A ocupação de cargos de liderança nas empresas brasileiras por mulheres cresceu nos últimos 20 anos, mas considerando todo o contexto que as conduz a essas posições como o acesso à educação, por exemplo, o caminho a percorrer ainda é longo.
A reflexão é de uma mulher que contribuiu ativamente nas últimas duas décadas para o desenvolvimento das indústrias no Ceará por meio do trabalho no Comércio Exterior e que observou ao longo desse período a evolução da presença feminina nesses espaços, bem como as lacunas que ainda precisam ser preenchidas em nome da busca pela igualdade de gênero.
Como uma espécie de mantra a ser seguido por todos e todas que possuem essa busca em comum, Ana Karina Frota, gerente do Centro Internacional de Negócios da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), é uma das entrevistadas pelo Diário do Nordeste para o Projeto Elas, iniciativa do Sistema Verdes Mares que busca informar, discutir e instigar a reflexão sobre qual é o lugar da mulher na sociedade: o que ela quiser.
Ao longo da conversa, Karina Frota pontua a importância de as mulheres estarem constantemente em busca de conhecimento técnico e reforça a necessidade da criação de políticas em várias esferas que possam expandir a participação de mulheres na ambiência profissional.
Veja a entrevista completa:
De onde veio o seu interesse pelo comércio exterior? Foi alguém que te inspirou ou incentivou a trabalhar na área? E você possui algumas formações fora. Quando começou a atuar na área, eram poucas as formações relacionadas ao tema aqui no Ceará?
A minha graduação foi em Ciências Sociais. Na época, a Federação das Indústrias do Ceará (Fiec) tinha um projeto com a Fundação Cearense de Apoio à Pesquisa (Funcap). E era um projeto voltado para estudantes de universidades públicas e eu me candidatei para uma vaga como bolsista da Funcap. O local de trabalho desse bolsista era justamente na Fiec, na área internacional.
Como bolsista da Funcap, eu entrei para trabalhar com pesquisas na área internacional voltadas para o setor industrial. Na época, eu tinha uma amiga da faculdade e ela começou a me apresentar a essa parte da pesquisa voltada para a área internacional.
Essa pesquisa era feita com a captação de dados estatísticos através de sistemas extremamente complicados, há 20 anos, e quando ela me apresentou a essa área da pesquisa internacional, de fato eu me encantei.
Eu não sabia que tinha facilidade com números e me surpreendi positivamente.
Na época, ainda como bolsista, nós tínhamos uma voz de quem estava na academia. Então nós éramos muito escutadas aqui pela nossa liderança direta.
Lembro que, mesmo sendo uma estudante bolsista, naquele momento, há 20 anos, nós conseguimos implantar algumas melhorias.
A minha amiga que me avisou da vaga para bolsista tinha sido recém-contratada pela Fiec e nós tínhamos feito algumas disciplinas juntas na universidade, inclusive hoje ela tem o meu cargo, mas na Confederação Nacional da Indústria (CNI), em Brasília.
Após dois anos como bolsista, meu nome foi levado até a presidência da Fiec, em 2003, e foi autorizada a minha contratação formal pela Federação.
Então eu terminei a faculdade, fui contratada pela Fiec e como eu já estava na área internacional, fiz em sequência uma pós-graduação em Comércio Exterior pela Universidade Católica de Brasília.
E você só encontrou essa pós-graduação fora do Estado, certo? Aqui não tinha nada nesse sentido para essa área?
Não tinha nada nessa área. Algum tempo depois surgiu o primeiro curso de graduação em Comércio Exterior aqui em Fortaleza e aí alguns outros surgiram em seguida.
Naquele tempo, eu comecei a dar aula nos cursos de graduação em Comércio Exterior. Hoje, temos apenas um curso de graduação na área, que vem desde aquela época.
Por que hoje nós só temos um curso na área?
Hoje, nós passamos por um momento de transformação econômica muito grande no Estado. Quando nós vamos para 18 anos atrás, ainda era tudo muito inexpressivo, muito tímido.
Para você ter uma ideia, esses dados de comércio exterior que nós temos com atualização automática mensal, na época eram captados por um sistema disponibilizado pelo Serviço de Processamento de Dados (Serpro). Era tudo ainda muito complicado para você conseguir, incluindo os dados.
