A partir desta quarta-feira (3), entra em vigor no Brasil o limite do crédito rotativo acumulado em casos de atraso no pagamento da fatura do cartão. O valor dos juros não pode ultrapassar 100% do valor do débito original ao ano. A nova norma é de autoria do Ministério da Fazenda e é válida para pendências feitas a partir desta data.
Com a nova regra, uma dívida de R$ 1 mil não paga, por exemplo, só poderá ter a cobrança de juros e encargos até o limite de mais R$ 1 mil, somando, no máximo, R$ 2 mil.
Apesar de visualizarem a medida como positiva, especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste mostram preocupação com a redução no parcelamento sem juros e consequentemente desaquecimento no poder de compra das famílias.
Os juros rotativos existem há muito tempo na economia brasileira. Ele incide sobre pagamentos realizados com o cartão de crédito e estão relacionados ao não pagamento ou quitação parcial da fatura.
Quando o consumidor não consegue pagar, seja total ou parcialmente, o valor do boleto, o que sobra vem na próxima fatura acrescido de juros e encargos financeiros, além das cifras que já viriam normalmente para o mês seguinte.
Como exemplo, consideremos novamente uma conta de cartão de crédito de R$ 1 mil. Desse total, somente R$ 600 foram pagos. O que ficou pendente (R$ 400) virá na próxima fatura acrescido de juros do crédito rotativo, cuja taxa dependia da instituição financeira dona do débito.
A partir de 2017, porém, a situação se modificou durante o governo Michel Temer. O limite para o uso do crédito rotativo passou a ser de, no máximo, 30 dias. Após esse prazo, os consumidores passaram a ter a fatura parcelada, com os juros incidindo cumulativamente.
Isso acarretou, nos últimos seis anos, um dos principais índices de endividamento da população. Os juros que incidiam em cima da falta de pagamento ou da quitação parcial das faturas podiam ultrapassar os 445% ao ano, de acordo com o Banco Central do Brasil, um dos mais altos do mundo.
Considerando um cenário de uma instituição financeira com juros de 445%, um consumidor cuja fatura de R$ 2 mil tenha sido parcialmente paga com R$ 1 mil, no mês seguinte, além de pagar os débitos referentes a esse mês, ele poderá ter que pagar mais R$ 5.450, parcelados geralmente ao longo de vários meses — ou até anos.
Foi o que aconteceu com o designer gráfico Alexandre de Almeida, que precisou recorrer ao pagamento parcial da fatura. Em junho de 2023, a fatura do cartão de crédito dele veio R$ 800, mas o valor foi pago foi apenas R$ 200. Os R$ 600 restantes ficaram para o mês seguinte. Um valor mais alto no boleto já era previsto, só que o acréscimo foi bem acima do esperado.
“Minha fatura era para vir R$ 1 mil em julho, mas surgiu um parcelamento de 24 vezes [2 anos] de um valor mais alto. Paguei mais de R$ 2 mil apenas de juros e acréscimos. Isso tomou todo o meu limite e deixou meu cartão negativo, como se eu tivesse usado o cheque especial”, explica.
O designer chegou a entrar em contato com o banco para questionar o débito, mas após entender as questões contratuais, admitiu que teria de pagar integralmente a dívida. Alexandre ainda critica a falta de transparência da instituição acerca dos juros rotativos.
“Importante reforçar que o banco não dá detalhes dessa cobrança, não explica porque ela existe e não deixa nenhum canal aberto para tirar qualquer dúvida a respeito desse tipo de cobrança”, expõe
Situação já prevista
A taxa do rotativo do cartão de crédito foi alvo de repetidas críticas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tratada inclusive em visita dele a Fortaleza no início de setembro de 2023, e do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.
O limite dos juros do rotativo do cartão de crédito está na lei do Desenrola, programa de renegociação de dívidas do Governo Federal que oferece condições facilitadas para pessoas com pendências financeiras.
A decisão do Conselho Monetário Nacional (CMN) para estabelecer o teto do rotativo veio no último 21 de dezembro. Haddad afirmou que as discussões para o limite dos juros começaram em outubro, e sem acordo com instituições financeiras e administradoras de cartão, ficou definido que o valor máximo da alíquota seria de 100%.
Na visão de Ana Alves, economista e colunista do Diário do Nordeste, a decisão do Governo Federal estimula que a população brasileira consiga desafogar a situação financeira, saindo da bola de neve dos juros do rotativo e buscando limpar o nome.
“Essa limitação de juros acaba contribuindo na verdade com a possibilidade de as pessoas terem um pouco mais de condições de parcelar e não ter esses juros abusivos. Ainda que seja até 100%, já é acima da média, o Brasil tem um dos maiores juros de cartão de crédito no mundo, mas de fato já pelo menos traz esse impacto de redução de juros”, explicita.
A opinião da economista é compactuada pelo presidente da Associação Brasileira de Profissionais de Educação Financeira (Abefin), Reinaldo Domingos, que chama a antiga taxa de juros do rotativo de “absurda e covarde” com os consumidores brasileiros.
