As ofertas e as variedades são anunciadas no grito. Por trás dos cavaletes de madeira coloridos pelas frutas e vegetais, há quem espontaneamente repasse seus conhecimentos sobre o clima, colheita, como usar e conservar cada alimento e até as receitas de família. E, embora a frase “3 por R$ 5” não pare de ecoar, há sempre a oportunidade de enveredar essa conversa para uma pechincha.
As feiras livres são esse ambiente de encontro com a vizinhança e com a cidade. Entretanto, em meio ao crescimento do setor supermercadista nas últimas décadas, esse comércio ao ar livre foi rareando nos grandes centros urbanos.
Em Fortaleza, 73 feiras livres ainda resistem, segundo a Secretaria Municipal da Gestão Regional (Seger).
Mapa interativo
Além das 73 feiras de bairros, Fortaleza possui outras sete exclusivamente de produtos agroecológicos, totalizando 80 opções. Clique nos ícones do mapa para obter as informações sobre os dias e horários de funcionamento da feira mais próxima da sua casa.
Fontes: Prefeitura de Fortaleza, Rede EcoCeará, Cetra e MST. Elaboração: Heloisa Vasconcelos. *A Prefeitura não especificou os horários de todas as feiras. Geralmente, a maioria delas funciona pela manhã, das 7h às 12h.
A pasta, no entanto, não soube informar o número de feirantes. Até a publicação desta matéria, o Diário do Nordeste também não conseguiu contato com a entidade representante do setor para obter esse dado.
Embora não quantificadas, são muitas as famílias cujo ganha-pão vem da feira, como a dona Senhorinha dos Santos, o Antônio Augusto e o Erivaldo Miranda, apresentados na 2ª parte desta reportagem.
Conhecer essa população é crucial para a elaboração de políticas públicas de inclusão econômica desses trabalhadores. Essa categoria foi duramente afetada pela crise da pandemia de Covid-19. Com o necessário fechamento das barracas, muitos ficaram sem renda até retornarem para as ruas.
Na outra ponta, naquele período, o segmento de supermercados – sobretudo o formato de atacarejo – ganhou novo fôlego. De lá para cá, continuou em alta.
Para se ter ideia, somente em Fortaleza, 30 empresas devem ser abertas ainda neste ano, conforme previsão da Associação Cearense de Supermercados (Acesu). A entidade informou haver 615 lojas associadas em todo o Estado, mas não especificou quantas estão instaladas em Fortaleza.
Nesse contexto, é oportuno voltar o olhar para a manutenção do comércio livre a céu aberto e para um desenvolvimento regional sustentável, conforme demonstra o professor de Economia Ecológica da Universidade Federal do Ceará (UFC), Aécio Alves de Oliveira.
“As feiras são importantes para as agriculturas familiar e agroecológica. É uma geração de renda para as famílias e há um efeito indireto por meio das demais atividades nos locais. Então, os impactos chegam desde as famílias consumidoras até as produtoras”, lista.
Aécio enfatiza, também, os benefícios do fortalecimento dessa economia popular para o meio ambiente. Com o estímulo da produção sem agrotóxicos, por exemplo, há uma melhora na saúde de quem consome e produz.
Feiras livres demandam políticas públicas de valorização cultural e reorganização
Na atualidade, em Fortaleza, as feiras são a alternativa para quem busca preços mais baratos e preza pelo valor afetivo. Contudo, torná-las mais atrativas para mais públicos é fundamental para gerar emprego, renda e impulsionar a economia popular e criativa.
O professor Aécio pondera a necessidade de melhorar a aparência e a higienização desses espaços. “Deve-se caminhar na direção de barracas padronizadas e muito higiênicas”, salienta.
Já o coordenador do Laboratório de Estudos em Geografia Cultural (Legec) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), Otávio José Lemos Costa, enfatiza que as políticas públicas para o funcionamento das feiras ainda estão muito ligadas à regulamentação.
Para ele, as medidas voltadas para a sustentabilidade do pequeno produtor não devem se restringir à produção e ao comércio, podendo também englobar práticas de sociabilidade.
“É preciso desenvolver políticas que agreguem a dimensão cultural da feira. Assim, ao promover a cultura local, os produtos comercializados enfatizam as coisas do lugar e são enunciados como bens simbólicos, uma vez que, no ambiente da feira, representam a pluralidade e uma identidade própria”, reflete.
