A mudança para o município de Redenção, em 2018, após ingressar na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), foi um marco para a vida de Lucas Castro, 20 anos. Nascido e criado em Capistrano, no Maciço de Baturité, o estudante experimentou um cotidiano de liberdade após sair de casa.
No entanto, com a chegada da pandemia do coronavírus no Ceará, a vida organizada durante os últimos 2 anos, foi bruscamente interrompida. No começo do março, Lucas precisou retornar para a cidade de origem por questões econômicas e sanitárias.
A necessidade, seja de voltar para a casa dos pais, ou de adiar planos, foi sentida também pela estudante de mestrado Mariana Lage, 27 anos, e pela psicóloga Sulamita Sales, 25 anos. Conforme o especialista em Terapia Familiar Sistêmica e doutorando em psicologia, Álvaro Rebouças, as mudanças trazidas pelo isolamento social estão sendo sentidas por distintos grupos sociais.
No entanto, para as pessoas que precisaram permanecer por motivos econômicos ou sociais, a convivência frequente pode ser ainda mais desafiadora.
A fim de amenizar as tensões trazidas por isso, Álvaro aponta a importância da conversa e da busca em compreender como cada indivíduo no núcleo familiar está lidando com a pandemia. "Os momentos de ajuntamento, acho que até para filhos adultos, é em grande parte de compartilhamento, que não precisa nem de intermediação de rede social, já que estão confinados no mesmo local. Em se tratando de convivência para reduzir tensões, é necessário não tratar de acusações, mas ter atividades coletivas", afirma.
Dentre as tarefas que podem ser realizadas em grupo, o psicólogo sugere jogos de tabuleiros, criação de fantasias, brincadeiras de karaokê e atividades lúdicas ou artísticas. O uso de ferramentas como o computador ou tablet também podem ser explorados para criação de jogos, mas Álvaro ressalta o cuidado em não utilizar os instrumentos digitais por muitas horas.
Para Lucas, o contato com os irmãos mais novos foi um ponto positivo do isolamento social, já que pôde compartilhar aprendizados e gostos, como a apreciação de música clássica. No entanto, após dois anos acostumado a sair sem precisar dar explicações, a realizar atividades domésticas no próprio tempo, a estudar pela madrugada e a compartilhar os acontecimentos da vida com os colegas de apartamento, a saudade da vida de Redenção tem sido grande . "O retorno para casa está sendo um pouco difícil, porque é uma quebra mesmo. Por não ter acesso à internet, por estar longe das pessoas que eu convivia, por precisar abandonar algumas atividades acadêmicas", pontua Lucas.
Ao se isolar no Interior, apesar de diminuir as chances de contaminação por viver em um local mais afastado, foi impactado com a falta conexão digital. "Eu uso a internet de uma vizinha, que cedeu para mim. Mas mesmo assim, manter cursos que eu já vinha fazendo na universidade está meio complicado, tanto é que eu desisti", explica, com pesar.
O isolamento na Zona Rural interferiu inclusive em sua rotina em casa. Filho de pais religiosos, precisou lidar diariamente com as diferenças. "É realmente uma quebra de convívio. Você se acostuma a conviver e a respeitar a diferença e, do nada, você é obrigado a voltar para um contexto que é muito fechado, de um pensamento muito imutável, por conta muitas vezes de visões religiosas", diz.
Em Redenção, Lucas vivia cercado pela pluralidade, fosse dentro de casa, quanto na universidade. No atual cenário, tenta aproveitar o cenário de mudanças ao lado dos familiares, mas segue aguardando um retorno da vida conquistada na cidade universitária.
Origens
A volta para a casa dos pais também foi uma necessidade para a psicóloga recém-formada Sulamita Sales, que retornou para Canindé, em março. A ex-moradora da residência da Universidade Federal do Ceará (UFC) tinha até julho para realizar a mudança de saída e iria utilizar os meses do primeiro semestre para buscar emprego e uma nova moradia na Capital. No entanto, com a pandemia, precisou suspender os planos de organizar atendimentos presenciais e de permanecer em Fortaleza.
