Remédios, embalagens, cosméticos, chips de celulares. Todos esses produtos podem ser feitos a partir da cera de uma mesma matéria-prima, a carnaúba, árvore nativa da caatinga e que, há 20 anos, é oficialmente símbolo do Ceará, constando inclusive no brasão do Estado. Bastante requisitada durante o período colonial cearense, a planta continua com uma significativa participação na atividade econômica local.
É atribuída à árvore boa parte do mercado de exportações do Ceará e do Brasil ao longo dos anos, como explica Edgar Gadelha, presidente da Câmara Setorial da Carnaúba do Ceará, órgão ligado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE), e do SindCarnaúba, entidade que representa os produtores da palmeiras no Estado.
Dados trazidos por ele apontam que, durante o período de safra, são gerados 90 mil empregos no Ceará ao longo de toda a cadeia produtiva. Os números de exportação, já favoráveis ao Estado, ainda registram que a carnaúba é a oitava em volume de exportações.
A carnaúba é encontrada única e exclusivamente, de forma natural, no semiárido nordestino. Com o nome científico Copernicia prunifera, a árvore recebe esse nome que, na mitologia tupi, se traduz como "árvore que arranha" das características da planta, mais adaptada ao clima da região.
O Ceará, ao lado dos estados do Piauí e do Rio Grande do Norte, se destaca nas exportações da cera de carnaúba, principal subproduto manufaturado. É a partir dela que derivam a maioria dos produtos, como cosméticos e medicamentos.
De acordo com dados da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado do Ceará (Faec), por meio do Centro de Inteligência e Inovação da Agropecuária (Ciiagro) em 2022, a produção cearense de cera de carnaúba foi de 529 toneladas, correspondendo a 82% de toda a fabricação nacional.
O Estado também é líder na produção de fibra de carnaúba, tendo praticamente exclusividade na manufatura do produto no País. No que diz respeito ao pó, produto primário extraído das palmeiras da árvore, o Ceará fica na segunda posição e, ao lado do Piauí, maior produtor, domina 96,2% do mercado nacional.
Estado | Quantidade (em toneladas) | Ranking |
Ceará | 529 | 1º |
Rio Grande do Norte | 81 | 2º |
Bahia | 34 | 3º |
Estado | Quantidade (em toneladas) | Ranking |
Piauí | 10.252 | 1º |
Ceará | 7.600 | 2º |
Maranhão | 440 | 3º |
Rio Grande do Norte | 229 | 4º |
Paraíba | 20 | 5º |
Estado | Quantidade (em toneladas) | Ranking |
Ceará | 1.485 | 1º |
Maranhão | 4 | 2º |
Rio Grande do Norte | 1 | 3º |
Neste dia 30 de março, completam-se 20 anos desde que o então governador do Ceará, Lúcio Alcântara, instituiu a carnaúba como árvore-símbolo do Estado, sendo protegida por lei. Ela também consta no brasão e na bandeira cearenses, como forma de preservar a planta.
Pujança nas exportações
Diferente de outros materiais retirados da natureza, o processo extrativo da carnaúba é feito de modo a preservar as características da planta, mantendo-a viva e produzindo novas folhas. O passo-a-passo para o uso da palmeira ainda é feito quase que da mesma forma ao já registrado historicamente.
- Primeiro retiram-se as palmeiras, principal material utilizado, e coloca-se para secar diretamente em contato com o Sol;
- Após esse processo, a cera que envolve as folhas resseca, e a palmeira é agitada até soltar o pó. Esse já é um produto exportado, que pode ser encontrado refinado ou não;
- A partir do pó, é produzida a cera de carnaúba, geralmente em pedaços mais grossos. Esse material é o mais utilizado por reduzir as perdas no transporte e já ser mais fácil em transformação em produtos como cosméticos e ceras;
- As plantas não são descartadas. Quando morrem, as folhas são utilizadas no artesanato, em chapéus, esteiras e acessórios, e até mesmo para limpeza, nas vassouras de palha.
"A cera de carnaúba é um produto muito antigo, já esteve entre os dez produtos de exportação do Brasil e ainda está entre os dez produtos de pauta de exportação do Ceará. É um produto que você tem registros de exportação de 150 anos. Foi praticamente um dos produtos que colocou o Brasil e o Ceará no mercado internacional", registra Edgar Gadelha.