“Diria covarde com relação ao consumidor final quando ele deixava de pagar um compromisso, a qual é a fatura do cartão de crédito, e somava mais de 400%. Com essa tomada de decisão de limitar a no máximo 100%, esta proporção é significativamente importante, porém ela não combate causa, simplesmente fala para o consumidor que deixou de pagar a fatura em dia. (…) Se ele deve dez, vai dever no máximo vinte em um ano. Essa decisão acho que é bem-vinda para o consumidor, traz o consumidor para uma realidade diferente”, frisa o gestor da associação.
Apesar de elogiar parcialmente a medida, Reinaldo Domingos completa criticando outros indicadores da economia nacional que contribui para o desequilíbrio dos juros, como a taxa Selic, ainda acima dos 10%, e o baixo rendimento da caderneta de poupança.
“É muito alto ainda, se você pensar que uma caderneta de poupança rende 5%, Selic está 11,75%, temos uma penalidade de 100% ao ano. Isso ainda é muito covarde junto aos consumidores, aqueles que realmente não conseguem honrar esses compromissos. Vejo isso como paliativo, uma situação que atenuará para o consumidor, mas não vai combater a causa e eu acredito ainda que continua sendo muito injusto com o consumidor final”, alerta.
Benefícios reais?
Embora haja a redução real nas alíquotas cobradas pelo rotativo do cartão, os especialistas acreditam que a reação do mercado deve ser justamente no que contribui para que a população não consiga efetuar o pagamento total das faturas: o parcelamento sem juros.
Está sendo discutida a questão de uma possível retração no comércio e um impacto real na economia. Acredita-se que isso pode de fato trazer uma retração, o que não é favorável obviamente, mas por conta da redução do parcelamento. A partir do momento que os bancos se veem na condição de ter que reduzir a taxa de juros, é provável que o parcelamento sem juros no cartão de crédito não ocorra mais. Alguns dizem que pode ser limitada em até quatro, seis vezes. Então isso é um impacto real que pode afetar diretamente a economia e o comércio sem essa possibilidade de parcelamento tão a longo prazo.
O parcelamento sem acréscimo permite que bens duráveis, como smartphones e eletrodomésticos, possam ser comprados e divididos de modo que possibilite o pagamento pela população em parcelas de valores mais baixos. Com a limitação no número de “vezes sem juros”, Ana Alves acredita que o comércio será impactado.
“As pessoas vão ter uma limitação maior de compras, e com isso pode reduzir o endividamento. Na atual taxa de juros, quando a pessoa paga, ela chega a pagar mais de 400% ao ano só de juros. Isso de fato traz uma bola de neve. A expectativa é de que, com essa limitação, aconteça uma retração da economia, o que não é favorável a partir do momento que as pessoas vão não ter mais provavelmente o número de parcelamento que hoje já existe. Mas tem também a possibilidade de criação de compras mais conscientes, que as pessoas não parcelem tanto tempo e por isso as parcelas vão se tornar maiores e talvez a consciência em relação ao consumo mude“, analisa.
Para o presidente da Abefin, essa limitação das taxas do rotativo deve trazer “pouquíssimos efeitos imediatos”, principalmente porque só são válidas para dívidas feitas a partir deste ano, sem considerar o endividamento já pendente dos brasileiros.
“Todas as faturas que existiam até 31 de dezembro foram majoradas em mais de 400%. É importante ressaltar que essa tomada de decisão por parte do governo vai atenuar o processo daqui para frente, daqui para trás não, ou seja, continuo com o ônus até 31 de dezembro de 2023 impactado em mais de 400% caso eu estivesse dentro dessa comunidade de pessoas que já exploraram os seus cartões de crédito. Acredito ainda em pouco benefício para os consumidores“, defende.
Mesmo com os benefícios ofertados com o teto de juros do rotativo, Reinaldo Domingos destaca que a raiz do problema está no desequilíbrio entre o que se ganha e o que se gasta dos consumidores, e os acordos junto a instituições financeiras devem ser feitos após a reorganização financeira.
Se tenho uma dívida vencida, tenho que pensar que de onde ela provém, com certeza do meu desequilíbrio financeiro. Ou seja, o que eu ganho e o que eu gasto praticamente estão em desacordo. Posso até dividir isso em dez parcelas, mas esse impacto ele é dirigido ao meu cotidiano. Falo que nunca se deve fazer um acordo sem ter arrumado primeiramente o que se ganha e o que se gasta, precisa se fazer com que haja um equilíbrio e uma sobra de recursos financeiros mensais. Ganho R$ 4 mil, vou gastar R$ 3 mil, tenho R$ 1 mil de sobra, legal. Aí sim estou apto a buscar para uma renegociação junto a esses bancos.
