"Uma escolha natural". Esse foi o slogan utilizado pela candidatura do Brasil para receber, pela primeira vez na história, a Copa do Mundo de Futebol Feminino. Em 2027, o País irá sediar o evento e Fortaleza mais uma vez aparece como uma das subsedes, com boa parte do legado herdado do Mundial masculino, em 2014.
É esperado que a capital cearense receba seis jogos da Copa de 2027, sendo cinco da fase de grupos e um das oitavas de final. A abertura e a decisão serão disputadas no Maracanã, no Rio de Janeiro.
Diferente do Mundial de 2014, a capacidade dos estádios, em um primeiro momento, será reduzida. Em caso de procura acima do esperado por ingressos, novos bilhetes serão disponibilizados para comercialização.
O slogan da candidatura brasileira, que superou a concorrência tripla de Alemanha, Bélgica e Países Baixos, considera a infraestrutura deixada pela Copa do Mundo de 2014. À época, investimentos bilionários em estádios e em obras de infraestrutura foram realizados nas 12 cidades-sede, dentre elas Fortaleza.
Somente em equipamentos de mobilidade, Arena Castelão e demais obras relacionadas, os investimentos na cidade superaram os R$ 1,614 bilhão, sem contar os recursos aplicados indiretamente pela vinda do Mundial para a capital cearense.
Passados dez anos do primeiro evento da Federação Internacional de Futebol (FIFA), Fortaleza agora se prepara para receber novamente uma Copa do Mundo, dessa vez com a expertise adquirida pelo Mundial de 2014, mas com muito trabalho pela frente e uma corrida contra o relógio, principalmente na Arena Castelão, palco das partidas.
As ambições de Fortaleza
A escolha da capital cearense, que até então não havia sediado nenhum grande evento como uma Copa do Mundo, foi fundamental para colocar a cidade nas rotas nacional e internacional de negócios e turismo.
Uma das principais contribuições para a cidade passou pelas mãos de Ferruccio Feitosa, hoje secretário municipal da Gestão Regional de Fortaleza. À época, ele era Secretário de Esportes do Estado (2007–2010), e após a reeleição do então governador Cid Gomes (hoje novamente no PSB), assumiu a Secretaria Especial da Copa 2014 no Ceará (Secopa) entre 2011 e 2014.
Em entrevista ao Diário do Nordeste, o gestor relembra o processo do Mundial em Fortaleza, com metas ousadas. A Capital vislumbrava receber um jogo de semifinal da Copa do Mundo, mesmo com a concorrência de cidades do eixo (Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo), ou até mesmo a final do evento.
"A gente tinha que mostrar isso para a Fifa. O cara da Fifa tomou um susto porque ele mesmo deu a entender que não conhecia Fortaleza, só São Paulo e Rio de Janeiro", recorda.
O governador autorizou que disséssemos que atenderíamos fielmente ao caderno de encargos, porque entendemos que a Copa do Mundo é o maior evento do planeta e podia nos ajudar muito alavancando a economia, gerando emprego e renda para o povo. Só havia uma forma de a gente fazer Fortaleza ser protagonista da Copa: se mostrássemos competência na execução do estádio, que é palco do evento.
O destaque de Fortaleza ficou na execução em tempo recorde da Arena Castelão. Entre dezembro de 2010 e dezembro de 2012, o estádio foi completamente remodelado, tendo inclusive partes sendo implodidas para que novas estruturas fossem construídas.
Em 16 de dezembro de 2012, uma comitiva da Fifa, a então presidente Dilma Rousseff e o então governador Cid Gomes inauguraram o novo Castelão, no padrão Fifa. Foi o primeiro estádio entregue para a Copa do Mundo.
"O pessoal da Fifa saía de Zurique, fazia uma escala em Fortaleza. Os outros estavam tão atrasados, e como eles tinham que mostrar para o mundo a Copa, eles terminavam que toda chegada no Brasil acabava tendo um pernoite aqui, e isso foi gerando mídia espontânea para a cidade. A gente recebeu televisões do mundo inteiro querendo saber que cidade era essa que estava à frente de todas as outras e estava fazendo bem o seu papel", diz o secretário.
Geração de emprego e multiuso
De todas as obras do Mundial em Fortaleza, nenhuma tem um legado tão evidente até hoje quanto a Arena Castelão. Com capacidade oficial de 63.903 torcedores, o estádio recebeu nove jogos: três da Copa das Confederações de 2013 e seis da Copa do Mundo de 2014.