Ainda de acordo com o presidente da Câmara Setorial, a produção da cera de carnaúba é priorizada em detrimento do pó e da fibra, e se mantém constante ao longo dos últimos anos. Cerca de 65% do produto é exportado, principalmente para os Estados Unidos e para a Alemanha. No mercado asiático, a China está ganhando terreno antes dominado pelo Japão.
No Ceará, diversas cidades se dedicam ao extrativismo e à produção de pó, cera e fibra de carnaúba, e as principais produtoras ficam localizadas, conforme Edgar Gadelha, na Região Norte do Estado, com destaque para Granja.
Com o uso econômico forte da árvore, incluindo boas margens em exportações, o presidente da Câmara Setorial da Carnaúba acredita que os produtos da planta devem continuar em destaque no cenário local, auxiliando no desenvolvimento do segmento agrícola.
"Um produto que você tem 16 mil toneladas de exportação não é um produto histórico. É um produto que tem um peso comercial de geração de emprego e renda muito forte. Estima-se que no Ceará, na safra, você tem um contingente de 90 mil pessoas trabalhando. A carnaúba é um apelo que tem um apelo muito forte, principalmente no extrativismo sustentável", pontua.
Esse é o número de empregos gerados nas plantações de carnaúba no período de safra no Ceará.
Retirada sustentável
Ao contrário de outros cultivos, o extrativismo da carnaúba é feito com o objetivo a preservar a planta. Com isso, diversas palmeiras continuam a produzir folhas, que novamente serão utilizadas para retirar o pó.
"Você não mata a carnaúba, não mata a palmeira. Faz um corte das palhas, extrai o pó serífero, que é a cera da planta e depois de um ano esse carnaubal está pronto para ser utilizado. Isso é comprovado porque é um produto que tem mais de 150 anos de atividade", esclarece Edgar Gadelha.
Embora ainda existam produtos fabricados a partir da madeira da carnaúba, com a extração total da planta, o mais comum é utilizar as palhas, já mortas, para movelaria, ou como enfeites.
A defesa também é feita por Mariana Lima, assistente educacional do Museu da Indústria, que conta com uma exposição interativa e multidisciplinar sobre a carnaúba. A ideia é manter a planta viva e focar na retirada somente das plantas, que são regeneradas em pouco tempo.
Existem plantas parasitas que atingem o tronco da carnaúba, e que para você acabar com essa parasita, o importante é você manter aquela carnaúba viva e longe desse parasita, porque não é interessante fazer queimadas, as retiradas são bem trabalhosas. Estimular essa preservação é muito importante, até porque no recorte dessas folhas, tem o cuidado para não tocar no olho da carnaúba, de onde brota as palhas. Deixa-se o topo com uma pequena parte de folhas e retira essas mais embaixo.
Pontos de melhoria
Uma das principais preocupações de quem sobrevive da carnaúba é relacionada a sustentabilidade, mas também a uma espécie invasora: a Cryptostegia madagascariensis, oriunda de Madagascar, na África, e conhecida como "unha-do-diabo".
Essa é uma das preocupações de especialistas e até mesmo de órgãos públicos. Conforme a Secretaria de Meio Ambiente do Ceará (Sema), a invasora "é uma trepadeira exótica, importada há cerca de 40 anos de Madagascar, como planta ornamental, cresce em volta do tronco da carnaúba, sufocando-a e impedindo a absorção de luz solar, matando a palmeira".
A questão biológica é um dos cinco gargalos elencados por Edgar Gadelha como necessários para ter atenção para o desenvolvimento pleno das atividades ligadas à carnaúba. O presidente da Câmara Setorial destaca os problemas como impeditivos:
- Combate à unha-do-diabo: carnaúba não tinha predadores naturais. O objetivo é utilizar o fungo conhecido como ferrugem (Maravalia cryptostegiae), também nativo de Madagascar e inimigo natural da invasora, como agente de controle biológico;
- Modernização no extrativismo: pelo fato de a carnaúba ser uma planta antiga, com modo de extração já consolidado, não houve muitas mudanças e entradas de mecanização no processo. A ideia é trazer mais equipamentos, como secadores para a cera, para potencializar o aproveitamento;
- Manutenção de carnaubais: mesmo sendo preservada, diversas palmeiras estão dando lugar a outros usos, como carcinicultura (camarão) e usos agrícolas e da especulação imobiliária. Objetivo é incentivar o reflorestamento, sobretudo em áreas degradadas pela alta resistência da planta;
- Relações trabalhistas: diversos casos de trabalhos análogos à escravidão no cultivo da carnaúba já foram registrados no passado. Questão agora é formalizar os funcionários e evitar que os funcionários durmam nos alojamentos no período de safra da palmeira;
- Organização da cadeia: como o plantio ainda é feito de forma muito manual, é preciso capacitar os produtores de carnaúba para melhorar a comercialização com a indústria e potencializar os ganhos. Intenção é estimular um maior vínculo com o Poder Público.