Reinaldo Domingos acrescenta ainda a situação do Desenrola Brasil, onde muitos consumidores contrataram os acordos, mas sem a certeza de que vão conseguir honrar os compromissos, voltando à situação original de endividamento
“As pessoas fizeram muitas assinaturas do Desenrola Brasil e estão fazendo com que a dívida que eu tinha até então pudesse dividi-la. A pergunta que fica é: no meu orçamento financeiro, cabe essa prestação? A maior parte das respostas é: não cabe. Então fiz um acordo que eu não vou honrá-lo, e quando eu não honro, volto a ser inadimplente. Então o grande segredo da população é que precisa restabelecer o equilíbrio entre o que se ganha e o que se gasta, sempre gastando menos do que se ganha“, orienta.
Outras medidas
Além do limite dos juros do rotativo do cartão de crédito, está previsto para entrar em vigor ainda a portabilidade da dívida e boletos mais transparentes, objetivando dar maior clareza para a população acerca dos débitos.
O consumidor vai poder, assim como acontece com os leilões de dívidas do Desenrola, transferir seu débito renegociado para outras instituições financeiras, de acordo com taxas de juros e outras condições para pagamento das faturas.
“Quando existe competitividade junto ao sistema financeiro, fica muito bacana para o consumidor. Instituição A está cobrando juros de 5%, 6%, por exemplo. Na instituição B, aquela mesma dívida vai cobrar 4%. Então posso olhar para aquela instituição B e fazer com que exista uma portabilidade, que ela compre essa minha dívida e faça eu ter uma dívida com juros menores. Este ganho vai ser muito interessante para o consumidor final, principalmente porque ele vai conseguir fazer com que seus juros possam ser menores do que aqueles pactuados quando houve o uso daquele cartão de crédito por exemplo”, salienta o presidente da Abefin.
“Em relação a possibilidade de portabilidade da dívida, isso é favorável na medida em que hoje todas as dívidas ficam centralizadas em uma bandeira, um tipo de cartão e aí não se pode negociar. A negociação é sempre muito difícil, a não ser quando a própria bandeira do cartão passa para um escritório de cobrança e consegue juros menores. A possibilidade dessa portabilidade de dívidas é você trazer a sua dívida para outras situações onde que os juros sejam menores”, diz Ana Alves.
No que diz respeito à transparência, as faturas dos cartões deverão ter uma área de destaque contendo informações essenciais, como valor total, data de vencimento do período vigente e limite total de crédito.
Também devem estar inseridas opções de pagamento, como valor para pagamento mínimo e os encargos que incidirão no boleto do mês seguinte em caso de não quitação ou apenas parcialmente, além de informações complementares ao fim da fatura, como o que está prevista para ser pago no próximo débito.
Com essas medidas, Reinaldo Domingos acredita que é possível encontrar mecanismos para equilibrar bem as finanças, desde que observadas as condições de gastos familiares e o que é essencial.
“A dívida é um produto, onde se eu realmente quiser agora trocar pelo um outro financiador e ele me proporcionar melhores condições nessa portabilidade de juros, tendo um juros menor, mais acessíveis e o impacto menor, possa ainda alongar mais ainda a minha dívida, com juros menores, isso vai fazer com que possa ter uma melhoria na minha organização financeira. Precisa ser restabelecido. Não adianta eu ir lá reduzir os meus juros de seis pra quatro ao mês. E não conseguir honrar esse compromisso resolver a causa nesse caso”, enfatiza.
A questão também é ressaltada pelo professor do departamento de Contabilidade da Universidade Federal do Ceará (UFC), Érico Veras, que avalia que as medidas podem sim ser eficazes, desde que aliadas ao consumo consciente.
“A ideia é de que vá para onde a taxa de juros seja mais barata, mas é preciso fazer a conta direitinho. A questão do endividamento é para as pessoas usarem bem o cartão de crédito. Muitas vezes as pessoas têm mais de um cartão. Você está limitando a taxa de juros de um, mas se você usar vários, vai ter problemas do mesmo jeito”, pontua.
O que dizem os bancos?
A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) informa que, ao contrário do divulgado pelo Governo Federal, participou “ativamente das discussões sobre os juros do rotativo, apresentando ao regulador diagnósticos e propostas para um redesenho da dinâmica do produto”.
O que o órgão critica é de que, embora haja a limitação dos juros a partir desta quarta-feira, o problema não foi solucionado na origem, e segue sendo apenas um paliativo para a real questão que causa o endividamento da população.
“A Febraban reforça sua posição de que as causas dos elevados juros do rotativo não foram estruturalmente solucionadas, o que impacta diretamente os consumidores que precisam dessa linha de crédito. Por isso, entendemos como temporária a solução atual e, por não resolver a causa-raiz, os juros se manterão ainda em patamar elevado, prejudicando o comércio e aqueles que mais precisam de crédito para consumir. Passada essa primeira fase de implementação da lei do rotativo, a Febraban prosseguirá nos debates com a sociedade, legisladores e reguladores, buscando soluções para o reequilíbrio do principal instrumento de financiamento do consumo no Brasil, com maior transparência e uma efetiva e sustentável redução dos juros que beneficie especialmente a população de renda mais baixa”, declarou a federação.