Ciente das mudanças trazidas pelo coronavírus, Sulamita tem se preparado para a vida que irá encontrar no novo contexto mundial, considerando a situação epidemiológica. Ao retornar para casa, a psicóloga aponta que houve conflito, "fato inevitável diante da intensa proximidade e a tensão de todo o contexto social e emocional que ainda estamos vivendo", diz. No entanto, apesar disso, acredita que as divergências sejam importantes também para a construção das relações familiares.
Conforme o especialista em Terapia Familiar, o momento foi positivo por aumentar a vivência de aspectos coletivos. "Nós vínhamos desenvolvendo uma individualidade muito acentuada, ou seja, estávamos observando muito as nossas próprias necessidades, e o confinamento trouxe uma necessidade de viver essas necessidades coletivas, não unicamente individuais", afirma.
Desse modo, é possível abrir o diálogo para resolver conflitos e para observar o cotidiano compreendendo as necessidades da família como um todo.
"Apesar da distância física, mantivemos o afeto sempre aquecido dentro da nossa grande família. Ao voltar pra Canindé, nesse momento delicado, permanecemos ainda mais próximos, com nossas diferenças tão acentuadas quanto as qualidades de cada um", ressalta a psicóloga. Os aprendizados na universidade transformaram Sulamita em uma mulher mais madura, gradualmente mudada ao longo do tempo. Apesar de ter sido uma mudança abrupta e inesperada, o retorno ao lar lhe fez perceber os antigos lugares com um olhar mais acolhedor e gentil. "Me faz lembrar o valor da minha história, da minha infância e adolescência na mesma casa, com a cultura interiorana de estar próxima de hábitos muito simples e que já não lembrava mais a importância pra quem eu sou hoje".
Para ela, esse retorno a fez perceber que suas raízes permanecem guardadas, sendo uma oportunidade para refletir acerca das características dos familiares, de sentir as marcas do tempo, da velhice e das vidas vividas, muitas vezes atravessadas pela dureza da distância.
O mais difícil, de todo o processo, é a incerteza trazida pela pandemia. Planos pessoais e experiências profissionais foram suspensas sem uma previsão de retorno, e o medo de que parentes e amigos contraiam o vírus continua sendo constante.
Mudança
No caso de Mariana, moradora do bairro Cambeba, a pandemia suspendeu o plano de mudar de casa. Ela iniciaria um curso noturno neste ano e, por isso, buscava uma moradia em regiões mais centrais de Fortaleza, a fim de garantir a segurança no deslocamento. Após entrar em contato com um amigo, a estudante de mestrado em comunicação na Universidade Federal do Ceará (UFC) se organizava financeiramente para realizar a mudança em maio, quando os casos de coronavírus começaram a aumentar no Ceará.
"Mudar não é uma coisa simples, você não faz de uma semana para outra. Fazer uma mudança em época de pandemia é um perigo, tanto para mim, quanto para as pessoas que estão fazendo contato. Fiz certo de estar perto da minha família, muito embora eu precisasse muito me mudar", pondera.
O terreno de sua casa concentra 6 pessoas, entre elas a avó, de 74 anos. Apesar do convívio constante às vezes lhe ser um desafio, a estudante acredita que sentiria muito mais o impacto do isolamento social se estivesse afastada da família. "Eu acho que eu ia acabar me preocupando mais do que estou preocupada agora. Eu não ia poder ficar visitando. Ia ser uma quarentena mais solitária. Aqui eu vejo, falo, tenho contato, bem diferente de fazer tudo por videochamada", afirma.
Observando as mudanças ocasionadas após a Covid-19, percebe um aumento do preço na comida e no custo de vida, de um modo geral. Agora, Mariana só deve voltar a buscar um apartamento quando houver uma vacina para a doença, ou quando os casos tiverem baixado consideravelmente.
Em várias famílias cearenses, a volta de jovens adultos para a casa dos pais tornou-se realidade por conta da pandemia. Conflitos da dinâmica familiar somam-se à instabilidade dos contextos social, econômico e sanitário