Para todos verem
Por se tratar de uma planta com alto valor econômico e relevância social, cultural e histórica no Estado, diversas entidades e organizações se dedicam a preservar a história da carnaúba e perpetuar o uso da palmeira.
Uma dessas instituições é o Memorial Carnaúba, mantido pelo Instituto Federal do Ceará (IFCE) em Jaguaruana, no Vale do Jaguaribe. O presidente da instituição, Afro Negrão, comemora que a entidade celebra, em 2024, 15 anos, com o desafio de desenvolver, tecnologicamente, o plantio da palmeira no Estado.
"A gente vê a carnaúba como um dos grandes potenciais do nosso estado. A gente passa por alguns pequenos problemas de avanço tecnológico, que tem superado as perdas com a carnaúba. Temos em Jaguaruana toda a cadeia produtiva, com os atores principais que fazem esse processo há dezenas de anos", aponta.
Para ele, como a planta apresenta modo de produção rudimentar, bem próxima ao que já aconteceu no passado, sem grandes inovações, existe uma fuga de mão-de-obra para outras ocupações, o que está sendo, aos poucos, contornado.
Muitas pessoas que trabalhavam com a carnaúba migraram para outras atividades econômicas porque a atividade é sazonal. Queremos muito mostrar é que a carnaúba ainda é um grande negócio para o estado, mas o mais difícil de tudo é a transferência dessa forma de pensar para as atuais propostas de mercado. O social, o cultural, o artístico, o ambiental são importantes, mas o econômico é proveniente de todas essas atividades.
O Memorial Carnaúba fica localizado em Jaguaruana na comunidade de Sítio Volta. De acordo com Afro Negrão, são plantadas anualmente entre 5 mil e 10 mil da palmeira na região, incentivando o reflorestamento.
Imersivo
Está em cartaz, desde 2017, no Museu da Indústria do Ceará, mantido pela Federação das Indústrias do Ceará (Fiec) a exposição que conta a história da "Expedição Carnaúba". Iniciada em 1928, a incursão aconteceu com a empresa americana SC Johnson, reconhecida internacionalmente no ramo de produtos de higiene e limpeza em geral, para conhecer os potenciais da carnaúba no Estado.
"Eles já trabalhavam com materiais à base de carnaúba, mas vieram nessa expedição conhecer de perto. A exposição traz esses recursos da carnaúba a partir dos seus usos, da sua biologia, taxonomia, explorando também cada recurso dela que é aproveitado, desde a raiz até a folha", elenca Mariana Lima.
A exposição traz um panorama completo e imersivo da árvore no Ceará, e traz detalhes sobre as utilizações do material no dia a dia dos cearenses, que é totalmente aproveitada e, em geral, de forma sustentável, a permitir o crescimento das plantas. Além disso, resgata o ciclo econômico da carnaúba.
Os povos nativos já vinham utilizando desde a raiz, de forma medicinal, o fruto, para alimentação e a madeira também como um recurso de utilização, que é muito resistente. É comum ainda ver em casas do interior vigas de sustentação a partir da madeira da carnaúba. A cera está no auge desde os anos 1950. Foi um marco no Ceará. Muita gente fala de algodão, até de café no Ceará, mas a carnaúba também tem um grande protagonismo na economia.
O material exposto fica aberto e de forma gratuita para o público até este sábado (30) - aniversário de 20 anos da lei que instituiu a carnaúba como árvore-símbolo. Após esse período, a exposição vai para o meio virtual, por meio de um site que será disponibilizado pelo Museu da Indústria.
"É uma exposição que desperta o lado afetivo, e estamos em um período de transição. Até o dia 30, o visitante vai ter acesso, e a partir da digitalização, o visitante vai poder percorrer no nosso site, que vamos disponibilizar, e ter acesso aos textos. Essa exposição é bem interdisciplinar", arremata a assistente educacional.