Alguns estudantes da época imaginavam que a área de Comércio Exterior era algo simples, algo fácil, porque de fato é uma carreira muito glamurosa quando se fala em toda a trilha da internacionalização.
O que acontece é que no meio desse percurso aparecem algumas dificuldades, tanto em relação à disciplina, conteúdo e à própria inserção no mercado internacional.
Hoje essa realidade é bastante diferente, então por vezes os alunos optavam por não seguir porque se viam diante da incerteza de inserção no mercado de trabalho.
Então a sua relação com o comércio exterior foi ocorrendo de maneira muito natural. Houve algum tipo de resistência da sua família ou de pessoas próximas em relação à sua escolha profissional, considerando essas incertezas? Ou houve apoio?
Era tudo muito novo, como nós comentamos. Eu não tive resistência da família ou das pessoas que estavam próximas a mim, pelo contrário: isso instigava uma curiosidade enorme.
Como no período em que eu era bolsista a gente já atendia o empresário, eu sempre mentalizei que eu iria seguir com o trabalho que eu realizava, mas agora com um novo desafio: o da difusão dessa cultura da internacionalização para essas empresas que nós já atendíamos enquanto área internacional.
Na época, nós estávamos lançando o primeiro voo direto internacional saindo de Fortaleza e naquele momento o assunto despertava muito interesse, de como é que nós trabalharíamos essa cultura de empresas que só tinham um olhar para o mercado doméstico.
Foram desenvolvidos muitos projetos, com a própria Comissão Europeia, de apoio à internacionalização das empresas brasileiras, cearenses, e tudo aquilo, por ser extremamente desafiador, foi nos fortalecendo e nos levando a motivar essas empresas, buscando conhecimento fora, já que não tínhamos aqui.
Naquele movimento, muitas pessoas entusiasmadas com o tema formaram um grande grupo de estudo. E foi naquele momento que nasceu no Estado a Comissão de Comércio Exterior.
Era a primeira representação formal e institucional de entidades que trabalhavam com o comércio exterior, inclusive a Comissão se tornou uma boa prática para outros estados.
Karina, e quando você chegou a Fiec, primeiro como bolsista e em seguida como contratada, era uma área com muitas mulheres? Houve alguma resistência dentro da Fiec naquele início por você ser uma mulher trabalhando com Comércio Exterior?
Eu considero que a área internacional da Fiec é muito abençoada. Na época, o meu chefe direto, que era superintendente da área, tinha uma visão muito diferenciada da importância da mulher dentro do mercado de trabalho.
Mas eu lembro que o superintendente era homem, o gerente da área era homem e as mulheres ocupavam mais os cargos operacionais.
O que eu percebia muito naquela época era que, como nós participávamos de várias reuniões com a própria classe empresarial, por vezes - e isso acontece até hoje - nós íamos para as reuniões e quando sentávamos à mesa, só tinham homens.
Nosso público empresarial de certa forma é muito masculino, e obviamente nós percebíamos, como ainda percebemos hoje uma certa resistência.
Porém, a especificidade do nosso trabalho é algo tão rico e grandioso, tão organizado, que essas primeiras impressões, com o passar do tempo, automaticamente são transformadas e somos vistas como um público que traz mudanças significativas no ambiente de trabalho e nas próprias negociações.
Hoje, quando eu sou convidada para dar uma palestra ou para estar em uma reunião com algum embaixador, para estar com determinado setor industrial, é fato que a maior parte do público é masculino.
Eu vejo hoje uma grande transformação no mercado de trabalho no que se refere ao próprio comércio exterior. Hoje, o mercado de comércio exterior já conta com muitas profissionais mulheres.
O que falta, na sua avaliação, para termos ainda mais mulheres atuando na área aqui no Ceará e no País? E na chefia das empresas, ainda faltam muitas mulheres?
Tivemos mudanças significativas? Sim. Mas ainda estamos longe de estarmos equiparados em termos numéricos.
Veja a área de comércio exterior, que trabalha com câmbio. Quem são as pessoas que estão em instituições financeiras? Em sua maioria, homens. A área de comércio exterior trabalha com logística.
Quem são os profissionais, em sua maioria, que estão na área de logística? Homens. A área de negociação internacional, que trabalha com os escritórios de direito internacional? Homens. A parte de promoção comercial relacionada à própria promoção do produto no mercado internacional? Homens.