No estádio foram registrados momentos históricos, como o hino executado à capela por torcedores e jogadores, bem como a última vitória da Seleção Brasileira, diante da Colômbia, antes do fatídico 7 a 1 para a Alemanha. Mais do que um espaço de jogos, o estádio é ainda um importante polo gerador de empregos, de acordo com Rogério Pinheiro, atual secretário de Esportes do Ceará.
A cada jogo, temos aqui em torno de 1.200 pessoas trabalhando diretamente do estádio. Se a gente for falar indiretamente, deve movimentar umas 5.000 pessoas. Se considerarmos de oito a 10 jogos por mês, a gente gera uma grande movimentação econômica só na Arena Castelão e no seu entorno. Tem a questão turística, movimentação da rede hoteleira.
"O Aeroporto Internacional Pinto Martins tem saídas diretas para Estados Unidos e Europa, o que facilita essa movimentação aérea que circula o nosso estádio, sem falar no que movimenta internamente em termos de consumo, de alimentação e bebida, negociação de camarotes. Temos sempre grandes públicos aqui no estádio, e são números muito consideráveis na economia do Estado", completa.
Outro ponto destacado pelo gestor estadual é o caráter multiuso da Arena Castelão. Embora a predominância seja de partidas de futebol, frequentemente o estádio, principalmente no estacionamento aberto, recebe shows.
Dentro da praça esportiva, eventos são ocasionalmente realizados, com o próximo marcado para novembro de 2024, na turnê dos irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia, com expectativa de público acima das 40 mil pessoas.
"Temos sempre essa preocupação de manter essa característica do equipamento multiuso. A gente vem sempre dialogando com os setores esportivo e cultural. A gente tem um grupo de trabalho que a gente discutir todas as ações envolvidas, principalmente no que tange ao impacto. Realizamos grandes shows no estacionamento descoberto, com a capacidade de 40, 50 mil pessoas, grande vantagem da Arena Castelão", considera Rogério Pinheiro.
Essa é o número de empregos diretos gerados na Arena Castelão em dias de grandes jogos. Se contar os empregos indiretos, proporcionados sobretudo pela informalidade, o número aumenta mais de 400%
Copa do Mundo: ecossistema que transforma a cidade
A comparação com o Castelão e arredores de 2010, antes do início das obras no estádio, com 2024 mostra que a região é outra. Seja na requalificação viária, na especulação imobiliária ou no surgimento de novos comércios, a urbanidade criada no local trouxe mudanças importantes.
"Nenhuma das obras do legado da Copa estão pendentes. A matriz para Fortaleza basicamente era mobilidade. De lá para cá, evoluímos muito nessa questão da mobilidade. Fizemos um novo plano diretor, com muito mais detalhes, onde a gente elencou um novo conjunto de obras importante para a cidade, com foco na mobilidade não-motorizada (Bicicletar)", explica Samuel Dias, secretário de Infraestrutura de Fortaleza, sobre as intervenções viárias na Capital.
Já a professora do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do núcleo Fortaleza da rede de pesquisa do Observatório das Metrópoles, Clélia Lustosa, acredita que o Mundial potencializou a vocação da informalidade para os setores econômicos da cidade.
"Quando os eventos internacionais chegam aqui, vem também pessoas do norte da África, das Guianas fazer compras no setor informal. Eles mostram que não dá para você tratar apenas a partir da economia formal, mas a informal é muito importante, não só do comércio, mas também de pequenos empreendedores que dinamizam a economia local", argumenta a especialista.
Ao longo de quase oito anos organizando o Mundial de 2014 na cidade, Ferruccio Feitosa acredita que Fortaleza foi transformada em função do evento. Para ele, o município evoluiu com o "efeito Copa", e o processo deve continuar avançando de olho em 2027.
"Se a gente olhar Fortaleza de 2007 e de hoje, é completamente diferente. É uma cidade com uma mobilidade e serviços muito melhores, na iniciativa privada, com mais bares e restaurantes, é uma cidade com um potencial turístico enorme, serviços e pessoas mais qualificados. É bem melhor do que no passado, e tivemos a oportunidade de mostrar Fortaleza para o mundo", avalia.
Apesar de considerar que a Copa do Mundo de 2014 trouxe certo desenvolvimento para Fortaleza, atrelada a grandes eventos culturais, a professora Clélia Lustosa defende que o legado não é igual em toda a cidade.
