Sangue que resiste por gerações

Arte e política formam o vermelho que corre nas veias dos jovens da Serrinha, na Regional IV

Diego Martins nem havia pensado em ser resistência, mas a inquietação presente no sangue de periferia já pulsava nas suas veias. O jovem de 22 anos é, desde a infância, influenciado pelo exemplo do pai, Tito Maciel, de 44. Ambos, apesar das idades distintas, movimentam as ações sociais no bairro Serrinha, na Regional IV, de Fortaleza. 

Leia mais:
> Coletivos juvenis são trunfos contra a violência
> Jovens do Serviluz resistem para promover arte e cultura
> Diversidade sobre o palco
> Ser drag queen na periferia
> Elas regam a periferia com paz e amor
> ‘A juventude é a vitrine das tensões sociais’, diz pesquisadora

O modelo do pai, que se reflete no filho, vem do berço; mais especificamente quando Tito ainda era um dos integrantes do Coletivo Ensaio Rock - o qual reunia política e cultura num mesmo ambiente: os festivais. O agrupamento começou a atuar no bairro ainda no início dos anos 2000 e se fragmentou há apenas dois anos, servindo como precursor dos demais e atuais coletivos da região.

Com 10 anos de idade e a cabeça dividida pelas vielas da comunidade, Diego começou a se interessar por música. A ideia, obviamente, veio do pai, insistindo para que ele aprendesse algum instrumento. “Aí eu peguei o violão e ele disse: ‘ó, mah, vai aprender a tocar violão pra tu tocar também lá no festival’. Aí eu pronto. Uma semana já tava tocando o dó, o ré, o mi, o fá e o sol”, lembra o jovem, enquanto amassa um pacote de xilito nas mãos.

Desde então, música, arte e política nutrem os pulmões do atual MC Dieguin; ele escreve e denuncia questões da comunidade por meio de letras pintadas em muros de escola ou no papel que manda a real. “Eu estudava em colégio particular com bolsa e nunca pegava um livro pra ler, só pra passar de ano, mas nunca fiquei de recuperação. Quando comecei a cantar rap, passei a andar mais na minha quebrada e deixei minhas amizades do colégio de lado. Eu vi ali muita coisa acontecendo, então eu comecei a cantar”.

Os tons, porém, não saem da sua boca apenas por prazer. A família, pilar fundamental de quem vive nas comunidades periféricas, muitas vezes, é fonte e justificativa para as notas musicais. “Você tem que mostrar pra sua família que é o contrário daquilo que ela assiste na televisão. A trajetória dos meus primos acabou nos atingindo psicologicamente e a gente por tá ali no meio acaba indo junto. E, assim, diante dessa repressão, eu vi a necessidade de me expressar a partir da música”, revela. 

Você tem que mostrar pra sua família que é o contrário daquilo que ela assiste na televisão

Além de cantar, Diego também forma outros coletivos, assim como os demais meninos e meninas que seguem inquietos a pedir maiores soluções para a comunidade na qual vivem. O jovem participa de, ao menos, quatro grupos - que atuam não apenas na Serrinha, mas possuem núcleos em outros bairros da Capital. Círculos Populares, Oscar pra Favela, Taek-won-do com louvor, Viva a Palavra… Os nomes até podem indicar o foco da ação, mas a certeza do resultado todos eles já têm.

O quartel-general

Embora esteja há pouco mais de um ano reunindo jovens e adultos atuantes nos movimentos e coletivos da região, a Associação dos Moradores do Bairro da Serrinha (Amorbase) já funciona como quartel-general da resistência. Milton Santos, de 37 anos, é um dos membros da atual gestão do espaço. Antes mesmo da reforma e implantação das atuais atividades do local, a socióloga Aparecida Higino, da Universidade Federal do Ceará (UFC), já pesquisava as interações juvenis na região. Com os dois, a história das ações juvenis no bairro se entrelaçam com as vivências de Diego e dos demais jovens que respiram energia.

“Aqui na Serrinha, historicamente falando, já tem uma tradição de muitos movimentos na periferia, reivindicação política, ação cultural”, ressalta Milton Santos, ao lembrar que, embora os coletivos findem, “as pessoas continuam criando”. Concepção compartilhada por Aparecida Higino a qual, há seis anos estudando os coletivos, vê a presença dos jovens diariamente. “Além do reconhecimento, da visibilidade e da autoexpressão, eles buscam também a transformação material das condições do espaço público”, pontua, salientando a existência da Praça da Cruz Grande como palco principal das intervenções.

Com poucos espaços para diversão, é a juventude que inicia o processo de visibilização dos problemas na infraestrutura do local.  “Não há lazer, os esforços de organizar as expressões artístico-culturais são de todos esses movimentos juntos”, explica Aparecida. Segundo ela, as duas últimas gestões não fizeram muito pelo bairro: “a Praça da Cruz Grande, os campos de futebol, as outras praças estão tão abandonados que ninguém nem quer frequentar o local de tão deteriorado”.

Além de denunciar os problemas no espaço que os circunda, os jovens da Serrinha também utilizam os coletivos como ferramenta contra a violência. “É como dizem: onde não há cultura e arte, a violência vira espetáculo. Se não houver os eventos culturais é pior”, pondera Milton Santos. Casos desse gênero já ocorreram nos limites dos saraus organizados no local, definido como palco principal; hoje em dia, há evitação em promover saraus na Praça da Cruz Grande.

Em razão da dominação de territórios exercida em alguns bairros de Fortaleza por facções criminosas, há pessoas de uma região impossibilitadas de frequentar outra. “Já rolou morte no reggae aqui; no Jangurussu, no Cuca Roots, que era o reggae mais cobiçado, que a galera mais chegava, um rapaz foi morto na arquibancada”, relembra Diego Martins.

A única saída para continuar movendo a cabeça e os pés, em busca de formas para continuar passando por cima da violência que os cerceia, talvez esteja no pensamento. E ele quer. “Cara, seria muito bom se a gente pudesse andar livremente em qualquer favela porque se eu chegar a qualquer outra favela, eu vou saber andar de boa, tranquilo, sem medo, sem nada”.