Se observarmos os ministros que nós já tivemos, tanto de Relações Exteriores como de Economia, do próprio antigo Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio? Homens. De fato, há uma predominância do público masculino, mas as mulheres hoje já subiram degraus expressivos dentro desse contexto.
Eventualmente eu estudo e leio sobre isso e as mulheres possuem características extremamente importantes para estarem dentro dessa área, que exige comunicação, relacionamento, que exige um senso crítico.
A área de comércio exterior exige cautela, você não pode ter imediatismos, e nesse ponto eu acho que as mulheres são incomparáveis.
Por isso é que eu vejo hoje a área de comércio exterior com mudanças tão significativas. Nós (na Fiec) temos um ambiente de trabalho extremamente harmonioso, organizado.
Eu vejo que nós conseguimos otimizar o tempo e nesses tópicos específicos, acredito que nós, mulheres, somos incomparáveis. A nossa área aqui da Fiec é uma área quase que 100% feminina.
Algo que é muito apontado nas pesquisas que eu vejo é a questão de remuneração, mas o grande desafio que observo é promover as oportunidades entre homens e mulheres.
É nesse ponto que eu muitas vezes acredito que nós, mulheres, não conseguimos desenvolver carreiras voltadas para cargos mais altos por conta da maternidade.
Karina, fala um pouco sobre a relação com teus filhos e em que medida a maternidade te impulsiona na tua carreira e te faz sentir mais vontade de correr atrás dos teus objetivos e em que medida ela te impôs medo de não conseguir dar conta?
Para mim, a maternidade será sempre a prioridade. E é aí onde existe essa desvantagem profissional entre o homem e a mulher.
Eu sempre contei com uma rede de apoio e isso é importantíssimo. Quando eu parei para a licença-maternidade dos meus dois filhos, eu sempre ficava pensando: eu preciso voltar a trabalhar, na medida do possível, de forma concentrada, então eu sempre busquei uma rede de apoio, contando muito com meu esposo, com minha mãe e minhas irmãs.
Sobre os medos, o meu primeiro filho vai completar 13 anos. Há 13 anos, até com o objetivo de abrir mercado para o Ceará, eu viajava muito, muito mesmo! Eu cruzava o mundo e, nesses momentos eu sempre, pelo perfeccionismo, organização e responsabilidade, sempre me baseei em planilhas.
Então se eu ia passar uma semana fora, eu tinha lá na minha casa, grudada na geladeira, uma planilha com o que o meu filho ia comer durante todos aqueles dias, se tinha médico, se tinha algum remédio a ser tomado. Estou falando de uma época em que a gente não tinha WhatsApp, então não tinha essa facilidade que nós temos hoje.
Um dia eu cheguei para essa minha amiga que me apresentou à área de comércio exterior e que tinha uma vida muito parecida com a minha e disse assim: Sara, às vezes eu acho que eu não vou conseguir, porque é tão difícil esse sofrimento de realizar a sua viagem - que não deixa de ser uma realização e uma oportunidade profissional muito grande - e deixar uma criança tão pequena em casa.
Ela olhava pra mim e dizia: ela vai ficar só? Eu disse: não. Ela: você vai passar um ano fora? Eu disse: não. Aí ela: pois trabalhe e viaje para os seus filhos se orgulharem da pessoa que você vai ser, do que você fez e faz.
E aí eu fui internalizando isso de galgar a minha carreira profissional em algo que orgulhasse muito os meus filhos, que hoje são extremamente organizados, estudiosos.
Eu sou uma pessoa muito presente. Se eu não estiver fazendo algo relacionado ao meu trabalho, eu estou fazendo algo com eles e eu vejo que isso nos fortaleceu muito enquanto família.
Como é criar filhos, homens, para que eles sejam pessoas responsáveis, que entendam a necessidade da igualdade de gênero? Como você visualiza isso e como aplica isso à convivência com eles?
Não é a questão do gênero que vai definir quem é mais ou menos competente e eu vejo muito as lideranças femininas, inclusive no comércio exterior, como nós nos encorajamos, como nos inspiramos dentro dessa mesma trajetória. Isso exala. Sem que você perceba, isso vai além.
Por exemplo: eu nunca precisei falar para os meus filhos que eles precisavam ser crianças organizadas, porque isso é ensinado pelo exemplo. Quando o meu filho chega para mim e diz: mamãe, mas é porque a mãe dele não trabalha, eu digo: não, não é por conta disso, porque a mãe dele trabalha. Ela não trabalha fora de casa.