"De qual Fortaleza está se falando, que setores da cidade? Não se pode generalizar que o legado vai para todo mundo, algumas áreas foram beneficiadas com as melhorias", frisa.
Fortaleza na rota internacional
Mesmo que indiretamente, a Copa do Mundo trouxe novos equipamentos que evidenciam a questão turística, seja de lazer ou de negócios, da Capital. Três delas ilustram bem o destaque de Fortaleza no Brasil e no mundo: o Centro de Eventos do Ceará, a requalificação da Avenida Beira-Mar e o Acquario do Ceará.
O último jamais saiu do papel e foi recentemente doado pelo Governo do Estado e para a UFC, que deverá construir no local o Campus Iracema da universidade.
Já os dois primeiros aproveitaram o potencial. O Centro de Eventos mantém a utilização, e já protagonizou importantes momentos políticos e econômicos da história do Brasil, como a Declaração de Fortaleza, que instituiu o Novo Banco de Desenvolvimento, também chamado de Banco dos Brics (sigla que incluía à época Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), atualmente presidido pela ex-presidente da República Dilma Rousseff.
As obras na Avenida Beira-Mar começaram apenas após o Mundial e ainda perduram na orla fortalezense, mas já é possível notar muitas diferenças. Além de ciclovia ao longo de toda a extensão da via, houve o alargamento da faixa de areia, bem como a requalificação de toda a extensão a via.
Os eventos realizados no Aterro da Praia de Iracema, em destaque o Réveillon, trazem públicos milionários para a cidade, com altas cifras aplicadas na economia da cidade. Há alguns anos, a festa vem rivalizando com o tradicional Ano-Novo nas areias da Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, considerado historicamente o maior do País.
"Na época da Copa, os investimentos foram mais nessa região do turismo, mais visível, onde os turistas usufruíram desses espaços, mas várias regiões de Fortaleza foram alteradas, (reforçando) os contrastes nas regiões", reforça Clélia Lustosa.
Herança festiva
A estreia da Copa do Mundo Feminina será em 24 de junho de 2027. Faltando pouco mais de três anos, Samuel Dias acredita que, do ponto de vista da infraestrutura municipal, a cidade está pronta para receber o evento.
"Temos um acesso à arena que permite a realização desses eventos, temos um entorno que cresceu e temos um legado de infraestrutura que permitiu à gente avançar na melhoria da mobilidade na cidade", avalia.
Em 2014, Fortaleza foi a sede oficial da Fifa Fan Fest, evento realizado em pontos turísticos das cidades-sede com transmissão de jogos e realização de shows. Todas as partidas do Mundial eram televisionadas nos telões do Aterro da Praia de Iracema, e em dias de partidas do Brasil, o local ainda recebia programação especial.
De acordo com o Balanço Final para as Ações da Copa do Mundo da FIFA Brasil 2014 (6º Balanço), divulgado em dezembro daquele ano pelo Ministério do Esporte, mais de 781 mil pessoas compareceram às areias da Praia de Iracema durante os 30 dias de Copa. Foi a terceira Fan Fest com mais público do País, atrás apenas das duas maiores cidades nacionais, Rio de Janeiro e São Paulo, que receberam 937 mil e 806 mil torcedores, respectivamente.
Esse foi o público que compareceu à Fifa Fan Fest no Aterro da Praia de Iracema, em Fortaleza, sendo o terceiro maior contingente de torcedores do País, atrás somente do Rio de Janeiro e São Paulo.
Novamente, o Aterro da Praia de Iracema surge como principal opção para a Fan Fest, segundo Rogério Pinheiro. A segunda opção é a área aberta do Parque do Cocó. A análise de Ferruccio Feitosa é que o sucesso do evento pode colocar novamente Fortaleza em evidência.
A nossa Fan Fest foi elogiadíssima pela Fifa e foi considerada uma das melhores da Copa do Mundo, tanto que eles usaram a nossa estrutura como case para os futuros Mundiais. Na época, trouxeram atrações para animar o público antes da partida, e depois da transmissão, ainda tinha muita festa. Entendeu-se a vocação de Fortaleza para o turismo e, portanto, apostou-se muito nisso.
Melhorias necessárias para a Copa
Dez anos depois, obras como o Aeroporto Internacional Pinto Martins, VLT Parangaba-Mucuripe e o Terminal Marítimo de Passageiros do Mucuripe foram entregues, com capacidade atualizada para atender a demanda turística. A preocupação maior fica em torno do palco do evento: a Arena Castelão.
