‘A juventude é a vitrine das tensões sociais’, diz pesquisadora
Entrevista com Glória Diógenes, socióloga e coordenadora do Laboratório das Artes e das Juventudes (Lajus), da Universidade Federal do Ceará (UFC)
Em uma conversa com a socióloga Glória Diógenes, é possível sentir afeto e apreço se confundirem nos argumentos expressos sobre os objetos de exploração que a cunharam como pesquisadora. Nas palavras trocadas em uma segunda à noite, na sala do seu próprio apartamento, no bairro Joaquim Távora, Glória tenta explicar a incapacidade da definição das juventudes, em que contexto elas surgiram em Fortaleza e o porquê de ser necessário uma via de mão dupla entre Estado e coletivos.
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Em que contexto esses coletivos surgem na cidade de Fortaleza?
Esses coletivos surgem, primeiramente, às vezes, de costas para a institucionalidade. Eu tô falando isso de forma muito geral, porque mais recentemente com a criação dos Cucas [Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte], isso mudou um pouco. Mas é como se esses coletivos fossem uma forma de proclamar a existência de grupos da periferia que não têm ou não se sentem contemplados na escola, muitas vezes não tem liame [laço] com políticas públicas - porque as políticas públicas pra juventude, no geral, se voltam para aspectos muito profissionalizantes. Digo profissionalizante não no que a juventude deseja, que, às vezes, vem no design, no cinema, no vídeo, na fotografia, na moda. Esses elementos, às vezes, não são considerados produtivos pra uma juventude de periferia, mas isso vem mudando. Durante muito tempo, esses coletivos se formavam como modo de sobrevivência, de afirmar desejos, digamos, “outsiders”, desejos de vida, vontade de potência, construção da sua identidade. O hip hop também fortaleceu muito essa perspectiva do grafite, da formação de coletivos.
"´[...] isso surge na calçada, nas esquinas, surge como modo de construir outros vínculos dentro das comunidades". Glória Diógenes, socióloga.
Mas a formação desses grupos na cidade vem desde quando?
Tudo surge, na verdade, com o movimento hip hop em Fortaleza, nos anos 1980 e 1990. Eles abriram e foram o marco inaugural de todas essas expressões e manifestações da juventude que culminaram em grupos de grafite, de rap, break, que são as linguagens do hip hop. Portanto, isso surge na calçada, nas esquinas, surge como modo de construir outros vínculos dentro das comunidades. Isso é interessante porque surge também como forma de construção de outra identidade. É como se, através dessas manifestações, essa juventude, até mesmo por nomes que são criados nos coletivos (que são codinomes) tivesse outra expressão simbólica, outro batismo simbólico. Existe na periferia uma proliferação desses grupos que o Poder Público desconhece ou esse lado iluminado da cidade desconhece.
Até que ponto a institucionalização dos coletivos é positiva?
O mais bacana disso tudo é a mistura. Até na época pós-golpe de 1964, você teve o recrudescimento dos movimentos sociais na chamada década de direitos, nos anos 1980. O que era do Estado era considerado formal, conservador e com a socialização da política e a emergência de muitos movimentos sociais, o que a gente vai identificar é que houve uma perspectiva de conexão: os movimentos meio que se apropriaram ao seu próprio modo. Há a possibilidade de eu botar o pé no Estado, mas não perder a minha identidade: é quando eu acho que potencializa o movimento.
Mas sempre foi possível haver essa institucionalização?
Quando o primeiro Cuca surge, na Barra do Ceará, a gente percebe que existia quase um fosso, uma linha que determinava os jovens possíveis participantes de oficina, eles viam aquilo ali até mesmo como elefante branco. No começo, se oferecia aquilo que se julgava que era interessante e eu vejo que, por exemplo, já há pontos de convergência entre o que faz a comunidade, e o Estado e o Município oferecem. Óbvio que tá longe de ser ótimo. Eu tô fazendo um elogio ao movimento porque eles sabem usar do seu próprio modo sem se sentirem cooptados, sem se sentirem capturados pela malha do Estado. Então, eles passam por essa malha, recriam, trazem pra si o que é possível e usam e mobilizam redes da própria comunidade. Então, não cabe mais criar essa cisão entre Estado e movimentos sociais ou coletivos.
Como o Estado pode chegar a essas juventudes de periferia?
O Estado só consegue chegar a esses movimentos se os movimentos estiverem se dirigindo ao Estado. As políticas públicas não atingem em geral essas juventudes. O que quer essa juventude? O que busca? Tem coletivos de arte, cultura, de torcida organizada, de galeras, do hip hop. Existe, dentro desse espectro, uma diferença tão grande, às vezes, que generalizar é perigoso. Não existe mais essa homogeneidade nesse perfil de juventude. Eles estão invertendo um pouco a lógica da sociedade moderna do trabalho que é a lógica das fadigas e penas, do sacrifício que você só falta se acabar trabalhando. É preciso olhar esses coletivos como também alternativas, não só no campo artístico-cultural, mas como alternativas à lógica da sociedade moderna do trabalho.
"Eles são muito mais plurais, são mais do que um coletivo para alguma coisa, eles rompem essa visão instrumental".
Os coletivos também têm um caráter político bem forte, né?
O que acho mais legal nisso é que a política vai surgindo como pólis mesmo porque ela não é mais separada da vida, do cotidiano. A gente começa a ver que esses coletivos emergem com a força do lugar, do que se faz, do que se é, das possibilidades de afirmação dos movimentos. Não existe mais uma perspectiva separada, e isso é o que dá potência a essa juventude, nesses coletivos. Eles são muito mais complexos, eles rompem fronteiras, não se circunscrevem a um plano. Eles são muito mais plurais, são mais do que um coletivo para alguma coisa, eles rompem essa visão instrumental.
Isso quer dizer que a juventude é impossível de ser explicada?
Todos os estudos sobre juventude começam dizendo que ela não pode ser definida. Juventude é a categoria que mais escapa a qualquer tipo de saber universalizado, de perspectiva globalizante. Ela escapa. ‘Onde queres revólver, sou coqueiro’. Ela tem essa característica de mutação constante. Eu digo que a juventude é a vitrine das tensões sociais porque ela, de certo modo, dá visualidade a tudo isso. Quer saber como é uma sociedade em um tempo? Olha como é que tá essa juventude, porque ela é a porta-voz dessas tensões sociais.
"Eu digo que a juventude é a vitrine das tensões sociais porque ela, de certo modo, dá visualidade a tudo isso".