A demissão dos trabalhadores da Guararapes, em Fortaleza, no dia 10 de janeiro deste ano, foi marcada por um clima de tristeza pelo emprego perdido, porém não foram raros os relatos de gratidão pelas benesses oferecidas pela empresa no momento em que foi anunciado o encerramento da fábrica.
Um vídeo no qual as costureiras pulam, satisfeitas, após saberem que ganhariam uma máquina de costura para trabalharem, chegou a circular nas redes sociais, mostrando um sentimento coletivo de alívio, apesar do desligamento.
Ao passo em que as demissões vêm sendo realizadas, porém, a alegria demonstrada por elas naquele momento gradualmente foi dando lugar a uma série de questionamentos. Isso porque, de acordo com ex-funcionários demitidos, a empresa estaria retrocedendo em algumas das promessas que fez. Além disso, eles dizem que as rescisões parecem ser “bem menos do que o que elas acharam que seria”.
A reportagem procurou o Ministério Público do Trabalho no Ceará (MPT-CE) para saber se havia algum registro de denúncia sobre o tema. Conforme o órgão, “foi registrada uma denúncia com solicitação de verificação de regularidade da empresa” e que está em fase preliminar de investigação.
Em nota, a Guararapes informou ao Diário do Nordeste que não foi notificada pelo MPT e destacou que este é um "procedimento de praxe, trata-se de uma apuração, faz parte do processo e não há nenhuma irregularidade, pelo contrário, estamos tratando o tema com seriedade e compromisso devido".
Maria (nome fictício) conta que os números parecem não bater. “Teve gente que trabalhou por 30 anos na empresa e recebeu R$ 6 mil no encerramento da fábrica, sendo que eu conheço colega que foi demitida meses antes do fechamento, trabalhou 15 anos e recebeu a mesma coisa de rescisão”, diz.
Ela própria contestou o valor das contas: trabalhou durante três anos e três meses e recebeu cerca de R$ 2,5 mil. “Assim, eu realmente não sei, mas eu achei pouco pela quantidade de tempo, no meu caso e no caso das minhas colegas”, diz Maria.
Mas não foi só isso: Maria, que tinha três dias de folga para tirar, chegou a ser informada que os dias seriam pagos na demissão, que tudo entraria nas contas, porém no momento do desligamento os dias não foram computados.
Ela questionou. Disse que, ao chamarem uma pessoa do departamento de Recursos Humanos, notaram que realmente os dias deviam ser pagos.
“Eu disse para a moça que estava fazendo a demissão que eu tinha três dias de folga e ela disse que não estava computado. O rapaz do RH confirmou que eu tinha esses três dias e eles ficaram de me ligar para dizer como ia ser o pagamento e até agora nada”, pontua a trabalhadora.
Denúncia de descaso de funcionária do sindicato da categoria
Ela conta que uma colega demitida, desconfiada com os valores da rescisão, decidiu ir até o Sindicato das Costureiras (Sintconf), localizado no bairro Demócrito Rocha. “A mulher nem chegou a atender ela. De dentro mesmo do portão disse que as contas dela estavam certas, sem nem olhar”.
A amiga em questão é Alessandra (nome fictício), que trabalhou durante 27 anos na fábrica e recebeu cerca de R$ 6,4 mil. Ela conta que foi até a sede do Sindicato, bateu à porta e conversou com uma mulher pelo portão gradeado, que sequer chegou a abrir para ela. “Ela estava lá varrendo, soltou a vassoura e foi falar comigo”.
Eu disse que fui demitida e que não estava satisfeita com as minhas contas. Pedi a ela para conferir e ela perguntou se eu era da Guararapes. Disse que sim e ela perguntou: ‘o que é que você veio fazer aqui?’. Pegou os papeis que dei a ela, folheou e disse que estava tudo certo. Eu pedi: ‘some aí para a senhora ver. A senhora não viu nem meu tempo de serviço, não pegou uma calculadora’"
“Ela disse: ‘olha, a Guararapes é uma das melhores empresas que tem’. Aí eu perguntei a ela se ela trabalhava no RH da Guararapes para estar falando isso”, diz Alessandra.
