Embora 37 municípios do Ceará tenham registrado menos mortes em 2020 do que em 2019, outras 17 cidades viveram uma situação oposta: tiveram registros pelo menos 50% maiores, durante a pandemia de Covid-19 no ano passado. As informações são dos registros preliminares do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), disponibilizados pela Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde.
Do grupo de cidades com maior aumento no Estado, Aratuba, no Maciço de Baturité, aparece com os dados mais expressivos, subindo de 38 mortes, em 2019, para 79 em 2020. O número mais que dobrou, revelando aumento de 107,89%.
Jaguaribara, Senador Sá e Jati vêm na sequência, com crescimentos respectivos de 85%, 80% e 78% no número de mortes. No primeiro ano pandêmico, em todo o Ceará, houve 20% de mortes a mais em relação a 2019, com 11.763 mortes a mais entre os dois anos. Foi a maior quantidade desde 1979.
Na contagem, são incluídos quaisquer tipos de morte, não só por Covid-19. Ou seja, entram aquelas provocadas por outras infecções virais ou parasitárias, doenças crônicas, óbitos infantis e maternos, vítimas da violência e acidentes, entre outros motivos. Segundo o Ministério da Saúde, os dados de 2019 e 2020 estão sujeitos a alterações devido a prazos legais para a alimentação do SIM.
O coordenador da Atenção Básica de Aratuba, Cezanildo Silva, explica que a redução da procura pelo serviço de saúde no início da pandemia, associada ao medo vivenciado com o surgimento da Covid-19, contribuiu para a descompensação das comorbidades, “resvalando em um maior índice de mortes por causas tratáveis”.
No início da pandemia houve redução da procura. Hoje não há mais essa realidade, as pessoas procuram constantemente. Porém, reduzimos a quantidade de atendimentos para evitar aglomerações"
Na cidade, a Covid-19 vitimou duas pessoas em 2020, de acordo com a plataforma IntegraSUS. Porém, os principais motivos de mortes no ano passado foram tumores, doenças endócrinas e doenças respiratórias, que podem ser acompanhadas. O coordenador diz que os serviços de saúde no município nunca foram descontinuados.
Além disso, destaca que os agentes comunitários de saúde (ACS) continuam com visitas peridomiciliares - ou seja, no entorno dos imóveis, sem adentrar as residências para evitar contaminações - e acompanhamento remoto da população através do celular.
Medo em duas vias
Em Jaguaribara, os óbitos saltaram de 34 para 63 entre os dois anos, puxados principalmente por vítimas de doenças circulatórias, como as do coração, e respiratórias crônicas. Para a secretária de saúde do Município, Conceição Peixoto, a chegada do coronavírus deixou a população “muito apreensiva”, o que diminuiu os atendimentos e o acompanhamento.
“Parte da nossa população também está precisando de psicólogo, de psiquiatra, por conta de todas restrições que tivemos, como o lockdown. Principalmente idosos, que tinham alguma rotina, que faziam atividade física”, observa.
Quanto à assistência em Saúde, ela afirma que a Ala Covid funciona de 7h às 19h para atender as demandas da população. “A procura tem diminuído e a maioria dos casos apresentam sintomas leves”, ressalta.
Luís Cláudio de Sousa, presidente do Sindicato dos Agentes Comunitários de Saúde e Endemias no Estado do Ceará (Sinasce), lembra que o início da pandemia teve problemas de assistência pela falta de equipamentos de proteção para os agentes em campo, além do medo mútuo de contaminação.
“Precisamos nos reinventar, mas mesmo assim não foi 100%. Não temos pernas para acompanhar toda a situação, mas, se a população também não ajudar, vai ficar muito difícil. Os agentes também podem ser vítimas", preocupa-se.
Luís chama atenção para as famílias que vivem em microáreas descobertas, ou seja, em situação de extrema vulnerabilidade social. “É um perigo maior porque elas não têm aquele acompanhamento. Mesmo assim, os agentes continuam se virando para dar algum apoio”.
Consequências a longo prazo
Roberto Maranhão, presidente da Associação Cearense de Medicina de Família de Comunidade (ACeMFC), pondera que o aumento de mortes “já estava anunciado” e deve continuar por mais alguns anos, sobretudo pelo impacto de doenças como o câncer de mama, do colo uterino e do trato gastrointestinal.
Deixou-se de lado um monte de coisa. Essas pessoas ficaram perdidas. A assistência que porventura vierem a ter já vai ser num momento tardio porque a doença já vai estar avançada, e porque não tiveram um momento anterior para fazer uma detecção precoce e tratá-la de forma efetiva”
O especialista critica que o potencial da rede de Atenção Básica no Brasil foi subutilizada na pandemia porque os postos de saúde se tornaram grandes centros de acolhimento de síndromes gripais, limitando o atendimento a outras enfermidades.
Uma das estratégias para minimizar o impacto, aponta, seria treinar os ACS para o monitoramento territorial dos casos suspeitos de síndrome gripal, indo até as residências dos possíveis infectados. Dessa forma, as unidades básicas seriam desafogadas e continuariam a prestar cuidados a quem tivesse condições de manter o acompanhamento das doenças de base.
“Poderíamos evitar tudo? Não. Claro que iam cair os atendimentos porque a quantidade de profissionais é limitada. Se você não tem cobertura suficiente para dar conta do essencial, do dia a dia, como os mesmos profissionais podem dar conta de algo a mais?”, questiona.
Para Maranhão, o terceiro pilar da Atenção Primária, a promoção da saúde (que deveria funcionar ao lado da assistência e da prevenção) foi o mais prejudicado pela pandemia, já que o fundamento de educar a população para estilos de vida saudável foi restrito a iniciativas pontuais.