“Tu é muito alegre pra ter depressão”, “isso é gula, não ansiedade!”, “será que não é TPM?”, “é falta de Deus”, “é frescura, vai passar”. Se você já disse ou pensou algo assim, é preciso entender: transtorno mental não tem rosto. No Setembro Amarelo, cearenses falam da urgência de acabar com preconceitos que inibem a busca por ajuda à saúde mental.
O imaginário de que alguém com depressão vive trancado num quarto escuro, por exemplo, impede a sociedade de enxergar que quem precisa ser abraçado e ouvido está ao lado. Afinal, “uma pessoa depressiva e ansiosa tem a mesma cara de quem não é”, como observa a empresária Mariana Filgueira, 30.
A cearense foi orientada a buscar um psiquiatra devido à depressão pós-parto, “que agravou quadros depressivos que já tinha”. Antes do diagnóstico, Mariana já frequentava a terapia há 7 anos, autoconhecimento que foi fundamental para cuidar da própria saúde.
O que mais escuto é o silêncio: as pessoas fingem que você não falou nada quando o assunto é depressão. Mas é importante que conheçam e saibam que não existe uma ‘cara’ que se espera de alguém com transtornos mentais.
No início deste mês, Mariana fez uma publicação em rede social “tanto para incentivar as pessoas a buscarem ajuda como pra mostrar a quem convive com alguém com transtorno psicológico que é preciso tratar isso com normalidade, porque a pessoa não é o diagnóstico”.
“O diagnóstico não é um crachá, é uma direção”
Para a professora Neyla Almeida, 32, a quebra de estereótipos já começou na primeira vez em que procurou auxílio profissional para sanar as constantes crises de ansiedade: já estava há uma semana sem dormir, quando foi ao Hospital Saúde Mental de Messejana, em Fortaleza.
“Já quebrei aquela visão de que quem ia lá ficava amarrado. Fui bem atendida e orientada, disseram que, ao contrário do que as pessoas me falavam, o que eu estava sentindo não era ‘normal’, que eu precisava buscar terapia”, relembra.
O diagnóstico de transtorno de personalidade borderline (TPB) veio em 2019, contrariando os julgamentos que a professora ouvia de que “a ansiedade era natural do fim da faculdade, do período de TCC, de estágio etc.”
Por definição, TPB é um transtorno de personalidade caracterizado pela instabilidade do humor – o que fez colegas de profissão e outras pessoas estamparem em Neyla o rótulo de “descontrolada, de pessoa que não conseguiria trabalhar ou lidar com o público”.
“Fiquei apavorada, no início. Mas, com o tempo, comecei a entender que o diagnóstico não é um crachá, não reduz você. Ele é uma direção de pra onde eu tinha que ir pra lidar com essas questões, conhecer meus limites e buscar o tratamento correto”, pontua a jovem.
Para conhecer e respeitar esses “limites”, Neyla frisa a importância de ter uma rede de apoio sólida, “que entenda o que pode levar ao medo, à iminência da queda, às crises, que são muito violentas”.
Muita gente não busca ajuda porque tem vergonha e medo de falar. Um simples comentário que reforça preconceitos quebra o pacto de confiança que a gente tem com alguém, e a gente se fecha. Já perdi muitos amigos.
A professora critica, ainda, a forma genérica como parte da sociedade se posiciona em relação ao Setembro Amarelo. “Colocam as pessoas em potinhos, reforçam a ideia de ‘você é tão alegre, nem parece que é doente’. Como se rir não fizesse parte da nossa vida. Essa empatia plástica afasta quem precisa de ajuda”, finaliza.
“Sempre fui o brincalhão da turma”
A “empatia plástica” descrita por Neyla, de gente que escuta mas não ouve, é um dos fatores que impedem Maurício Inácio, 39, de conversar sobre o que sente; sufocado no rótulo de “brincalhão da turma”, de “menino que não bebia nas festas pra cuidar dos outros”.
“Sempre fui o cara presente, que tentava colocar todo mundo pra cima, chegava pra ajudar. Acho que às vezes é por isso que me dá tristeza: sempre cuidei tanto, e agora não vejo tanta gente pra me cuidar”, reflete o empreendedor.
As crises de ansiedade fizeram Maurício engordar quase 30 kg durante a pandemia, já que são canalizadas para o ato de comer compulsivamente – o que, aliado ao machismo, o faz ouvir coisas como “isso é gula, besteira, frescura, homem que é homem não chora”.
As pessoas acham que o depressivo fica trancado no quarto escuro, o ansioso tem crise e desmaia. Hoje vejo o quanto de diferença que tem nisso. Às vezes sinto alguma coisa, quero conversar e tenho medo de ser julgado. De ouvir um ‘vai ficar tudo bem’ da boca pra fora.
Psicofobia e os gatilhos emocionais
A psiquiatra Ticiana Macedo, diretora geral do Hospital Nosso Lar, alerta que a questão da saúde mental está imersa num conceito secular: a psicofobia. “É a noção cultural de que transtorno mental é coisa de outro mundo, como se a pessoa não tivesse controle sobre si”, pontua.
Ticiana frisa, porém, que os transtornos mentais são doenças, tanto do ponto de vista físico como psíquico, e que, como tais, jamais devem ser diminuídos ou discriminados.
Existem pessoas por trás da doença, e o fato de ela ter um transtorno mental não a limita em todos os aspectos da vida. O transtorno mental deve ser inserido no cotidiano como uma coisa normal.
Durante o mês de setembro, o hospital integra a campanha “Somos todos responsáveis, nossa causa é a vida”, com o intuito de alertar as pessoas sobre atitudes e expressões discriminatórias, que podem funcionar como gatilhos emocionais para quem precisa de acolhimento.
“Ouvimos muito ‘Ah, ele é doido’, ‘você é bipolar’, ‘já tomou o seu remédio hoje?’. Frases que podem jogar a pessoa adoecida pra baixo. A gente tem de enxergar o que está falando, mudar essa cultura e entender que o transtorno mental é uma doença, deve ser tratado e acolhido”, finaliza a médica.