"Se eu fosse a senhora, eu ia para casa e orava"
De acordo com a trabalhadora, a mulher do lado de dentro da sede do sindicato fez pouco caso e ainda sugeriu que ela “orasse para encontrar um emprego e para que a nova empresa depositasse o seu FGTS”. “Aí ela disse: ‘se eu fosse a senhora, eu ia para casa e orava para conseguir um emprego, orava para eles depositarem ao menos o seu FGTS do jeito que a Guararapes fez esses anos todos”.
Eu disse que ia atrás dos meus direitos, que ia procurar um advogado. Ela disse que, se eu fosse, eu ia perder dinheiro.
A reportagem entrou em contato com o Sindicato das Costureiras em busca de um posicionamento sobre os relatos da trabalhadora que buscou assistência junto a entidade, mas não houve retorno às ligações feitas até a publicação desta reportagem.
Máquinas de costura
Outro problema relatado é sobre a prometida máquina de costura aos trabalhadores demitidos da fábrica. Maria, a primeira trabalhadora que fala nesta reportagem, relata que a voltagem é muito elevada para as residências, o que exigirá das costureiras que paguem um serviço para adequação do equipamento para o uso.
“A gente vai atrás de um mecânico para ajeitar a overlock de lá, porque elas puxam muita energia. Vai ser uma coisa que nem vai compensar”, lamenta Maria.
A Guararapes, entretanto, afirma que está adaptando as máquinas com tensão mais alta. "A maior parte das máquinas do Grupo Guararapes, de costura reta e de duas agulhas, possui tensão de 220 volts, o que já era esperado pelos colaboradores. Atuando de maneira próxima e transparente com seus ex-colaboradores, o Grupo recebeu alguns pedidos de máquinas interlock que possuem tensão de 380 volts, mas serão transformadas em 220v para que os ex-colaboradores possam utilizar em suas residências. A doação dos equipamentos seguirá sendo conduzida como anunciado".
Ela conta que, no dia do comunicado sobre o desligamento, 10 de janeiro, a gestão comunicou que o aviso das trabalhadoras seria pago em dobro, promessa que, segundo Maria, não foi cumprida. “Quando eu fui questionar, disseram que não existia isso, sendo que foi falado para nós”.
Sobre este ponto, a Guararapes esclareceu que "não houve acordo sobre pagamento em dobro", sendo a informação que circulou entre os trabalhadores "uma inverdade". Em nota, o Grupo Guararapes afirmou que se comprometeu com:
- O dobro do Plano Médico Adicional previsto no aviso prévio para todos os funcionários
- Bônus no valor de um salário a mais para 1.050 funcionários
- Doação de máquinas de costuras para 950 funcionários
- Meio salário mínimo (675 reais) para todos os 2 mil funcionários
"Além do auxílio, o Grupo está atuando em conjunto com o Governo do Estado, Prefeitura de Fortaleza e entidades como Fiec, Sebrae, Sindroupas e Sindiconfecções para adoção de medidas para requalificação e realocação dos ex-colaboradores", informou.
"Mixaria"
Ana, também de nome fictício, tinha quase três décadas de empresa e questiona o valor recebido. “Eu tenho 27 anos de empresa e recebi R$ 6,4 mil. Uma mixaria! A pessoa morre de trabalhar e recebe isso! Para você ter uma ideia, eu hoje sou operada das duas mãos, tenho tendinite, não posso mais trabalhar. Minhas mãos incham!”, diz.
Sobre as máquinas, ela diz que as melhores foram enviadas para Natal, no Rio Grande do Norte. “Eles disseram na TV que iam dar máquina para a gente, mas a gente não pode nem escolher. Eu mesma vou vender a minha, não adianta trazer uma máquina dessas para casa”.
Em conversa com a reportagem, João (nome fictício), também ligado à Guararapes, disse que também foi descumprido um acordo que havia sido feito com funcionários que integravam a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa), relativo à estabilidade desses trabalhadores.
“Foi passado que a Guararapes pagaria o salário até o fim da estabilidade, só que agora vão pagar só até a transferência total das máquinas. Algumas pessoas tinham oito meses de estabilidade, outras tinham 20 meses”, diz o trabalhador.
Sobre isso, a Guararapes afirmou que "todas as rescisões serão homologadas pelo sindicato e o Grupo pagará a estabilidade dos Cipeiros de acordo com o previsto em lei e conforme a NR-5 ( 5.4.10), validado em reunião com o sindicato dos trabalhadores".