Eu sempre falo muito dessa questão da valorização da mulher no ambiente e no contexto em que ela se encontra. Hoje meus filhos percebem isso muito claramente pelo exemplo de valorização natural que eu dou ao exercício dessas mulheres independentemente das suas posições.
Eu sigo acreditando que a visão feminina é uma visão muito diferenciada, é algo rico, muito valioso. Por isso que eu incentivo muito a minha equipe, que é essencialmente feminina, para que elas assumam novos desafios, que elas ocupem esses postos de trabalho. Eu acredito no protagonismo feminino.
Quem são as mulheres que inspiraram a Karina no começo dessa jornada e quem são as mulheres que inspiram até hoje?
Minha inspiração e por quem eu tenho profunda admiração e gratidão é uma pessoa chamada Sara Saldanha. Ela é cearense, hoje ocupa um cargo de muito destaque na Confederação Nacional da Indústria e eu a vejo como a minha madrinha dentro da área de Comércio Exterior.
Porém eu também sou uma pessoa muito família e extremamente simples. Na minha família, além da minha mãe, eu tenho duas irmãs e a gente se completa muito em termos de valores, no senso de justiça, responsabilidade e comprometimento. É algo que eu observo muito nas seleções que fazemos aqui.
Quando a gente abre seleção, ficamos em dúvida sobre que candidato é o mais adequado à vaga na parte técnica, mas a parte de valores, que é aquela que a universidade não ensina - e é por isso que eu trago muito essa inspiração familiar - hoje é o grande diferencial, que é a questão do equilíbrio, da empatia e responsabilidade. E eu trago muito essa essência da minha família.
Você mencionou que, para você, a maternidade sempre será uma prioridade. Você avalia que as empresas estão preparadas com essa visão de sensibilidade em relação à profissional que exerce a maternidade?
A vulnerabilidade de gênero é uma lacuna. Nós identificamos vários avanços dentro desse segmento de lideranças, porém quando nós afunilamos essa questão, nós também percebemos com muita clareza que apesar da evolução relacionada a essas barreiras de gênero, quando a gente fala de condição salarial, acesso à educação, eu vejo que temos um caminho muito longo a percorrer.
Quando a gente olha, por exemplo, para Europa e Estados Unidos, a gente já percebe uma realidade muito diferente.
Tivemos - inclusive isso é algo recente - a nomeação de uma mulher para a diretoria-geral da Organização Mundial do Comércio, a OMC. Eu acredito que foi a primeira vez que uma instituição dessa relevância nomeou uma mulher para estar como uma diretora-geral. Era um cargo sempre comandado por homens.
A Organização das Nações Unidas tem um projeto chamado ONU Mulheres e em uma recente pesquisa da ONU, de março ou abril, foi comentado que a representatividade feminina no Brasil ocupa o penúltimo lugar entre as nações da América Latina, considerando os cargos de liderança, que são os relacionados aos salários mais altos.
Eu acredito que nós melhoramos bastante, não dá para comparar a realidade de hoje com a de 20 anos atrás, mas nós temos, ainda muita coisa para evoluir.
Mas não é algo tão singular do Brasil. Cada país tem o seu aspecto cultural, tem os seus tabus, os seus conceitos, preconceitos.
Um ponto de muita dificuldade, por exemplo, para profissionais mulheres no comércio exterior está, por exemplo, nas tratativas de negociações comerciais com os países árabes.
Há uma parcela significativa de membros desses países que ainda se recusam a negociar questões comerciais com representantes do sexo feminino, mesmo que sejam mulheres com liderança de suma importância.
Quais são os principais desejos para que no futuro nós consigamos evoluir em termos de igualdade de gênero?
É muito importante que nós, enquanto mulheres, estejamos dispostas a aprimorar o nosso conhecimento técnico.
É como se nós fôssemos desafiadas a todo momento. É por isso que na maioria das vezes nós estamos buscando elevar o nosso conhecimento técnico, buscando uma capacitação.
Eu sigo acreditando que para esse fortalecimento do gênero nós precisamos do desenvolvimento de políticas que possam expandir a participação das mulheres nessa ambiência profissional.
Vou te dar um exemplo: seria muito interessante se toda vida que nós tivéssemos um evento, palestras, a gente tivesse condições de ter dois interlocutores homens e duas interlocutoras mulheres.