da Cagece, a usina dessalinizadora tem como objetivo garantir o abastecimento de água a 720 mil pessoas em Fortaleza em pelo menos 10 bairros:

  • Aldeota;
  • Caça e Pesca;
  • Castelo Encantado;
  • Cidade 2000 (parcialmente);
  • Meireles;
  • Mucuripe;
  • Praia do Futuro I;
  • Praia do Futuro II;
  • Serviluz;
  • Vicente Pinzon.

A Dessal do Ceará foi planejada para funcionar principalmente em períodos de seca, quando o volume dos reservatórios que abastecem a Grande Fortaleza, como o Castanhão, cai drasticamente.

O equipamento tem capacidade para produzir até 1 m³ (1 mil litros) de água doce a partir da dessalinização, de acordo com a Cagece, aumentando em 12% a capacidade do abastecimento na Grande Fortaleza.

Ao todo, serão investidos R$ 3 bilhões para 30 anos de operação da usina. Caso a construção comece realmente em 2024, a expectativa é de entrega em 2026.

No local, porém, estão instaladas empresas de telefonia há mais de 20 anos; As operadoras pouco a pouco transformaram Fortaleza no principal ponto de conectividade por cabos de fibra óptica das Américas.

Essas estruturas trazem ainda data centers, centro de processamento de dados. São através dos cabos submarinos por onde chega a maior parte da internet e do sinal de telefonia utilizado em todo o mundo.

Fortaleza, pela localização estratégica, concentra mais de 90% dos dados utilizados em todo o Brasil e na América do Sul como um todo. 

A capital cearense está interligada, por um ou mais cabos, com 44 cidades de 24 países e territórios diferentes, localizadas nos mais diferentes pontos das Américas, da África e da Europa.

Veja as cidades conectadas pelos cabos submarinos:

  • Brasil: Rio de Janeiro, Salvador e Santos;
  • Argentina: Las Toninas;
  • Angola: Sangano;
  • Bermuda: Ilha de St. David's;
  • Cabo Verde: Praia;
  • Camarões: Kribi;
  • Chile: Arica, Valparaíso;
  • Colômbia: Barranquilla, Buenaventura e Schooner Bight;
  • Costa Rica: Puerto Limon
  • Curaçao: Willemstad;
  • Equador: Punta Carnero;
  • Estados Unidos: Boca Raton, Hollywood, Jacksonville, Miramar, Ponce, San Juan, Tuckerton e Virginia Beach;
  • Guatemala: Puerto Barrios e Puerto San Jose;
  • Guiana Francesa (França): Caiena;
  • Ilhas Virgens Americanas (Estados Unidos): St. Croix;
  • Marrocos: Casablanca;
  • Martinica: Le Lamentim;
  • México: Cancún;
  • Panamá: Colón, Fort Amador;
  • Peru: Lurin, Mancora;
  • Portugal: Funchal e Sines;
  • República Dominicana: Puerto Plata, Punta Cana e Santo Domingo;
  • Trinidad e Tobago: Port of Spain;
  • Venezuela: Camuri, Maiquetía, Puerto Viejo.

As principais preocupações das companhias estão nos pontos de interseção entre os cabos de fibra óptica e os dutos de captação da água do mar e na proximidade entre as estruturas.

As teles afirmam que a sucção da água pode causar vibração, gerando instabilidade no sinal que passa por dentro dos cabos, além das obras, que devem gerar ainda maior perturbação na rede.

Já a Cagece, integrante da PPP que comumente se manifesta sobre o assunto, expõe que já alterou o posicionamento dos dutos de captação de água, agora distantes 567 metros dos cabos submarinos, e critica reiteradamente o que chama de "reserva de mercado" da Praia do Futuro por parte das teles.

As discussões ficaram ainda mais volumosas em novembro, quando o Conselho Estadual do Meio Ambiente (Coema) aprovou a licença ambiental da Dessal do Ceará.

Membros de algumas das empresas de telecomunicações consideraram retirar investimentos da Praia do Futuro caso a usina saia do papel, além de judicializar a ação para impedir que as obras da dessalinizadora sejam iniciadas.

[Erramos: na versão anterior do texto, era mencionado que duas operadoras de telefonia retirariam os cabos submarinos da Praia do Futuro. Na verdade, a posição de ambas as empresas é de que, caso a Dessal do Ceará saia do papel, ficam comprometidos novos investimentos no Hub Tecnológico de Dados de Fortaleza. O texto foi atualizado às 16h28 de 12 de dezembro].