Segundo a Prefeitura de Fortaleza, a Seger mapeou as feiras para ordená-las e padronizá-las, incluindo melhorias na infraestrutura, limpeza, trânsito e na segurança. Também serão criados, afirma, corredores para a circulação de pessoas.
Porém, das 73 feiras existentes, apenas 14 receberam visitas técnicas, a medição das dimensões das barracas, a pesquisa com o público da feira, a setorização por segmento de atividade econômica e o cadastramento dos vendedores.
“Esses locais já organizados recebem banheiros químicos para uso durante o funcionamento da feira e, ao final, equipes de limpeza são destacadas para recolher o lixo produzido”, garantiu.
Sobre projetos de capacitação, a gestão informou que os feirantes do Conjunto Polar, no bairro Vila Velha, e na Feira dos Palmares e da Rua Urucutuba, no Bom Jardim, receberam o Termo de Permissão, após passarem por curso de empreendedorismo ofertado pela Secretaria do Desenvolvimento Econômico (SDE).
Ao todo, 337 pessoas foram beneficiadas. Com relação a projetos de auxílio econômico, a Prefeitura de Fortaleza informou ter o microcrédito previsto no “Programa Nossas Guerreiras”.
Quando alguns cearenses deixaram a feira para fazer o “mercantil”?
Otávio Costa explica que a demanda atual pelas feiras envolve questões culturais e regionais, além da econômica.
“Com a chegada dos supermercados nas cidades brasileiras, muitos hábitos de consumo foram mudados no que concerne à prática de compra de alimentos e outros produtos vendidos nas feiras”, contextualiza.
O docente lembra ser um movimento semelhante ao observado com a chegada dos shoppings e do comércio nos centros das metrópoles. “Talvez, a facilidade do consumo, ofertas e a visibilidade arquitetônica, entre outros aspectos, implicaram de certa forma em um status de ‘fazer o mercantil', um termo bem cearense”, avalia.
Nesse contexto, aponta, o consumidor foi se adaptando a outras formas de consumir. “Em Fortaleza, talvez, pelo hábito de comprar na feira não ter sido tão presente, a chegada do supermercado alterou esse comportamento", analisa.
“Porém, acredito que, em cidades como Rio e São Paulo, essa prática não mudou muito. Posso até afirmar ser uma prática de consumo evidenciada por meio de uma paisagem simbólica que enuncia sonoridades, cores e odores”, descreve.
O professor de Economia Ecológica da UFC, Aécio Alves de Oliveira, observa que muitos municípios cearenses não sucumbiram a essa modernização.
“De fato, os supermercados foram um golpe muito violento para as feiras. Elas já foram maiores em Fortaleza, mas, quando você vai para o interior, encontra feiras espetaculares. Vai lá em Cascavel para você ver como tem uma feira vibrante”, exemplifica.
Qual a importância social das feiras?
Para Otávio Costa, as feiras livres podem ser caracterizadas como um fenômeno de ocupação das ruas que convive com a sociedade moderna, apesar de ter sofrido modificações ao longo do tempo.
“Enquanto manifestação socioespacial, a feira livre expressa uma paisagem urbana com singularidades que envolvem aspectos de sociabilidade e engendram uma territorialidade simbólica e resistente no contexto daquela paisagem”, analisa.
“Assim, podemos falar de uma territorialidade popular e informal que, por meio de uma afirmação cultural, busca resgatar elementos da memória e por que não dizer sobre um resgate do sentimento de comunidade?”, completa.
Aécio frisa que as feiras estão na tradição cultural da humanidade.
“É o mercado livre concretizado. Lá, você pode barganhar, pedir um desconto. Quando está perto de acabar, tudo fica mais barato, o popular fim de feira. Então, é o lugar de todo mundo”, destaca.
Na Capital, as feiras precisam de autorização e licença para funcionar, conforme os artigos 876 e 877 do Código da Cidade.
O exercício da atividade sem essa documentação ou em desacordo com as condições fixadas no Termo de Permissão emitido pela gestão municipal é considerado infração. O controle é feito pela Agência de Fiscalização de Fortaleza (Agefis).