Utilizado de forma praticamente ininterrupta desde 2012, o equipamento precisa passar por remodelações, principalmente para atender à futura demanda do Mundial. O secretário Rogério Pinheiro faz um balanço das melhorias.
De acordo com o titular do Esporte no Ceará, "nada foi alterado desde 2012" no Castelão, incluindo gramado e demais instalações. As principais mudanças estão na utilização do estádio, que frequentemente figura como o mais utilizado dentre as arenas da Copa de 2014 do Brasil, o que traz prejuízos na qualidade da grama, motivo de muitas críticas inclusive da Conmebol, autoridade máxima esportiva na América do Sul.
"Sempre falo que o gramado sofre por duas grandes boas razões. Uma é a boa situação dos times cearenses, que nos trazem cada vez mais competições. Em 2024, tivemos seis competições, e isso acarreta o maior número de jogos no Castelão. A segunda é que isso acontece em um período também onde temos maior concentração de chuva, e é um grande desafio porque é em um período que temos o maior número de volume de chuvas e o maior número de jogos", enfatiza.
Além de um novo gramado, no padrão Fifa até 2027, Rogério Pinheiro acredita que mudanças na estrutura interna da Arena Castelão, onde hoje funciona a secretaria do Esporte, a Superintendência de Obras Públicas (SOP) e o Batalhão de Choque da Polícia Militar, devem ser priorizadas. Os pontos vêm sendo tratados com o atual governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT).
O nosso parque tecnológico tem 12 anos de utilização. Ele atende a demanda existente atual, mas a gente entende que com o avanço da tecnologia, a gente precisa também trabalhar a renovação. Daqui até 2027, a gente vai traçar todo um plano de manutenção para que em 2027, e até muito antes, a gente tenha a Arena em plena capacidade de receber esse evento.
O que aproveitar do legado de 2014 para próximo Mundial?
Ainda não há previsão, nem na esfera federal, estadual ou municipal, de quais serão os investimentos realizados para a Copa do Mundo de 2027, mas os administradores públicos e especialistas são categóricos que as obras devem ter uma magnitude menor do que em 2014, principalmente por boa parte dos equipamentos ainda estar em bom estado de conservação.
"O Legado principal da Copa do Mundo, em termos esportivos, é que a gente tem uma Arena referência nacional e internacional de estádio de futebol. Tem condição, estando bem cuidada e tratada, de receber eventos dessa magnitude", afirma Samuel Dias.
A infraestrutura atual da cidade, segundo Ferruccio Feitosa, permite que não sejam necessárias grandes preocupações no acesso à Arena Castelão. Para o ex-titular da Secopa, é preciso apertar o passo para realizar as intervenções necessárias na Arena Castelão em somente três anos.
"Fortaleza está muito bem estruturada e preparada , porque a gente tem hoje infraestruturas fantásticas tanto de mobilidade, hotelaria, área pública de saúde, educação. Embora possa parecer distante, mas não é, três anos é muito pouco, porque em três anos, para arrumar o palco do evento, o Castelão, tem que começar agora. Sem ele, não acontece de jeito nenhum", classifica.
A professora Clélia Lustosa chama de "sucesso" o legado deixado pela Arena Castelão, mas volta a defender que é necessário analisar friamente qual a herança deixada para a cidade pelo Mundial de 2014, principalmente pela proximidade da próxima Copa do Mundo.
O Castelão foi feito e deu um resultado positivo, o VLT, mas em termos gerais, qual o investimento e qual foi o retorno desse investimento? São questões que outras pessoas consideram que o impacto direto, mas em termos gerais, é questionável o legado.
O prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT), pondera que Fortaleza está pronta para receber a Copa do Mundo Feminina de 2027, e destaca os avanços dos últimos anos em mobilidade urbana e infraestrutura, além das melhorias na área turística.
"Não é à toa que nos tornarmos líder da economia no Nordeste. Nossa capacidade de receber visitantes e a qualidade dos serviços também melhoraram. Veja, por exemplo, a grande modernização que estamos fazendo em toda nossa orla. Urbanizamos vários novos espaços públicos. Tudo isso impactou positivamente toda a cadeia econômica que envolve comércio, bares, restaurantes e hotéis. Fortaleza tem tudo o que é preciso para realizar um evento bem sucedido", disse o prefeito.
Procurado via assessoria de imprensa pelo Diário do Nordeste, o governador Elmano de Freitas foi questionado se o Ceará está pronto para receber o Mundial de 2027, mas até o fechamento desta reportagem, não retornou o contato.